O tema suicídio ainda é um tabu devido a várias questões – principalmente por aquelas de teor moral e ético. Por ser um tabu, fala-se pouco a respeito e não há devidos esclarecimentos sobre o assunto. Na escuridão dos desconhecidos e na ausência de premissas que expliquem determinado fenômeno atribuindo a ele um conjunto de funções, nascem os mitos. Mitos fazem parte de práticas sociais. São importantes na composição do arcabouço cultural de uma sociedade. Não se configuram como problema em si mesmo. Antes, o problema potencial pode decorrer do uso que se faz do mito, de sua função. Quando este é tido como verdade única e utilizado para balizar decisões éticas, tem-se então um problema. No solo do silêncio sobre suicídio, irrigado pelo mistério que é característica do tabu, o mito encontra então fertilidade. Este texto inaugura uma série de ensaios sobre mitos acerca do suicídio e do comportamento suicida. Nesta série, almeja-se lançar luz sobre tais crenças sociais a fim de esclarecer e quebrar inverdades que têm contribuído para a manutenção do estigma, da desesperança, e do limite ao acesso de ajuda para muitos que sofrem de ideações ou histórico de tentativas de suicídio, além daqueles que perderam entes queridos através desta tragédia.
Este primeiro mito surge principalmente no desconhecimento das variáveis específicas relacionadas às tentativas de suicídio ou mortes por suicídio de alguém. Quando não se sabe sobre os fatores que motivaram a morte auto-infligida de uma pessoa, diz-se então que não houve sinais prévios. Outrossim, tal mito é afirmado na premissa oposta de que, em uma tentativa de suicídio, quem não quer mesmo se matar sinaliza seu desejo de morte: a sinalização teria outra função que supostamente não mereceria atenção ou cuidado (veremos isto em escritos posteriores).
Em uma entrevista concedida ao Freakonomics Radio em agosto de 2011, um taxista tailandês residente há mais de 15 anos na cidade de San Francisco, contou uma experiência sobre o tema:
“Em uma noite normal de trabalho, um rapaz entrou no taxi e me pediu para ir à ponte Golden Gate. Eram aproximadamente 11 da noite. Eu disse “okay” e o dirigi até lá. Ele então me interrogou: “Você não vai me perguntar por que quero ir até à ponte Golden Gate a esta hora da noite?”, ao que respondi: “Não. Acho que se você quiser me contar, então eu o ouvirei”. E ele então afirmou: “Eu vou subir lá em cima e me jogar da ponte”. Eu disse “okay”. Ele perguntou: “você não vai me impedir?”. “Por que eu deveria te impedir?”, devolvi a pergunta. Parei o taxi sobre a ponte e o preço da corrida era sete dólares. Ele me pagou com uma nota de dez, e eu lhe disse: “acho que você não vai precisar do troco, não é?”. “Acho que você está certo… eu não vou precisar do troco…”, disse ele. Então eu disse, “Okay”, e desativei a trava da porta. Ele saiu do carro, eu manobrei e liguei para o meu despachante, e disse ao rapaz: “Por que você não liga para a patrulha do porto?”. Talvez… Talvez eu tenha sido muito legal com ele… Não sei o que aconteceu depois, se ele realmente pulou ou não”.
A ilustração acima mostra como o mito em discussão pode influenciar o comportamento. As conclusões equivocadas sobre o comportamento do rapaz usuário do taxi são: se alguém dá sinais de que quer tirar a própria vida, esses sinais não são verdadeiros, pois quem quer mesmo se matar não avisa. Talvez um dos grandes problemas desta crença seja sua pretensa generalização. Há diversas especificidades envolvidas. Após o suicídio de alguém, é comum ouvir pessoas próximas dizerem que nunca desconfiaram de nada e que sinais nunca foram emitidos antes da morte. Surge assim uma estranheza entre as pessoas enlutadas, no sentido de que achavam conhecer profundamente a pessoa que morreu pelas próprias mãos. Esta dúvida pode reforçar o mito. Mas a incerteza da dúvida explicita algo que não se conhece, e não a confirmação do mito.
Na grande maioria das vezes, pessoas que intentam infligir a própria morte emitem sim sinais do que se passa e do que é possível acontecer. Uma das grandes dificuldades, no entanto, diz respeito ao fato de que não existe um consenso na comunidade científica sobre o que venham a ser tais sinais, uma vez que suas variações são grandes e podem assumir alto nível de especificidade de acordo com a cultura, grupo social, e história de vida. Outra necessidade importante é a diferenciação entre sinais preditivos e fatores de risco. Alguns pesquisadores [1] tem se dedicado a esse esforço de elencar sinais comuns que possam prognosticar com certo nível de precisão sobre a probabilidade de alguém se engajar em comportamentos suicidas.
Mas que sinais são esses? Como percebê-los?
