Sejam bem-vindos, caros leitores e caras leitoras! Cá estou estreando nessa coluna e espero poder trazer temas interessantes, que acrescentem ao estudo e à prática dentro da Terapia de Aceitação e Compromisso. Para isso, conto com vocês para darem feedbacks e sugestões.
A cada mês falaremos sobre temas diversos e hoje proponho adentrarmos o mundo o terapeuta ACT. Para isso, começarei recomendando um livro, que será o norteador da coluna de hoje: Mindfulness for two, de Kelly Wilson. Kelly Wilson é um autor central para a ACT e esteve presente desde o início da produção científica na área. Ele tem participado de alguns debates teóricos importantes argumentando sobre a importância da utilização dos chamados “termos de nível médio” (middle level terms) na produção científica e prática clínica, um tema que tem gerado opiniões divergentes na comunidade acadêmica e que pode ser retomado em uma coluna futura. Para hoje, porém, gostaria de ressaltar que, independente de quaisquer posições, Kelly Wilson tem se dedicado a estudar um tema que considero de extrema importância para a clínica analítico-comportamental, especialmente para os terapeutas que se interessam em trazer algo da ACT para a sua prática: o terapeuta.
O terapeuta pode ser um tema? Sim, e apesar de muito importante, por vezes tem sido negligenciado. Ao falarmos sobre desfusão, aceitação, valores e outros conceitos importantes para a ACT, nos focamos nos nossos clientes. Que eventos aversivos exercem controle sobre seus comportamentos afastando-os os do que é importante? Quais são as esquivas que aparecem quando tentamos abordar assuntos difíceis durante a terapia? Essas são questões importantes e ocupam um grande espaço nas preocupações de um terapeuta. Porém, até que ponto consideramos os mesmos processos ocorrendo em nós mesmos? A preocupação com a precisão técnica e a intervenção correta a se fazer em um determinado momento pode muitas vezes nos custar algo no setting terapêutico. A proposta de Wilson então é um mindfulness a dois, um olhar voltado ao cliente, mas também ao terapeuta enquanto sujeito pertencente àquela relação.
Para isso, o autor se propõe a falar sobre ACT usando suas experiências enquanto terapeuta e supervisor para dar um tom mais pessoal e informal ao livro. Ele passa por uma discussão sobre a cultura e suas implicações no sofrimento humano e então parte para uma explicação sobre os princípios comportamentais básicos importantes para se entender e utilizar a Terapia de Aceitação e Compromisso. A partir disso, Kelly Wilson apresenta rapidamente a ACT para então discutir como integrar uma prática de mindfulness na interação terapeuta-cliente. Cliente e terapeuta se alternam como foco de análise e são discutidos obstáculos e estratégias no contato de ambos com o momento presente. Essa parte final se apresenta como a mais forte, uma vez que traz o diferencial desse livro diante da bibliografia publicada em ACT, um viés muitas vezes esquecido em meio à nossa preocupação técnica.
A ACT, desde sua proposição teórica, aponta para a importância do momento presente. Isso se dá (1) na intenção de fazer com que o comportamento do cliente esteja mais sob controle das contingências não verbais do que de regras, e (2) aumentando o controle das contingências presentes sob o comportamento do cliente, para que esquivas apareçam no setting e comportamentos alternativos possam ser reforçados. Essa não é uma tarefa fácil, uma vez que o sujeito já chega com seu repertório estabelecido e quaisquer mudanças pretendidas não são simples de serem alcançadas. Mas… e quanto ao terapeuta? Onde entram as suas dificuldades de estar no momento presente? Assim como qualquer pessoa, quando o terapeuta age mais sob controle de regras, ele se distancia da contingência que se apresenta à sua frente; as implicações aqui, porém, são consideravelmente graves: o cliente deixa de ser o foco da terapia.
