O espaço da cultura nas terapias comportamentais

Harmony_Day_(5475651018)Fernanda se criou em uma cidade bem pequena e conservadora no interior do país, Jean viveu parte de sua infância em Moçambique, Carla é lésbica e sempre viveu na capital de um grande estado brasileiro, João é quilombola, Luísa é espírita, Leandro é gay, Luiza é negra, Francine é uma mulher transexual e José vem de uma família progressista (nomes e histórias fictícias). Em comum todos buscam psicoterapia para lidar com suas dificuldades e dores. Ocorre que o psicoterapeuta destas histórias é um homem branco, heterossexual, cisgênero (a identidade de gênero é a mesma atribuída no nascimento) e nasceu e se criou em uma sociedade urbana de classe média recheada de preconceitos e práticas culturais conservadoras. Sua formação acadêmica e clínica foi fortemente influenciada pela busca de variáveis causais históricas (ontogenéticas), e um pouco pelas variáveis biológicas (filogenéticas). Seu “ponto cego” era justamente um dos níveis de análise mais importantes, e que demonstraria sua força no decorrer da sua experiência clínica e de seus colegas: a cultura.

Esta história reflete um pouco do cotidiano da clínica analítico-comportamental enfrentada até mesmo figures-96100_960_720por profissionais experientes, no que tange a relação com sujeitos oriundos de grupos culturais diferentes. Mas qual a real dimensão da cultura sobre nosso sofrimento? Qual seu impacto na vida de nossos clientes e na contingência da terapia? De que formas podemos trabalhar a influência da cultura nas terapias analítico-comportamentais?

Contextos culturais

Grande parte da Psicologia foi influenciada pela ênfase dada à história do sujeito nos processos psicológicos e nas influências causais da mente sobre o comportamento, negligenciando o papel do contexto sobre o desenvolvimento e manutenção das nossas ações. Mais recentemente as neurociências e a biologia tomaram um espaço na explicação causal de alguns de nossos comportamentos, no entanto pouco espaço tem sido dado ao efeito dos grupos sobre nossas ações. O modelo causal mais comumente visto em Psicologia, inspirado na mecânica clássica, declara que tudo o que fazemos é em função de uma influência mecânica direta do passado (Skinner, 1981/2007). Skinner desenvolveu sua teoria analítico-comportamental a partir da inversão da causalidade, mostrando que grande parte de nossas ações é governada principalmente pelas consequências de nossas ações sobre o contexto no qual o sujeito que se comporta.

Social-network-communities-imageEmbora presente em toda a obra de Skinner, foi apenas em 1981 que o autor abertamente dividiu os contextos causais de nossos comportamentos em três níveis de seleção a partir das consequências: 1. Filogênese, relacionada com contingências de sobrevivência da Seleção Natural; 2. Ontogênese, vinculada aos comportamentos desenvolvidos pela história ambiental a partir de condicionamento operante, e por fim; 3. Cultura, tema deste artigo (Skinner, 1981/2007). O ambiente cultural é um contexto social cujos comportamentos de seus indivíduos são selecionados a partir de variáveis que impactam na sobrevivência do grupo, e são inerentes à condição humana. Para tal o grupo pode reforçar condutas consideradas “boas” ou “certas” para aquela comunidade (ou seja, reforçam seus membros), ou punir condutas consideradas “más” e “erradas”, aversivas para os membros da comunidade, que poderiam até mesmo desestabilizar a unidade grupal (Skinner, 1953/1981). No entanto, muitas destas variáveis culturais, tais como inequidade de poder e representatividade para os membros da cultura, punições para indivíduos cujas ações ou até mesmo características físicas que não estão em consonância com a norma cultural, podem ser aversivas aos sujeitos individualmente, fazendo-os sofrer. A psicoterapia teria como função, então, reduzir as implicações do controle coercitivo grupal sobre o indivíduo (Sidman, 1989/2011; Skinner, 1953/1981).