De modo geral, esses sinais são verbais, e por verbais aqui entenda-se qualquer tipo de comunicação com função de transmitir sentimentos e intenções produzidas por um contexto aversivo. Considerando que se trata de um tabu e um assunto socialmente estigmatizado, a dificuldade de expressar verbalmente o desejo de tirar a própria vida é imensa, especialmente com pessoas próximas. Rudd e pesquisadores colegas [1] fazem uma diferenciação entre fatores de risco e sinais preditivos do comportamentos suicida. De acordo com esses pesquisadores, fatores de risco são construtos definidos, empiricamente evidenciados, aplicáveis a um nível populacional, implicam risco em longo prazo, possuem implicações limitadas de intervenção, possuem caráter objetivo, e sua delineação é voltada para especialistas e clínicos. Os sinais de alerta sobre o comportamento suicida possuem características distintas quando comparados aos fatores de risco: não possuem definições precisas, são evidenciados clinicamente, aplicáveis a um nível individual, implicam risco iminente, suas possibilidades de intervenção são amplas mas demandam especificação, possuem caráter subjetivo, e sua delineação é voltada para especialistas, clínicos e para a população geral.
A conversa que sinaliza ideações suicidas e possibilidades de engajamento em tentativas de suicídio pode surgir por vias discretas e metafóricas, com expressões do tipo “vontade de sumir/desaparecer do mundo”, “dormir para sempre”, ou “dormir e não mais acordar”, “não devia ter nascido”, até expressões mais diretas como “seria melhor se eu estivesse morto”, “não quero mais viver”, “quero dar um fim a tudo isso”. O mais importante é sempre explorar e analisar o contexto de onde tais expressões emergem, e nunca pensar tais sentenças isoladamente. O contexto pode ser acessado quando se inicia uma conversa de modo aberto, fraco, empático, respeitoso e não-crítico. A postura do ouvinte permitirá ou não o acesso ao que realmente se passa. Alguns aspectos enumerados pelos pesquisadores [1] a serem observados incluem:
- Expressar intenções de autolesão ou tentativas de suicídio.
- Procurar por métodos e instrumentos para provocar a própria morte.
- Comprar armas de fogo.
- Conversar ou escrever sobre a própria morte em diversos aspectos.
- Tomar algumas providencias como quitar todas as contas, preparar testamentos, compartilhar senhas de banco com familiares, dar os próprios bens como presente, etc.
- Visitar ou convidar pessoas para se despedir delas.
Acompanhados por alguns dos sentimentos e comportamentos que envolvem:
- Desesperança.
- Raiva, ódio, e busca por vingança.
- Engajamento em atividades de risco, sem raciocinar sobre as consequências de suas ações.
- Aprisionamento (como se não houvesse saída de uma situação difícil).
- Fracasso ou derrota.
- Aumento do uso de álcool e/ou outras drogas.
- Excluir-se da família, amigos, ou sociedade.
- Ansiedade, agitação, dificuldade intensa para dormir, ou excesso de sono e dormir o tempo todo.
- Mudanças drásticas de humor.
- Nenhuma razão para viver, sentimento de vida sem propósito ou direção.
- Sentir-se um peso para os outros.
Os sinais de que algum problema de saúde pode estar por vir são conhecidos pela população, assim como o que eles podem indicar (dores de cabeça, febre, dormência em algum membro do corpo, por exemplo). Se mais pessoas estivessem conscientes sobre os sinais de stress psicológico severo, talvez poderíamos reduzir e prevenir suicídios. Não se trata, no entanto, de culpar alguém por algo que já aconteceu. Trata-se, sim, de se construir um trabalho coletivo e colaborativo de prevenção ao suicídio.
E como reagir?
A postura do taxista tailandês foi a pior possível. Talvez seu o sentimento de estar sendo muito mal pode o ter influenciado a sugerir ao rapaz contactar a equipe de salvamento do porto. Mas ainda assim, o motorista fala e age como se sua crença (o mito em questão) fosse um fato. Um dos grandes problemas diz respeito aos efeitos do mito: aqueles que nele acreditam tendem a agir de modo indiferente aos sinais que indicam a probabilidade de um suicídio, concordando com outro mito – o de que o suicídio é algo inevitável, isto é, uma vez alguém possui ideações suicidas, a morte por suicídio é uma certeza.
É importante levar uma conversa sobre suicídio sempre a sério e não subestimá-la. A melhor forma de reação é aquela que cria um contexto de aceitação, empatia, comprometimento, atenção, respeito, não-moralismo, e disposição para ajudar. Sugerir soluções não é aconselhado. Ouvir e convencer a pessoa a buscar ajuda profissional são aspectos essenciais. Falar da importância de um acompanhamento psicológico e contar experiências positivas de alguém que se beneficiou deste tipo de serviço (ou da própria experiência, caso tenha vivenciado) são posturas altamente recomendadas.
Se você leu este texto e sente que precisa de ajuda imediata, o Centro de Valorização da Vida (CVV) está à disposição para conversar a qualquer momento do dia e da noite. Ligue agora gratuitamente para o número 141 ou acesse http://www.cvv.org.br.
Referencia:
Rudd, M, D. et al. (2006). Warning Signs for Suicide: Theory, Research, and Clinical Applications. Suicide and Life-Threatening Behaviour, 36(3), 255-262.