O texto antológico de James Holland, Servirão os princípios comportamentais aos revolucionários? faz 40 anos. Quaisquer considerações sobre o texto não podem ser feitas descoladas da vasta história científica e de militância do autor. Isso significa que pode ser interessante um panorama geral de suas obras mais questionadoras em direção ao texto aniversariante, para então apontar aquilo que considero relevante e o que entendo como problemático em suas propostas, agora com o peso de quatro décadas. Uma edição especial da Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva esta para sair, e nela constará um texto de minha autoria em parceria com Junio Rezende, no qual expandimos e discutimos com mais detalhes os pontos destacados aqui. Recomendo fortemente a leitura.
Seu outro antológico texto Behaviorismo: parte do problema ou parte da solução?, talvez tenha sido o que mais repercutiu, inclusive com uma ressalva com função de esquiva dos próprios editores do Journal of Applied Behavior Analysis na sua publicação, responsabilizando integralmente o autor pelas opiniões lá expressas. O ponto: o quão mal utilizada estava sendo a Análise do Comportamento no contexto social norte americano. O questionamento: por que os analistas do comportamento não estão trabalhando por justiça social, e sim se empenhando em práticas culturais reformadoras (no sentido pejorativo do termo, de manutenção da condição presente) e culpabilizantes? Concluindo de forma ainda mais contundente do que o próprio Skinner em seu Beyond Freedom and Dignity, o autor acusa sua própria “classe” (ou seus pares) de colaborar com o mito das causas internas e com a manutenção de uma visão de humano e de mundo que culpabiliza as pessoas por seus próprios erros, tirando a ênfase das condições nas quais se comportam e que constituem seus ambientes sociais.
A tônica de seus questionamentos é essa, e talvez a diferença na qualidade de seu trabalho em relação a muitos outros pesquisadores comprometidos socialmente, como o próprio Skinner, seja seu engajamento pessoal e inalienável em uma militância altamente subversiva para sua época e particularmente para seu contexto, os Estados Unidos da América. Declaradamente comunista e engajado em construir alternativas políticas para as práticas sociais tradicionais dos mundos capitalistas, Holland chegou a ir para Cuba e dialogar com o que seja talvez uma das maiores pedras no sapato estadunidense do Big Stick, Fidel Castro.
Diante desse cenário, o autor resume a questão: que faz o analista do comportamento que abandona a velha história da neutralidade científica e se engaja na luta por justiça? Suas próprias respostas:
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“Por lo menos deberíamos dar prioridad a aquellos aspectos que tengan la posibilidad de ser usados por la generalidad’ de las personas”; (p. 273)
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“Podemos hacer un intento por transmitir al pueblo nuestros hallazgos; y promover aplicaciones que se adecuen más a sus necesidades que a las necesidades de la elite”; (p. 273)
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“Lo más importante a este respecto es que el científico de la conducta analice la operación del control conductual em nuestra sociedad y comunique este análisis a otros para que estén mejor preparados para el contracontrole”; (p. 273-274)
3.1. “Con este fin, deberá analizar también los efectos potenciales de diferentes formas de contracontrole”; (p. 274).
3.2. “En segundo lugar, deberá idear una tecnologia intrinsecamente adaptada para usarse en la lucha” (p. 274)
Não é difícil compreender a ênfase de Holland em um mundo alternativo possível, ainda que não necessariamente o mundo alternativo tipicamente skinneriano, o mundo das comunidades planejadas e necessariamente pequenas – embora não discordemos de Skinner, tampouco o faz Holland, sobre a validade dos argumentos para tal modelo de organização social –, mas com uma ética marxista voltada para a justiça social e para a construção do socialismo/comunismo. Aí estão as chaves para uma apreciação justa do trabalho do autor.
Levanto aqui as questões pontuais apontadas por Holland no Servirão… O eixo do trabalho é a construção de um mundo pautado numa justiça social, em uma ética comunitária, ou seja, um mundo para todos, e o desenvolvimento e aplicação de uma tecnologia do comportamento que nos facilite o caminho até esse mundo “comum”, ou esse mundo de todos, e para todos.
Os aspectos que considero tremendamente atuais (além daquilo que já mencionei anteriormente): a) a necessidade de uma ética da justiça social, que embora não expressa da mesma forma franca e direta que o fez Holland, está mais do que presente hoje em dia como necessidade para que se construa um mundo melhor, e é consonante até mesmo com descrições da ética skinneriana tal como se desenhou em sua obra, o “bem dos outros” e o “controle face-a-face”; e b) o desenvolvimento de uma tecnologia do comportamento que suporte a construção de um mundo mais justo. Tal questão, no entanto, sempre esteve nos planos de Skinner, um homem da prática muito antes de um homem da teoria, de gabinete, ainda que sua prática não tenha alcançado seus planos utópicos para além de sua própria rotina pessoal e profissional.
Nesse sentido, parece que não avançamos tanto quanto poderíamos e tanto quanto vislumbrou Holland há quatro décadas, e talvez o caminho apontado por Anthony Biglan (2015) na implantação de tecnologias que garantam “ambientes enriquecedores” (ou nurturing environments) seja um dos mais promissores, ainda que um tanto desprovido do verniz revolucionário típico do século XX, da “era dos extremos” (Hobsbawn, 1995). É a velha tensão reforma versus revolução.