Sidman Freud
Murray Sidman e Sigmund Freud: A cultura como uma das diversas fontes do sofrimento humano

“A coerção na civilização!”

A cultura do cliente bate à porta do terapeuta, e a um profissional desavisado poderia muito bem “passar batido” este nível de seleção. Outras teorias já vincularam a cultura a  uma fonte de sofrimento, como no texto Mal-Estar na Civilização, de Freud (1930/2011). Para a análise do comportamento a presença de estimulação aversiva para “quem sai da linha” tende a manter sujeitos com repertório restrito, sem acesso a inúmeros reforçadores, com uma tendência a esquiva e fuga, com efeitos colaterais deletérios como ansiedade, medo, culpa ou vergonha (Sidman, 1989/2011), e em vários casos pode gerar uma reação de contra-controle agressiva destinada aos indivíduos daquela cultura que pode gerar intensos prejuízos a si ou aos sujeitos próximos do cliente (Baum, 2006; Skinner, 1953/1981). A cultura se transforma, ela própria, em uma estimulação aversiva. Cada comunidade verbal na qual o sujeito se relaciona tende a controlar seu comportamento de alguma forma, de modo que os clientes geralmente apresentam atravessamentos de diversas culturas.

No setting

don__t_shut_me_up_by_creative_artDiversas populações enfrentam diariamente opressões referentes a gênero, orientação sexual, religião, etnia, classe sócio-econômica, dentre outras. A expressão de determinados comportamentos, como vemos a seguir, tenderia a produzir punição dos membros daquela cultura. Imagine uma mulher que viveu sua vida em uma sociedade conservadora e machista. Em sua experiência aprendeu que homens tenderiam a ser mais reforçados ao emitir comportamentos como estudar, dirigir, fazer festa, liderar e transar, enquanto mulheres tenderiam a ser menos reforçadas nestes mesmos comportamentos, ou até punidas, enquanto atividades de submissão à figura masculina seriam reforçadas. Provavelmente parte do repertório desta mulher será influenciado por esta cultura, e talvez ao agir de alguma forma punível ela poderá gerar uma auto-estimulação aversiva, nomeando isso de culpa ou vergonha (Skinner, 1953/1981). Talvez evite dirigir ou se relacionar sexualmente, por exemplo. Todas estas limitações deflagradas pela coerção cultural trazem a cliente, de acordo com sua descrição de metas e problemas atuais, à terapia, e em algum momento o terapeuta homem percebe que facilmente se estabelece uma relação de poder na relação. A cliente espera constantes reforços e respostas do terapeuta, da mesma forma que no seu dia-a-dia. A opressão cultural faz seu espaço a partir das suas implicações no comportamento desta cliente em sessão (Vandenberghe et al., 2010). Neste caso um dos objetivos do terapeuta é apresentar hipóteses funcionais, traçando paralelos entre o que ocorre em sessão e ocorre fora, promovendo empoderamento da cliente, sempre atentando para possíveis condutas coercitivas derivadas de uma cultura misógina (Terry, Bolling, Ruiz, & Brown, 2010). Outro cliente, homoafetivo, vive em uma sociedade intolerante, na qual diversos sujeitos com diversas LGBT-2008-Madrid-7orientações sexuais têm sido agredidos fisicamente e verbalmente. Durante a terapia observa grande desconforto com a presença de um terapeuta heterossexual. Da mesma forma que no exemplo anterior, é importante ao terapeuta estar atento às suas próprias condutas coercitivas em relação a diversidade sexual e de gênero (Plummer, 2010).

