Texto escrito em colaboração com Gibson J. Weydmann
Recentemente, temos observado um aumento no interesse de várias pessoas na Análise do Comportamento. Muitas delas possuem formação em outros modelos de compreensão do comportamento humano e, não raramente, é possível perceber um certo desconforto com conceitos do paradigma analítico-comportamental, por vezes epistemologicamente incongruente com outros saberes da psicologia. Um dos pontos mais importantes e polêmicos das terapias comportamentais é justamente o coração destas terapias: a Análise funcional. Esta ferramenta é utilizada em inúmeras terapias comportamentais como a FAP, ACT, DBT e TAC, dentre outras (para uma revisão das siglas e modelos, ler Passos, (2016)), de forma adaptada a cada modelo, embora muitas vezes isto não esteja em evidência. Mas então, o que seria esta Análise funcional (AF)? Ela é necessária para o uso efetivo das intervenções comportamentais? Quais os riscos do uso de técnicas comportamentais sem uma compreensão funcional? Este texto visa responder a algumas destas perguntas e salientar a importância teórica e prática da AF para a clínica e para a efetividade das intervenções comportamentais.
Análise funcional
A AF envolve o levantamento sistemático de variáveis antecedentes e consequentes para a explicação do comportamento, de acordo com o modelo de seleção por consequências (Skinner, 2007). Para a análise do comportamento, nossas ações são selecionadas pelas consequências que estas têm no ambiente. Em uma contingência de reforçamento, a função do comportamento seria a relação entre uma determinada performance e o produto desta, seja pelo acréscimo de alguma variável, ou a retirada de alguma variável (Ferster, 1973).
Por exemplo, um indivíduo X dá um presente para seu parceiro Y. O parceiro Y, diante do presente, reage com carinho para com o indivíduo X. Verifica-se que, com o passar do tempo, o comportamento de X de presentear Y aumenta de frequência. O que mantém o comportamento de X é um reforçador positivo (aumenta a frequência e magnitude de uma ação e acrescenta um estímulo). A função do comportamento de X, neste caso, é receber carinho de Y. Comportamentos governados por este tipo de consequência normalmente geram a aproximação do contexto onde o reforçador positivo é provável. Em um outro exemplo, o mesmo indivíduo X está com dor de cabeça e toma uma medicação analgésica. A dor de cabeça, uma condição aversiva, é aliviada pela ingestão do remédio. Neste caso, a consequência foi um reforço negativo (aumenta a frequência e magnitude de uma ação e retira uma condição aversiva). Aqui a função do comportamento de X é aliviar a dor. Comportamentos governados por reforçadores negativos estão vinculados à fuga e à esquiva de contextos aversivos (Sidman, 2011).
Ainda existe um terceiro tipo de conseqüência que influencia o comportamento: a punição. O indivíduo X fez uma pergunta em sala de aula e a professora o acusou de fazer uma pergunta boba. Com isto a freqüência de perguntas de X diminuiu (i.e., houve uma supressão do comportamento), pois o comportamento de perguntar ficou sob controle de uma consequência punitiva. Os comportamentos consequenciados com punição tendem a diminuir de frequência e podem levar à fuga e esquiva de situações onde houve punição, através do reforçamento negativo (lembrando, retirada da condição aversiva) (Sidman, 2011). Os termos “positivo” e “negativo” dizem respeito apenas a operações matemáticas das consequências (apresentação ou retirada de um estímulo) (Skinner, 1981). A relevância de estudar o efeito destes reforçadores e da punição no comportamento humano e animal está em compreender a função que o comportamento tem diante da consequência que ele produz.
Estes exemplos simples ilustram fenômenos encontrados no cotidiano, em grande parte de nossas ações, e que são cruciais na prática clínica comportamental. De acordo com o paradigma Behaviorista Radical (Skinner, 2006) grande parte dos comportamentos podem ser compreendidos a partir destas duas funções (aproximação, por reforço positivo, e afastamento, por reforço negativo). A função de um comportamento é sempre contextual; mudando o contexto pode-se mudar a função. Observe o seguinte exemplo: o indivíduo X pode estudar tanto porque a leitura o ajuda a adquirir conhecimento em uma área de interesse (reforço positivo) quanto para esquivar-se de uma nota ruim na escola (reforço negativo). Neste caso a função do comportamento é mais importante que a forma deste (topografia) (Tsai et al., 2008). Mesmo diferentes topografias podem ter a mesma função; para ter boas notas em literatura no colégio (o reforço positivo), o indivíduo X pode tanto ler os Lusíadas, quanto estudar vídeo-aulas no Youtube – ações diferentes para a mesma finalidade. A AF também engloba uma profunda investigação tanto do condicionamento respondente (como as emoções) quanto do condicionamento operante, através da análise dos três níveis de seleção: filogenética, ontogenética e cultura (Skinner, 2007). Por fim, deve-se salientar que a AF comporta inúmeros outros fenômenos comportamentais, que não serão descritos no presente texto, tais como extinção, esquemas de reforçamento, operações motivadoras, comportamento verbal, regras e autorregras, modelagem, consciência (self), contingências culturais, discriminação, equivalência de estímulos, dentre outros.