Ainda sobre a evidente atualidade dos principais problemas levantados por Holland, está a própria história de desenvolvimento do behaviorismo radical e da análise do comportamento. Ler The shame of american education, texto de Skinner da década de 1960, é como ler uma crítica contemporânea em um jornal de grande projeção, nem tanto pelo teor dos argumentos, mas pelos problemas ali discutidos (a esse respeito, um texto de Rumph et al [2007] que tem o próprio Holland como coautor tratou de resgatar a crítica skinneriana, décadas depois). Ler Human behavior and democracy, também de Skinner, mas agora na década de 1970, nos da a mesma impressão, para não falar de Beyond Freedom and Dignity e talvez a própria introdução de Science and Human Behavior. Quero dizer com isso que Skinner, Holland e outros que cumpriram papel de denúncia social eram gênios e profetas, ou que as condições sociais da vida humana não mudaram tanto desde então? Creio que a segunda opção seja a mais razoável.
Alguns pontos levantados por Holland soam controversos após 40 anos. Especialmente a ênfase depositada em modelos que sabemos foram e em alguns casos ainda são altamente burocráticos e autoritários, e para os quais o nome “comunismo” muitas vezes é mero rótulo decorativo, comportamento verbal com funções muito particulares de controle de seus cidadãos por parte das agências governamentais. Deixo tal tarefa, cuja importância considero relativa para os esforços deste texto e cujos meandros são satisfatoriamente discutidos por outros cientista sociais e do comportamento, como historiadores, antropólogos e sociólogos, aos colegas que a ela resolverem se dedicar. Enfatizo aqui aquilo que ficou e permanece fundamental nas proposições do autor: a ética de uma justiça social, o desenvolvimento de uma tecnologia do comportamento, e a construção de um mundo possível, não apenas discursivamente, como talvez tenha dado a entender Andery (2014), mas nas contingências sociais que realmente importam, os problemas acontecendo.
Enfatizando a atualidade dessas proposições, não sem pesar, pois preferia não ter que falar mais desses problemas, considero pertinente também a articulação das propostas de Holland com produções de outras disciplinas, como a filosofia política e as ciências sociais (pensando no Deep Green Resistance, o municipalismo de Murray Bookchin, a antropologia anarquista de David Graeber, entre outros), cujas denúncias sociais e proposições alternativas não soam tão diferentes do que o velho James já falava na década de 1970, e mesmo do que descreveu e propôs Skinner. Tal articulação deve ser feita no sentido de ampliar horizontes para além da análise do comportamento enquanto ciência e do behaviorismo radical enquanto filosofia dessa ciência, promovendo verdadeiramente o diálogo transdisciplinar desejado por Skinner e enfatizado em seu Selection by consequences (1981).
A seleção por consequências como modelo explicativo integral, e o conjunto de métodos de análise conceitual, teórica, experimental e aplicada da análise do comportamento nos proporcionam possibilidades ímpares para resolução das questões levantadas por Holland.
Finalizando, me parece que alguns aspectos de sua visão de mundo, especialmente questões de ordem prática, em consonância com os regimes burocráticos e autoritários autodenominados marxistas, soam impraticáveis, improdutivos e ineficazes para atingir seus objetivos. Reitero que os problemas que listou, no entanto, soam mais atuais do que nunca, especialmente a concentração de renda e o controle social exacerbado, que ganha novos contornos com o avanço das redes sociais e da carta branca das agências de inteligência.
Diante disso tudo, qual sua posição a respeito, analista do comportamento?
Referências
Andery, M. A. P. A (2014). 40 anos depois: são os princípios comportamentais para os revolucionários? Palestra proferida no I Encontro de Estudantes Brasileiros de Análise do Comportamento, São Paulo.
Biglan, A. (2015). The Nurture Effect: How the Science of Human Behavior can improve our lives & our world. Oakland, California: New Habingen Publications, Inc.
Graeber, D. (2004). Fragments of an anarchist antropology. Chicago: Prickly Paradigm Press.
Holland, J. G. (1975). Servirán los princípios conductuales para los revolucionários? (p. 256-281). In: Keller, F. S.; Ribes- Iñesta, E. Modificación de conducta: aplicaciones a la educación. México: Trillas.
Holland, J. G. (1978). Behaviorism: part of the problem or part of the solution? Journal of Applied Behavior Analysis, 11(1), 163-174.
Hobsbawn, E. J. (1995). Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras.
McBay, D., Keith, A., Jensen, L. (2011). Deep Green Resistance: strategy to save the planet. Ney York: Seven Stories Press.
Rumph, R. et al. (2007). “Te shame of american education” redux. Behavior and Social Issues, 16, p. 27-41.
Skinner, B. F. (1953). Science and Human Behavior. New Yor
Skinner, B. F. (1971). Beyond Freedom and Dignity. New York: Bantam / Vintage Books.
Skinner, B. F. (1978). Human behavior and democracy. In: Reflections on Behaviorism and Society (p. 3-15). Eaglewood Cliffs: Prentice-Hall
Skinner, B. F. (1981). Selection by consequences. Science, 213(4507), p. 501-504.
Skinner, B. F. (1984). The shame of american education. American Psychologist, 39(9), p. 947-954.