Outro exemplo é o do cliente que vem de uma cultura a qual a expressão emocional não é reforçada ou é punida e que busca terapia em função de seu desconforto diário ao se relacionar com outras pessoas: se sente isolado e sozinho. Pouco de seu repertório envolve a expressão emocional. Durante a terapia parece haver uma importante dificuldade em discriminar estados emocionais. É meta do terapeuta compreender a dificuldade no engajamento em comportamentos associados à exposição emocional e tentar, de acordo com a possibilidade do cliente, construir um espaço reforçador onde esta exposição poderá ser treinada, sem que exista a perda da identidade cultural do cliente. Um cliente nascido em uma determinada sociedade pode encontrar-se vulnerável em uma cultura alheia, muitas vezes sem perceber a presença de valores destoantes entre ambas. Sua adaptação pode ser dolorosa e frequentemente este cliente pode sentir-se perdido na nova cultura, visto não ter repertórios culturais apropriados. Uma avaliação aprofundada da história cultural do cliente pode favorecer o entendimento das variáveis culturais que estão associadas à queixa do cliente, e ao mesmo tempo reduzir estereotipação em razão da diferença cultural (Vandenberghe et al., 2010).

Em comum, todos estes sujeitos se privaram de inúmeros contextos possivelmente reforçadores com receio de punição por parte da cultura; em terapia, estes clientes poderão se comportar sob o efeito das suas variáveis culturais, sem perceber o quanto de seus problemas trazidos à terapia têm influência da cultura subjacente. É papel do terapeuta estar atento à interação de diferentes culturas e práticas culturais que ocorrem como comportamentos clinicamente relevantes (CCR), tanto do cliente (CCR1 para comportamentos associados aos problemas do cliente e CCR2 para os comportamentos associados às metas; para uma revisão, ler (Villas-Boas, 2012)), quanto seus próprios (neste caso os CCRs do terapeuta são denominados T1 e T2). Sem este cuidado o terapeuta poderia reproduzir processos coercitivos (punição e reforçamento negativo) no setting, o que seria grave do ponto de vista ético e técnico. A história cultural, identidade, costumes e tradições podem afetar não apenas os problemas, metas, competências ou potencialidades, mas também constituem comportamentos clinicamente relevantes, os quais devem ser destituídos do juízo de valores em sua avaliação (Vandenberghe et al., 2010).

ssssasasOs princípios de terapias comportamentais, como a Psicoterapia Analítica Funcional (FAP), a Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT) e a Terapia Comportamental Dialética (DBT), podem ser considerados aplicáveis aos clientes das mais diferentes comunidades verbais, desde que dado o valor às influências do terceiro nível de seleção, a saber, a cultura. No entanto, a formulação de caso sempre deve dar conta da influência cultural na análise de caso individual. Na FAP, como dito acima, o cliente pode apresentar comportamentos clinicamente relevantes oriundos de seus grupos de filiação(Vandenberghe et al., 2010); na ACT tanto os valores quanto os processos envolvidos com a esquiva experiencial estão associados com as variáveis culturais (Luoma, Hayes, & Walser, 2007); e na DBT a teoria biossocial também dá conta de descrever ambientes sociais invalidantes associados à cultura, como opressões raciais, sexuais, de gênero e credo (Koerner, 2011).

Um dos pressupostos mais importantes ao trabalho com clientes de várias culturas é o autoconhecimento do terapeuta, com um foco não apenas nas variáveis ontogenéticas, mas também as culturais (Vandenberghe et al., 2010). Quais as características da(s) cultura(s) na qual o terapeuta esteve e está inserido? Quais seus “pontos cegos” e privilégios? Quais seus valores e limites pessoais? Os três níveis de seleção “batem à porta” tanto do cliente, quando do terapeuta, e é trabalho do profissional promover que este choque cultural possa ser profícuo ao cliente. O interesse do terapeuta em conhecer as culturas dos seus clientes, ou abertura para compreender as variáveis envolvidas nas mais diferentes culturas é muito importante, e pode ser amplamente reforçado pelo cliente durante o processo terapêutico. Quanto mais abertura o terapeuta tiver, e quanto mais compreensão das variáveis culturais, mais efetivo será o uso dos princípios comportamentais durante a terapia.

