Em 2015 li dois livros interessantíssimos. O primeiro foi Ele Está de Volta, do escritor alemão Timur Vermes, e o segundo foi O homem do castelo alto, de estadunidense Philip K. Dick.
O primeiro se passa na Berlim contemporânea, o ano é 2012 e, de repente, Adolf Hitler se materializa em meio a um terreno baldio. O livro é narrado em primeira pessoa, sendo a pessoa em questão o próprio Hitler, que imediatamente se pergunta o que diabos está acontecendo, já que os sinais imediatos não indicam a ocorrência de guerra alguma e que não parece haver muitos vestígios da cidade que deixou. Daí em diante há uma série de episódios divertidíssimos, protagonizados pelo próprio Hitler em seus sabores e dissabores diante do novo mundo que lhe foi apresentado. Tomado como um sósia realista do ditador que nunca “sai” do personagem, Hitler aos poucos consegue um espaço na mídia aberta e um número razoável de seguidores, e o autor satiriza o fascínio cada vez maior do país pelo ditador, símbolo maior de seu passado trágico. A história se repete de certa forma.
O segundo se passa em 1962, mais precisamente em um futuro distópico pós Segunda Guerra Mundial vencida pelo Eixo. A Alemanha lançou sua bomba atômica nos EUA e rendeu o país, que enfraquecido com a morte do presidente Roosevelt em um atentado não teve condições de lidar com as crises econômicas e o poderio militar imposto pelos japoneses e alemães. A África foi devastada pelos nazistas, colônias se espalharam pelo mundo, e os EUA foram divididos em dois: os nipônicos Estados do Pacífico, ou costa oeste, e os alemães Estados Nacionais Socialistas da América, a costa leste. As planícies centrais configuram uma zona neutra não ocupada, repleta de todo tipo de caçadores de recompensas e fugitivos dos regimes totalitários. O enredo avança em torno de alguns personagens centrais, e em comum a quase todos é a fé no I Ching, conhecimento milenar chinês que consiste em um livro e em um jogo de palitos capaz de revelar a verdade sobre os acontecimentos. Em meio a toda essa realidade alternativa, há uma outra realidade alternativa, contida em um livro banido na costa leste e popular na zona neutra e no oeste, chamado Grasshopper lies heavy, que conta nada mais, nada menos do que a história da vitória dos Aliados contra o Eixo. O mais curioso? O I Ching indica que os acontecimentos do livro são verdadeiros, a despeito da dura realidade cotidiana.
Acho a construção de realidades alternativas uma coisa fantástica, e por vezes gostamos tanto delas que temos dificuldade em lidar com o mundo em que estamos fadados a encarar todos os dias na fila do metrô. Me interessa ainda mais quando essa realidade alternativa é calcada em fatos históricos ou teorias da conspiração: é como se algum evento tivesse ocorrido de forma diferente e toda a realidade como conhecemos foi alterada. No caso, a Segunda Guerra teria sido vencida pelos nazifascistas e o mundo afundado em constantes genocídios e autoritarismos. O que pode ser feito para mudar essa situação? Aparentemente nada, já que o poderio militar das potências, especialmente da Alemanha, é incomparável, e a SS e o Kempeitai tem olhos e ouvidos em todos os lugares.
O que me impressiona em minhas próprias reações sobre tais realidades é o quanto me parecem verossímeis ou plausíveis. Não é preciso muito esforço para imaginar uma polícia com poderes exacerbados e a tortura como método oficial de procedimento do Estado. Da mesma forma, não parece que vivemos em um mundo em que tenhamos um pouco mais de privacidade do que o de O homem do castelo alto, porque as tecnologias de informação disponíveis permitem às grandes corporações e aos Estados compilar um número impressionante e ultrajante de dados sobre nós.
Carlos Lopes e Carol Laurenti (2015), em sua “análise comportamental da maldade”, descreveram o quão próximos de nós estão os homens que gerenciavam as câmaras de gás e campos de concentração. Esse é outro aspecto fascinante, a construção humana das personagens envolvidas. Altos postos da SS e do Kempeitai são retratados como o que são, apenas pessoas. Isso significa que mais do que nascer, viver, se reproduzir e morrer, constituem família, possuem hábitos da lazer, gostam de esportes, de literatura e de política. Em suma, o segundo em comando na cadeia hierárquica da SS, abaixo apenas de Hitler, é uma pessoa como você e eu, com histórias e contradições típicas de todo ser humano, com o agravante de encararem uma constante guerra contra inimigos que são, praticamente, todo mundo que não aqueles de sua própria descendência.
Ao mesmo tempo que estamos longe de viver em um mundo dominado pelo nazismo alemão, vivemos em um mundo que coloca o germe do fascismo em cada um de nós a cada momento. Talvez o susto, e mesmo fascínio, que tais distopias exerçam sobre nós (o nós aqui cobre desde os que escreveram aos que produziram um filme sobre o primeiro livro e uma série de televisão sobre o segundo, sem falar da recente discussão inflamada sobre o relançamento do livro Mein Kampf, de Hitler, que se tornou domínio público) venha do fato de que não conseguimos nos livrar desse fantasma. Tão longe e ao mesmo tempo tão perto. Tão asqueroso e ao mesmo tempo tão familiar.
Não é preciso perguntar ao Jair Bolsonaro o que ele pensa a respeito de pessoas de diferentes orientações sexuais (para usar um exemplo emblemático) para termos o gostinho da pesada vitória do fascismo, basta ler os comentários de praticamente qualquer matéria que seja veiculada em portais de internet, ou no Facebook e no Twitter. A alteridade é um problema a ser exterminado, é um alvo a ser devorado e subjugado. Mesmo quando estamos falando de uma menina de 12 anos em um programa de culinária da televisão, alvo sexual em potencial.
Em seu Como conversar com um fascista, a filósofa Márcia Tiburi se propõe a responder a pergunta título, mas não no sentido de apresentar um procedimento que permita conversar com o inconversável, e sim de convidar a um constante autoexame que pergunta: será que estamos permitindo que a distopia imaginada por Dick ou a repetição da história imaginada por Vermes se tornem concretas? Será que estamos conseguindo promover formas de relações com as pessoas pautadas na alteridade?
Para não dizer que não falei das flores: o que podemos fazer, enquanto analistas do comportamento, para impedir que as distopias imaginadas por Vermes e Dick não se concretizem a cada dia? Qual o grão que podemos plantar nessa terra fértil em violência e exploração? Como produzir contingências sociais que promovam o olhar para a alteridade, em detrimento do desejo de seu extermínio?
Afinal, o mundo inteiro falando a “língua do reforçamento positivo” é um sonho ou um pesadelo? Uma utopia ou uma distopia?
Referências
Dick, P. K. (2015). O homem do castelo alto. Leya. (Original de 1962).
Tiburi, M. (2015). Como conversar com um fascista. Editora Record.
Vermes, T. (2014). Ele está de volta. Intrínseca. (Original de 2012).
Laurenti, C. & Lopes, C. E. (2015). Reflexões comportamentalistas sobre a maldade contemporânea. Em: Laurenti, C. & Lopes, C. E. (Orgs.), Cultura, democracia e ética: reflexões comportamentalistas. (p. 15-42). Maringá: Eduem.