Esse tal de mindfulness…

Esse tal de Mindfulness
por Rodrigo R.C. Boavista  || rodrigorcboavista@gmail.com

A senhora me desculpe, mas no momento não tenho muita certeza. Quer dizer, eu sei quem eu era quando acordei hoje de manhã, mas já mudei uma porção de vezes desde que isso aconteceu. (…) Receio que não possa me explicar, Dona Lagarta, porque é justamente aí que está o problema. Posso explicar uma porção de coisas mas não posso explicar a mim mesma…

(Lewis Carrol, Alice no País das Maravilhas)

    Quem é capaz de explicar esse tal de mindfulness? Por vezes, me vi em diálogos que mais pareciam o papo entre Alice e a Lagarta. Não falo apenas dos eventos científicos e conversas informais com colegas… Mas também das inúmeras páginas sobre o tema que já me consumiram. Cansei de perguntar: “Quem é você, mindfulness?”, “O que é você, mindfulness?”, “Por que, raios, atualmente todo mundo vive falando de você, mindfulness?”… E, claro… “Por que você veio parar no mundo da ciência do comportamento, mindfulness?”

     A resposta tem sido a mesma… “eu sei quem eu era quando acordei hoje de manhã, mas já mudei uma porção de vezes desde que isso aconteceu”. Parece-me evidente que a versão Alice do mindfulness ocupa posição semelhante à protagonista original: se por um lado representa a potencial salvação das criaturas do País das Maravilhas, por outro, é a própria definição de confusão.

  As práticas de mindfulness têm origem na tradição budista que datam de cerca de 2500 anos (Chiesa, 2012). Siddharta Gautama, o Buda (palavra em sânscrito para “o iluminado”, “o desperto”, the awakened one), deixou como legado um sistema de crenças e tradições para aqueles que, como ele, ambicionam alcançar a verdadeira liberdade do sofrimento e o conhecimento – o budismo fala em iluminação e renascimento.

  O Nobre Caminho Óctuplo[1] descreve oito práticas fundamentais que encaminham à liberdade dos prazeres sensoriais e da ignorância – segundo o budismo, as verdadeiras causas do sofrimento. O mindfulness correto é o sétimo fator deste sistema. Diferentemente da sua apropriação ocidental, em origem, o mindfulness carrega valor ético. Seu praticante deve estar certo de que sua atividade leva à felicidade genuína, encaminha à iluminação, e que pode ser aplicada aos outros (Kang & Wittingham, 2010).

   Assim como a psicologia, o budismo tem sido apresentado a partir de diferentes escolas – Theravada, Mahayana, Vajrayana, são exemplos. Em cada uma delas o mindfulness é compreendido e ensinado de modo particular. Sua definição perpassa desde a “vigilância introspectiva que monitora a estabilidade e clareza da consciência” a “consciência nua e crua da experiência momento-a-momento” até mesmo “o processo de recolher sistematicamente uma sequência de ideias” (Bodhi, 2011).

  Fato é que nos idos de 1970 Jon Kabat-Zinn, médico estadunidense com P.hD em biologia molecular, incorporou no seu programa de redução de estresse e relaxamento (que mais tarde passou a se chamar Mindfulness-Based Stress Reduction Program, MBSR) práticas meditativas e posturas do Hatha Yoga. Deste momento em diante as terapêuticas ocidentais aproximaram-se do mindfulness.

    Ahhh… o encantamento foi imediato! Conforme Kabat-Zinn (1982), sua intervenção era mais barata do que as opções do mercado, garantia maior adesão dos pacientes, e claro, era muito mais eficaz, especialmente para casos de dor crônica.

    A primeira tentativa ocidental de definir mindfulness delineou seus contornos como a

“consciência que emerge através de, intencionalmente, e sem julgar, prestar atenção às experiências que se revelam momento-a-momento no presente”
(Kabat-Zinn, 1994).