E na clínica, como é?
As funções dos comportamentos do indivíduo X são compreendidas de acordo com sua história de vida, que é considerada a partir de sua relação com ambiente e com os reforçadores e punições que foram apresentados para os comportamentos do mesmo. As experiências moldaram a forma como X lida com seu mundo. O analista do comportamento busca compreender a origem da queixa de seu cliente, devendo buscar uma compreensão aprofundada e descritiva das variáveis históricas da vida deste, caso contrário, interpretações errôneas podem ser feitas sobre a função do comportamento alvo de tratamento.
As hipóteses funcionais levantadas devem ser testadas pelo analista do comportamento através do manejo de contingências. A AF não deve ser considerada uma verdade absoluta, mas sim uma hipótese a ser confirmada ou descartada. Por exemplo, em uma sessão de FAP, o terapeuta verifica que um cliente que vem à terapia com queixas de sentir-se sozinho e incompreendido tende a não olhar para os olhos do terapeuta e responde a algumas perguntas superficialmente. O terapeuta levanta a hipótese de que o cliente desvia o olhar e o assunto como formas de esquivar-se (reforço negativo) de uma maior intimidade com o terapeuta, pois em sua vida demonstrações de intimidade foram punidas. O teste de hipóteses envolveria verificar se o cliente tem repetido este tipo de esquiva em outros contextos onde a intimidade está presente, como com amigos ou relacionamentos amorosos, ou eliciar comportamentos de exposição deste cliente e avaliar sua reação a reforçadores, através das 5 regras de FAP (Tsai et al., 2008).
Por depender da testagem de hipóteses a AF é uma ferramenta que deve ser continuamente empregada nas terapias de base analítico-comportamental. O uso de técnicas comportamentais sem a devida AF pode ser prejudicial para o cliente, incorrendo no risco de iatrogenia. Por exemplo, imaginemos que um determinado cliente venha para a sessão com a queixa de estar muito deprimido. Verifica-se que o cliente está sob constante estimulação aversiva no trabalho, associado a uma conduta passiva (acata todas as decisões do chefe sem contestação). Pode-se pensar que um dos focos de trabalho é o treino para que o cliente possa se empoderar e enfrentar o chefe. No entanto ao fazer isso o cliente é demitido e fica sem condições financeiras inclusive de pagar a terapia! Uma AF poderia descrever justamente a impossibilidade de uma conduta assertiva ser reforçada naquele ambiente. Com isto, o cliente piorou o seu quadro e diminuiu um repertório que fornecia reforçadores de longo prazo. Neste caso a AF poderia indicar a necessidade de ampliar repertório que facilitasse a busca de outro trabalho, e então desenvolver um padrão de ação mais ativo.
Uma das principais razões pelas quais a AF é pouco utilizada por terapeutas identificados com outros tipos de abordagem tem a ver com o conceito de comportamento funcional. Eventos públicos e privados (em especial regras e pensamentos) tidos como desadaptativos ou disfuncionais em alguns modelos de terapia são, para a análise do comportamento, funcionais (Kanter, Tsai, & Kohlenberg, 2010; Zettle & Hayes, 1982), pois apresentam alguma função reforçadora, geralmente de curto prazo, mas associadas a estimulação aversiva a médio e longo prazo. O que ocorre é que quando um indivíduo possui muitos comportamentos de esquiva, ele perde acesso a reforçadores de grade magnitude, o que pode gerar sofrimento (Hayes, Luoma, Bond, Masuda, & Lillis, 2006; Sidman, 2011). Outro fator funcional que é interpretado como desadaptativo por outras abordagens é a supressão comportamental. Diante de um nível elevado de punições o indivíduo pode suprimir muitos de seus comportamentos e adotar padrões de queixa e esquiva, que são respostas funcionais ao contexto punitivo que gerou desamparo (Ferster, 1973). Devido à esta visão diferenciada dos sintomas psicológicos e da função destes na sobrevivência, a AF tem sido pouco utilizada e deixada de lado por terapeutas comportamentais que não tem acesso aos conceitos básicos de Análise do Comportamento. Isto faz com que a função do comportamento seja confundida com seu conteúdo (e.g., pensamento como causa do comportamento) ou seja desconsiderada em favor da aplicação de técnicas focadas na topografia do comportamento.
