“Preciso mudar, mas não estou com vontade” – e quando a motivação não vem? (e nem virá!).

Se você gosta de séries e passar um período sem assisti-las, provavelmente vai sentir uma inclinação maior a se comportar dessa forma. Poderia dizer que está “a fim de” ou “motivado” a assistir algum episódio. E a probabilidade de que você de fato o faça, aumenta. Uma das formas que os analistas do comportamento explicam isso é por meio do conceito de “operação estabelecedora”*. Não é necessário recorrer a nenhum mecanismo mental ou interno, bastando entender o seguinte:

1. Algum estímulo é (do ponto de vista filogenético) ou tornou-se (a partir de uma história de aprendizagem particular) reforçador para esse indivíduo. Nesse caso, estimulação envolvida em assistir séries teria função reforçadora para essa pessoa.
2. Ocorre uma operação no ambiente, ou seja, como nas operações matemáticas de soma e subtração, algo é inserido ou removido. No exemplo acima, o acesso ao reforçador foi limitado, “subtraíram-se” (metaforicamente) as séries e o indivíduo ficou em privação das mesmas. Ele poderia estar, digamos, envolvido com outras coisas em sua rotina que concorriam com os comportamentos que deveriam ser emitidos para que ele tivesse acesso a um episódio (um período mais atribulado no trabalho) ou sem o sinal do serviço de streaming, por exemplo.
3. O efeito dessa operação (a privação, no caso), estabelece um novo valor para o reforçador. No exemplo, seria possível dizer que ter acesso às séries se tornou ainda mais reforçador, na medida em que a limitação desse acesso aumentou a inclinação do indivíduo de se comportar da mesma forma que se comportou no passado quando o produziu. Ou seja: ficar um tempo sem poder assistir séries fez com que comportar-se para assisti-las se tornasse mais provável: a pessoa se mobilizaria para reativar o sinal do streaming ou daria um jeito de conciliar assistir séries com a rotina (nem que para isso vá dormir bem mais tarde do que poderia, gerando aí uma nova privação, a de sono… mas isso é outra história…).

É claro que outras variáveis podem contribuir ou mesmo explicar melhor o comportamento de alguém que busca de forma mais intensa assistir uma série. A pessoa pode estar se esquivando dos spoilers que fatalmente se seguirão caso não mantenha os episódios em dia. Ou pode ter recebido uma dica de um amigo que assistiu e recomendou. Mas o importante aqui é compreender que operações ambientais podem tornar as pessoas mais ou menos “a fim de” fazer coisas e muitas vezes são contingências como essas que explicam de onde vem o que comumente chamamos “motivação”.

Levando a questão para a prática clínica, quantas vezes ouvimos um cliente dizer em psicoterapia que ele entende que precisa se comportar de determinada maneira, mas que não tem “motivação” nenhuma para isso. “Sei que preciso fazer exercícios, mas não tenho ânimo.” “Admito que preciso interagir mais com as pessoas, mas não estou no clima”. Ocorre que, diferentemente do exemplo das séries, nesse caso, a motivação não vai simplesmente “aparecer” porque o acesso à prática de exercícios ou ao contato social foi limitado. Aqui as contingências operando seriam outras.

Vamos retomar o item 1 a respeito do exemplo original? As séries já tinham adquirido um valor reforçador para esse indivíduo. Isso é fundamental. Uma pessoa não vai se sentir privada de praticar exercício a menos que tenha uma história com a prática de exercícios na qual entrou em contato com reforçadores advindos de tal prática. Um atleta pode dizer que sentiu falta de treinar se for impedido de fazê-lo. Mas, para a maioria das pessoas que não tem esse hábito, no início ele pode ser inclusive bem aversivo (dói, cansa, é humilhante etc.) e é bem diferente estar “a fim de” estar mais magro ou de ser capaz de pedalar 10km (os tais reforçadores advindos para quem pratica atividade física há certo tempo) e estar “a fim de” pedalar por 5 minutos que seja. A mesma lógica se aplica para a segunda queixa. Se o cliente nunca foi muito hábil socialmente, é razoável esperar que a história de interações dele não seja das mais reforçadoras e, portanto, ele não vai sentir falta de interagir com ninguém, pelo contrário, vai realmente é se esquivar disso, ainda que ele genuinamente admita que gostaria muito de ser uma pessoa mais amigável.


Isso implica que, nesses casos, não adianta esperar que eventualmente “surja” uma motivação tal como no exemplo das séries. Infelizmente não é assim que funciona. O cliente não vai acordar um dia e simplesmente “estar a fim” de fazer essas coisas, por mais importantes que sejam, pois ele não tem uma história de reforçamento com essas atividades. Entretanto, muitas vezes as pessoas têm a expectativa equivocada de que isso vá ocorrer e a usam como justificativa (até para si mesmas) para sua resistência ou inércia em relação a esses objetivos: “Não adianta forçar, né? Tem que estar a fim”.