   Mais recentemente, Bishop et al. (2004) o apresentam como uma “habilidade aprendida” que se divide nos componentes de auto regulação da atenção (sustentar, alternar e inibir processos elaborativos) e orientação para a experiência (curiosidade, aceitação e abertura).

    As definições ditas operacionais não são melhores do que isto. Nem o são as comportamentais! Ainda são escassas as leituras do mindfulness via processos comportamentais básicos e/ou via padrões neurofisiológicos (Baer, 2003; Hayes & Shenk, 2004; Fletcher, Hayes, & Schoendorff, 2010). Contudo, parece que toda esta indefinição – que inclusive acompanha o mindfulness desde suas raízes – não tem inibido os prestadores de serviço a lucrar sobre sua aplicação e ensino.

    Como qualquer fenômeno, há vantagens e desvantagens nisso tudo. A ciência pode e deve investiga-lo – e, se possível, aprimorar toda ferramenta que tenha potencial para dar conta dos males da civilização. A partir desses muitos holofotes dirigidos ao mindfulness, aquilo que antes era revestido de aura mística hoje está cada vez mais próximo da linguagem empírica tão tradicional na ciência ocidental.

    O problema, ou parte dele, reside no fato de que publicização e vulgarização conceitual estão intimamente relacionados. Apenas uma fração do mindfulness foi incorporado pelo ocidente: podemos falar até numa “apropriação topográfica ou técnica”. Em raiz, o budismo imputa caráter ético (correto x incorreto) e teleológico nas práticas de mindfulness (atingir a iluminação e o renascimento). As terapêuticas modernas as tem utilizado enquanto ferramenta curativa, e nada mais.

    Observe o leitor que um fenômeno que nasce multifacetado e banhado em águas muito diferentes daquelas que nutrem a ciência ocidental acabou sendo reduzido à um conjunto de “truques terapêuticos” que tem sido vendido como tábua de salvação. E o mais grave, apesar de prescreverem o santo remédio, os druidas modernos parecem não fazerem a menor ideia das propriedades definidoras do seu elixir!

    “Mindfulness, devemos lhe abandonar?”. Acredito que não! A expressividade das evidências empíricas não nos permite tal manobra. Não obstante, talvez devamos adotar uma “perspectiva-Alice”: talvez estejamos diante apenas das primeiras transformações do mindfulness. Talvez ainda seja só o início da aventura através da Toca do Coelho.

 

Referências

Baer, R. (2003). Mindfulness training as a clinical intervention: A conceptual and empirical review. Clinical Psychology: Science and Practice, 10, 125-143.

Bishop et al. (2004). Mindfulness: A proposed operational definition. Clinical Psychology: Science and Practice, 11, 3, 230-241.

Bodhi, B. (2011). What does mindfulness really mean? A canonical perspective. Contemporary Buddhism, 12, 19-39.

Chiesa, A. (2012). The difficulty of defining mindfulness: Current thought and critical issues. Mindfulness.

Fletcher, L., Hayes, S., & Schoendorff, B. (2010). Searching for mindfulness in the brain: A process-oriented approach to examining the neural correlates of mindfulness. Mindfulness, 1, 41-63.

Hayes, S., & Shenk, C. (2004). Operationalizing mindfulness without unnecessary attachments. Clinical psychology: Science and Practice, 11, 3, 249-254.

Kabat-Zinn, J. (1994). Wherever you go, there you are: Mindfulness meditation in everyday life. New York: Hyperion.

Kabat-Zinn,J. (1982). An outpatient program in behavioral medicine for chronic pain patients based on the practice of mindfulness meditation: Theoretical considerations and preliminar results. General hospital psychiatry, 4, 33-47.

Kang, C., & Wittingham, K. (2010). Mindfulness: A diologue between Buddhism and clinical psychology. Mindfulness, 1, 161-173.

[1] Compreensão correta, pensamento correto, fala correta, ação correta, meio de vida correto, esforço correto e concentração correta são as demais práticas.

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Escrito por Rodrigo Boavista

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