Kenyan_dancersUm último ponto a salientar é que apesar de a cultura estar bastante envolvida no sofrimento humano, o terapeuta deve compreender que aspectos culturais são benéficos ao cliente. Através de seus valores, tais como espiritualidade, atividades educacionais e profissionais ou até mesmo a identidade social do cliente, promovendo a relação do cliente com estas variáveis. Muitas práticas culturais podem se relacionar com uma maior socialização, como as práticas religiosas e desportivas, ou com qualidade de vida, como espiritualidade, práticas voluntárias pró-sociais, dentre outras. O processo de análise funcional deve discriminar quais contextos culturais potencializam os comportamentos associados ao problema (CCR1) e à melhoria (CCR2). Desta forma, como a cultura estará sempre presente, o cliente pode desenvolver novas formas de se relacionar com a ela mais próximas de suas metas, sem nunca esquecer-se de onde veio.

Referências

Baum, W. M. (2006). Compreender o Behaviorismo: Comportamento, Cultura e Evolução. Porto Alegre: Artmed.

Freud, S. (1930/2011). O Mal-estar na Civilização. São Paulo: Companhia das Letras.

Koerner, K. (2011). Doing Dialectical Behavior Therapy: A practical Guide. New York, NY: Guilford Press.

Luoma, J., Hayes, S. C., & Walser, R. D. (2007). Learning ACT: An Acceptance and Commitment Therapy Skills-Training Manual for Therapists (Pap/DVD edition). Oakland, CA: New Harbinger Publications.

Plummer, M. D. (2010). FAP with Sexual Minorities. In The Practice of Functional Analytic Psychotherapy (p. 149–172). New York, NY: Springer Science & Business Media.

Sidman, M. (1989/2011). Coerção e suas Implicações. São Paulo: Livro Pleno.

Skinner, B. F. (1953/1981). Ciência e Comportamento Humano. São Paulo: Martins Fontes.

Skinner, B. F. (1981/2007). Seleção por conseqüências. Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva, 9(1), 129–137.

Terry, C., Bolling, M. Y., Ruiz, M. R., & Brown, K. (2010). FAP and Feminist Therapies: Confronting Power and Privilege in Therapy. In The Practice of Functional Analytic Psychotherapy (p. 97–122). New York, NY: Springer Science & Business Media.

Vandenberghe, L., Tsai, M., Valero, L., Ferro, R., Kerbauy, R. R., Wielenska, R. C., … Muto, T. (2010). Transcultural FAP. In J. W. Kanter, M. Tsai, & R. J. Kohlenberg (Orgs.), The Practice of Functional Analytic Psychotherapy (p. 173–185). Springer New York. Recuperado de http://link.springer.com/chapter/10.1007/978-1-4419-5830-3_10

Villas-Boas, A. (2012). Psicoterapia Analítica Funcional (FAP): lidando com o cliente em sessão. Recuperado de https://comportese.com/2012/10/psicoterapia-analitica-funcional-fap-lidando-com-o-cliente-em-sessao/

0 0 votes
Classificação do artigo

Escrito por Jonatas Passos

Psicólogo pela ULBRA e Mestre em Psicologia pela UFRGS. Possui formação em Terapias Comportamentais e Cognitivas (AMBAN - USP) e Terapia Comportamental Dialética (pelo Behavior Tech) e é especialista em Terapias Comportamentais Contextuais - ênfase FAP e ACT (CEFI / CIPCO). É psicoterapeuta nas abordagens FAP, ACT e DBT! Tem interesses em análise do comportamento e suas aplicações e neurociências, tendo ministrado aulas como professor convidado (InTCC, Unisinos, UFRGS, UFCSPA, IMED, dentre outras) sobre FAP, ACT e terapias comportamentais contextuais e conceitos básicos em análise do comportamento.

Curso de férias: O processo de tomada de decisões e a criatividade do terapeuta analítico comportamental

Para um bom entendedor… Uma boa metáfora basta