E o que fazer então? Felizmente, existem outros arranjos de contingências de reforçamento possíveis para manter alguém se comportando até que esses estímulos adquiram ou mesmo alterem suas funções para reforçadoras. Ao encarar o fato de que não basta esperar a passagem do tempo (não haverá privação e, portanto, nenhuma motivação derivada) e que estar altamente motivado para alcançar determinados resultados não equivale a estar motivado para engajar-se no processo que permite alcançá-los, fica mais fácil colocar mãos à obra. Não é preciso “forçar” nada, mas esses processos em geral de fato exigem disciplina, treino, persistência e tolerância à frustração: e é importante que as expectativas a esse respeito seja realistas.

Focando na queixa sobre a prática de exercícios, se no início a atividade em si não é intrinsecamente reforçadora, uma das estratégias possíveis seria aliá-la a outros reforçadores. O cliente não gosta de fazer exercícios, mas gosta de bater papo. Consegue-se alguém bom de papo para acompanhá-lo inicialmente. Poderia ser um personal trainer, um amigo do cliente, um acompanhante terapêutico. Se ele gosta mais de animais do que de bater papo, a companhia poderia ser de um cão, por exemplo.

Outras estratégias criariam condições que aumentariam a chance do cliente se engajar na tarefa. Uma possibilidade seria o uso de procedimentos de mudança gradual nos quais as respostas iniciais esperadas deveriam ser bem pouco custosas: se o cliente se sente pouco à vontade se exercitando em grupo, que ele faça algo mais solitário; se a dificuldade é conciliar horários, uma atividade que se enquadre numa agenda mais flexível, como uma caminhada, poderia ser ideal. Além disso, seria relevante considerar como aumentar a chance de que esforços mínimos do cliente produzam algum reforço natural. Uma sugestão nessa direção seria a de que o cliente, por exemplo, iniciasse com pequenas caminhadas, buscando gradativamente aumentar o tempo de atividade (“comece caminhando 10 minutos e vamos aos poucos tentando chegar em 30 minutos”) ou diminuir o tempo necessário para caminhar de um ponto a outro (“cronometre quanto tempo você leva para dar a volta toda no parque, no próximo domingo veremos se consegue fazer em menos tempo!”).

Também é possível pensar em estratégias que diminuam as respostas de esquiva: o psicoterapeuta poderia sugerir que o cliente encontrasse seu acompanhante em um lugar que tornasse menos provável que ele “furasse” o compromisso (“marque com sua amiga lá no parque, você sabe que ela sai sem o celular e isso reduz a chance de que você desista e tente desmarcar em cima da hora”) ou que ele lhe enviasse fotos assim que terminasse a caminhada (“vou ficar esperando aquele selfie com cara cansada, mas de missão cumprida!”). Ter critérios de exigência realistas e compatíveis também ajuda: não se espera que um sedentário passe a se exercitar habilmente do dia para noite, é importante que o cliente veja os pequenos passos como indicativos honestos de sucesso.

Essas seriam algumas alternativas, considerando esse exemplo hipotético. Um raciocínio semelhante caberia no caso do cliente socialmente inibido ou em quaisquer outros casos nos quais os clientes precisam se engajar em atividades que a princípio não lhe são reforçadoras, mas que lhe são fundamentais de forma menos imediata. É claro que para cada caso, psicoterapeuta e cliente vão avaliar de acordo com as contingências de reforçamento em operação quais serão as estratégias de intervenção mais apropriadas dentro dessas mencionadas e de outras tantas não citadas. O ponto é que não adianta esperar “estar a fim” para começar a fazer aquilo que precisa ser feito. A “motivação” para fazer as coisas virá quando elas já estiverem ocorrendo (isto é, quando fazê-las passar a produzir reforçadores). Algumas mudanças não requerem vontade: requerem lidar com a falta dela.

* Para quem quiser saber mais sobre os conceitos de motivação e operação estabelecedora, fica a sugestão de leitura:

Miguel, C. F. (2000). O conceito de Operação Estabelecedora na Análise do Comportamento. Psicologia: teoria e pesquisa, 16(3), 259-267.

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Escrito por Renata Gomes

Psicóloga graduada pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Mestre em Psicologia Experimental pela Universidade de São Paulo (USP). Atua desde 2002 como psicoterapeuta, professora e supervisora de atendimento clínico no Instituto de Terapia por Contingências de Reforçamento (ITCR-Campinas). Atua também como psicoterapeuta na Clínica Selten.

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