O sujeito que chega para a nossa clínica muito frequentemente se encontra em uma posição de fuga e afastamento do sofrimento, grosso modo, aquilo que ACT se refere como esquiva experiencial. É ingênuo da nossa parte, porém, achar que essa esquiva de experiências aversivas é um comportamento comum apenas de um lado da relação terapêutica.
Quando um terapeuta entra em terapia, se depara com essa realidade cruel: eu também tenho problemas. Muitas vezes o repertório principal para lidar com esses problemas é de fuga. Outras muitas vezes, o repertório é de resolvê-los. Se há um problema, ele precisa ser resolvido. Não está muito distante da fuga, uma vez que eu só posso ser feliz ou fazer o que é valoroso para mim quando essa experiência ruim desaparecer. Mas se sempre fugimos/resolvemos (d)o que difícil ou doloroso, qual a probabilidade de não repetir esse repertório estando com um cliente que está passando por tantos eventos difíceis e dolorosos?
Para demonstrar esse ponto, Kelly Wilson se refere a um exercício que faz em sessões de supervisão. O exercício consiste em fazer ao terapeuta sendo supervisionado a seguinte pergunta: o seu cliente está sendo para você um problema de matemática ou um pôr-do-sol? A pergunta parece um pouco estranha a princípio. O que fazemos com um problema de matemática? Analisamos. Resolvemos. Se estiver muito difícil, podemos tentar pedir ajuda a alguém, ou se estiver muito difícil mesmo, eventualmente desistimos. O que fazemos com um pôr-do-sol? Olhamos. Apreciamos. Percebemos as cores, as nuances. E como estamos agindo com nossos clientes? Olhamos, apreciamos e percebemos suas sutilezas ou procuramos resolvê-los, encontrar a resposta certa?
A resposta a essa questão não é fácil. A apreciação não é algo simples e nem significa que nunca haverá problemas a serem resolvidos, mas parece ser um ponto de partida para um trabalho importante.
Passamos por uma formação na qual precisamos ser apurados tecnicamente. Passamos pelo treinamento conceitual em Behaviorismo Radical e Análise do Comportamento e aprendemos a importância de entender os conceitos e utilizá-los corretamente. Me parece, porém, que “apreciar o pôr-do-sol” é um bom lugar inclusive para que façamos melhores análises. Estar com o cliente – realmente estar – é o lugar a partir do qual podemos entender suas experiências, exercer empatia e estabelecer um vínculo significativo. A partir disso, estamos mais sensíveis aos estímulos relevantes ocorrendo na sessão do que a estímulos distratores dentro e fora da nossa própria pele.
Apreciar o pôr-do-sol não significa que não nos distrairemos, mas que teremos flexibilidade suficiente para percebermos que nos distraímos e voltarmos ao que importa. Nesse sentido, o mindfulness a dois se apresenta como uma ferramenta importante na preparação clínica para que possamos lidar com o “simples” fato de que nossos clientes apresentam uma similaridade funcional com os benditos eventos privados que todos teimamos em evitar: a incontrolabilidade.
Em Mindfulness for two, Kelly Wilson procura mostrar ao terapeuta os obstáculos que ele enfrenta ao tentar estar presente com seus clientes na sua prática. Contando a partir da sua própria experiência, ele destaca os processos que estão envolvidos sob a perspectiva da ACT e como eles ecoam no terapeuta e no cliente. É um livro que é útil para terapeutas iniciantes e que tenham curiosidade sobre a Terapia de Aceitação e Compromisso, uma vez que faz uma introdução a ela, salientando inclusive os princípios comportamentais envolvidos nos processos trabalhados. Por outro lado, também é uma leitura importante para os já iniciados na área, já que apresenta esse enfoque no terapeuta e traz uma reflexão que é enriquecedora em qualquer momento que o profissional se encontre em sua prática clínica.
Referência:
Wilson, K. G. (2009). Mindfulness for two: An acceptance and commitment therapy approach to mindfulness in psychotherapy. New Harbinger Publications.