Há algumas semanas a “Netflix” estreou uma nova série chamada “Atypical” que retrata os dilemas da vida cotidiana de um adolescente autista de alto funcionamento. O autismo de alto funcionamento é caracterizado por comportamentos comuns a qualquer outro indivíduo com o diagnóstico de autismo como dificuldade de comunicação e interação social, presença de estereotipias, alteração sensorial e interesses restritos. Entretanto, esses indivíduos são colocados em um subgrupo denominado “alto funcionamento” por não apresentarem outras comorbidades como deficiência intelectual e não possuírem atrasos significativos de linguagem na primeira infância, por exemplo.
O primeiro grande desafio de um indivíduo que seja autista de alto funcionamento é o seu diagnóstico, especialmente em nosso país. Em países como o Reino Unido, caso um médico não realize um diagnóstico preciso, e havendo comprovada negligência, o mesmo pode responder judicialmente por tal ato. Da mesma forma, o governo que não provenha a intervenção em ABA, pode ser igualmente penalizado. No Brasil, entretanto, ainda temos um longo caminho a percorrer. Na maioria das vezes, os médicos não percebem nenhum sinal de atraso no paciente e alegam que os pais (quase sempre a mãe) da criança estão “paranóicos” ou “exagerando” ao relatar qualquer estranheza no comportamento de seu filho. Do grupo seleto de profissionais que possuem boa formação e consegue realizar esse diagnóstico, ainda existe uma minoria que indica a intervenção em ABA. Muito comumente os pais relatam que o médico realizou o diagnóstico mas disse que “ABA é uma terapia para casos graves ou precoces” – sendo que as pesquisas têm, cada vez mais, confirmado que isso não é verdade.
A Análise do Comportamento é uma ciência que pode ser aplicada para modificar, melhorar, ensinar, ampliar qualquer comportamento. Desde ensinar uma criança a apontar, ir ao banheiro, até “paquerar”, falar com a namorada e ser inserido no mercado de trabalho. Vamos analisar, então, cada um dos comportamentos do autista de alto funcionamento e como são abordados na série.
A dificuldade de comunicação e interação social é bem caracterizada na série em diferentes situações. Quando Sam (Keir Gilchrist) apresenta dificuldade em compreender figuras de linguagem utilizadas por outros personagens ou utiliza-se de palavras não adequadas ao contexto no qual está inserido. A personagem apresenta déficit no que usualmente é chamado de “habilidades sociais” e que, em última instância, para a análise do comportamento é uma defasagem no comportamento verbal, não conseguindo perceber a inadequação, por exemplo, de dizer na mesa do jantar para sua família que deseja “encontrar uma garota e fazer sexo”. A maioria das interações sociais preveem a habilidade de “mentalmente” perceber a perspectiva do outro. A inabilidade de prestar atenção em situações sociais e simultaneamente integrar essas informações faz com que seja mais difícil esse indivíduo ficar sobre controle do que o outro pode estar pensando ou sentindo. São pequenas sutilezas e regras de convenções sociais que não são entendidas de forma natural para esses indivíduos, mas podem ser ensinadas através de um treino específico.
A presença de estereotipia (ou, como chamamos, comportamentos autoestimulatórios) pode ser percebidas quando o personagem apresenta comportamentos repetitivos tais como andar em círculos. Outra observação são as alterações sensoriais apresentadas a certos alimentos, texturas (o material sintético da jaqueta que não consegue tolerar) e sons (não poderia participar do baile caso o som estivesse alto).
Por fim, a série retrata o padrão comportamental de interesses restritos do personagem que prefere falar de pinguins várias vezes ao longo do dia e raramente percebe a expressão de não interesse de um amigo ou da própria namorada em relação ao assunto.
Além dos aspectos da vida do personagem, a série aborda de forma muito fidedigna os sentimentos muitas vezes vivenciados pela família de indivíduos com autismo. A falta de aceitação do diagnóstico por parte do pai, a perda de autorreferência da mãe diante da independência do filho e a negligência vivida pela irmã de Sam são desafios por vezes comuns às famílias.
Também vale ressaltar que na série a terapeuta de Sam o atende apenas em consultório. Ela descreve algumas regras e ele, espontaneamente, as testa em seu ambiente natural. É importante enfatizar que os indivíduos com autismo, dentre eles os de alto funcionamento, têm grande dificuldade de se comportar de forma espontânea e generalizada, sem que haja um treino no ambiente natural capaz de desenvolver as habilidades-alvo. Nesse caso, uma terapeuta que além de descrever comportamentos, os demonstrasse e treinasse diretamente no ambiente no qual ocorrem poderia ser, sem dúvida, mais eficaz.
Assim, devemos comemorar e parabenizar a abordagem irreverente que a série conseguiu empregar ao assunto e, ao mesmo tempo, caracterizar de forma adequada os comportamentos típicos do quadro de autismo de alto funcionamento. Os autores foram felizes, também, em não realizar uma relação entre autismo de alto funcionamento e genialidade. Mesmo Sam apresentando excelente memória, isso não o torna um gênio.
É bastante provável que existam milhões de pessoas no mundo que se enquadram nesse subtipo de autismo e a Análise do Comportamento possui intervenções capazes de ensinar repertórios para o estabelecimento de relações sociais adequadas e de oferecer uma melhor qualidade de vida a esses indivíduos.
Texto dedicado a Marina Ramos, coautora, especialista no trabalho com autistas de alto funcionamento e supervisora do Grupo Conduzir.
https://guiadanetflix.com.br/2017/08/atypical-serie-da-netflix-sobre-autismo-esta-disponivel/
https://www.uk-medical-negligence.co.uk/misdiagnosis-of-autism-compensation/
http://www.lehigh.edu/~specprog/ZirkelAutismLATEST.pdf