Atualmente, temos uma quantidade grande de terapeutas de outras abordagens migrando para as terapias comportamentais contextuais. Estas modalidades de terapia utilizam de variações dos conceitos analítico-comportamentais, portanto, seguem uma lógica contextual e funcional da queixa. Devido ao fato de seus manuais recorrerem pouco aos conceitos filosóficos e práticos da epistemologia analítico-comportamental, ainda que os terapeutas formados nestas abordagens possuam a técnica necessária para trabalho, a ausência de conhecimento sobre a epistemologia diminui a flexibilidade do tratamento.
Mas qual a função da análise funcional?
A AF, enquanto ferramenta nuclear das terapias comportamentais, é uma forma de avaliação do comportamento que influencia de que forma o terapeuta deverá responder ao cliente. Uma AF efetiva propicia ao terapeuta a flexibilidade de poder intervir de acordo com as demandas do cliente, escolhendo as ferramentas mais indicadas, ou até mesmo criando ferramentas que possam servir para o mesmo fim almejado. A AF também permite que o cliente se torne consciente das variáveis envolvidas em seu comportamento, fortalecendo, desta forma, o seu autocontrole e a generalização de respostas desenvolvidas em terapia.
De acordo com a DBT, descrever funcionalmente o comportamento do cliente pode ser um tipo de validação (Linehan, 2010), assim como reforço da exposição de vulnerabilidades da FAP (Tsai et al., 2008). O próprio cliente pode ser treinado a descrever funcionalmente seu comportamento, o que para a FAP é o chamado comportamento clinicamente relevante 3 (Tsai, Kohlenberg, Kanter, Holman, & Loudon, 2012).
Por fim, ressaltamos a importância do ensino de terapias comportamentais estar acompanhado de um treinamento de conceitos básicos do Behaviorismo Radical e derivados, como o Contextualismo Funcional de Hayes (Ramnerö & Törneke, 2008) Os conceitos de análise do comportamento são cruciais para a efetividade da terapia e para a flexibilidade das intervenções. Mesmo que no primeiro momento os conceitos possam parecer muito complexos ou contraintuitivos, não é preciso ter medo da análise funcional do comportamento!
Referências
Ferster, C. B. (1973). A functional analysis of depression. American Psychologist, 28(10), 857–870. http://doi.org/10.1037/h0035605
Hayes, S. C., Luoma, J., Bond, F. W., Masuda, A., & Lillis, J. (2006). Acceptance and Commitment Therapy: Model, processes and outcomes. Behaviour Research and Therapy, 44(1), 1–25. http://doi.org/doi:10.1016/j.brat.2005.06.006
Kanter, J. W., Tsai, M., & Kohlenberg, R. J. (2010). The Practice of Functional Analytic Psychotherapy. Springer Science & Business Media.
Linehan, M. M. (2010). Terapia Cognitivo-Comportamental para Transtorno da Personalidade Borderline. (R. C. Costa, Trad.). Porto Alegre: Artmed.
Passos, J. A. F. (2016). As terapias comportamentais: um mar de siglas, ondas, concordâncias e discordâncias. Recuperado de https://comportese.com/2016/03/terapias-comportamentais/
Ramnerö, J., & Törneke, N. (2008). The ABCs of Human Behavior: Behavioral Principles for the Practicing Clinician (Context Press; 1 edition). Oakland, CA: New Harbinger Publications.
Sidman, M. (2011). Coerção e suas Implicações. São Paulo: Livro Pleno.
Skinner, B. F. (1981). Ciência e Comportamento Humano. São Paulo: Martins Fontes.
Skinner, B. F. (2006). Sobre o Behaviorismo. São Paulo: Cultrix.
Skinner, B. F. (2007). Seleção por conseqüências. Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva, 9(1), 129–137.
Tsai, M., Kohlenberg, R. J., Kanter, J. W., Holman, G. I., & Loudon, M. P. (2012). Functional Analytic Psychotherapy: Distinctive Features. Routledge.
Tsai, M., Kohlenberg, R. J., Kanter, J. W., Kohlenberg, B., Follette, W. C., & Callaghan, G. M. (2008). A Guide to Functional Analytic Psychotherapy: Awareness, Courage, Love, and Behaviorism. Springer Science & Business Media.
Zettle, R. D., & Hayes, S. C. (1982). Rule governed behavior: A potential theoretical framework for cognitive behavior therapy. In P. C. Kendall (Org.), Advances in cognitive behavioral research and therapy (Vol. 1, p. 73–118). New York, NY: Academic Press.