A história do que se convencionou chamar de loucura remete ao alvorecer da civilização. Isso não é uma coincidência, afinal o desviante precisa desviar de algo, e o início da civilização marca o início da norma (Berger, Morettin & Neto, 1991). Com a exceção de situações em que acontecem comportamento autolesivos ou agressivos, o comportamento psicótico não costuma trazer prejuízos em si, o problema aparece quando esse comportamento se torna uma justificativa para punições, sanções e exclusões por parte da comunidade. A loucura é uma prisão, mas não em um mundo privado como o senso comum tenta nos fazer acreditar. A prisão da loucura é feita de muros e grades, são instituições, hospitais, escolas especiais, enfim, uma cidade que não está preparada e não tem o menor desejo de que este indivíduo faça parte do seu cotidiano.
A loucura teve diversos significados ao longo do tempo, em sua maioria pejorativos (Berger, Morettin & Neto, 1991; Pessotti, 1994). Uma característica marcante do momento atual é a abrangência do termo, aplicado não só ao comportamento psicótico, mas a praticamente qualquer tipo de comportamento visto como destoante da grande maioria (Não me entenda errado, mesmo se o termo fosse restrito ao comportamento psicótico, ele ainda seria problemático, minha intenção é mostrar a amplitude da situação). A cidade exclui o dito louco não no sentido restrito, e sim, no sentido amplo. Ela lima do seu convívio tudo que possa se enquadrar na categoria “loucura”.
É nesse contexto que surgem os primeiros acompanhantes terapêuticos no Brasil. Quando o movimento antimanicomial chega ao nosso país vindo da Europa na década de 70, surgem as primeiras colônias terapêutica: no Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre (está última com uma influência extra, fruto da sua comunicação com programas parecidos na Argentina) (Berger, Morettin & Neto, 1991). Nesses locais os indivíduos tinham oportunidades de experimentar intervenções muito mais voltadas para gerar independência e o desenvolvimento de habilidades sociais. Não se buscava uma cura, e sim, entender o indivíduo embebido nas suas próprias idiossincrasias. Com o advento da ditadura militar, essas comunidades são descontinuadas. Entretanto, a demanda para esse tipo de trabalho ainda continuava a existir, logo os antigos funcionários (profissionais da saúde, muitos deles ainda graduandos) são procurados para prestarem esse serviço de maneira particular (Berger, Morettin & Neto, 1991; Zamignani, Kovac & Vermes, 2007). Neste ponto, os acompanhantes terapêuticos se viam diante de um novo desafio: fazer o seu antigo trabalho fora do contexto planejado das colônias. Agora eles teriam que agir em um ambiente que não estava preparado para recebê-los, a cidade.
A Análise do Comportamento como parte do problema
Talvez você conheça essa história, talvez não. Mas talvez você conheça uma história sobre a construção do Acompanhamento Terapêutico mais pautada na importância que ele tem para assegurar que o que é feito dentro do setting clínico seja generalizado para o ambiente natural. Uma história sem a ênfase no comprometimento político deste profissional. Nessa história, o acompanhante terapêutico (AT) é uma espécie de ajudante do terapeuta.
Geralmente essa é a história que nos cabe enquanto analistas do comportamento. Afinal, o AT é geralmente um aluno de graduação sem muita experiência clínica, portanto seria até uma irresponsabilidade ética deixar que ele conduzisse um caso sem a supervisão de alguém mais experiente.
Mas isso é retirar ou, pelo menos, não se comprometer com um aspecto importante da função do AT: a busca por uma transformação urbana, ser uma ferramenta em prol do direito à cidade para todos, em especial para aqueles que tiveram esse direito usurpado.
O direito à cidade
No inicio do texto pontuei a exclusão do indivíduo considerado como louco, mas o processo de urbanização exclui diversos outros grupos. Pensem nas pessoas que tem que se mudar para a periferia por não conseguirem pagar o custo de vida determinado pela especulação imobiliária e pela valorização do terreno; ou nas mulheres que caminham assustadas em ruas mal iluminadas com medo de serem atacadas enquanto voltam para casa; ou nas pessoas que são impedidas ou não se sentem seguras de frequentar alguns lugares devido ao seu gênero, etnia, raça, etc.
Indo direto ao ponto: o processo de urbanização não acontece espontaneamente, ele é guiado pelo interesse de quem tem o capital (Harvey, 2009; 2012). Acho que isso não chega a ser polêmico, afinal de contas a execução do planejamento urbano custa dinheiro. Sendo assim, o direto de agir na cidade passa a ser um privilégio de poucos, logo a cidade passa a atender apenas a necessidade de determinados grupos. Uma enorme parcela da população passa ser apenas espectadora deste processo, obrigada a viver em um ambiente que não foi planejado para ela, passa a viver à margem.
Mas algo dessa magnitude não poderia passar sem tentativas de contracontrole. Movimentos em busca do “usufruto equitativo das cidades dentro dos princípios de sustentabilidade, democracia, equidade e justiça social” (Carta mundial pelo direito à cidade, 2006,p.3) começam a pipocar ao redor do globo (e.g., o Occupy, um dos mais famosos). A luta não é pelo simples acesso à cidade, e sim, pelo poder configurador sobre o processo urbano, “(…) é o direto de mudar a nós mesmos pela mudança da cidade” (Harvey, 2012).
O AT como uma ferramenta em prol do direito à cidade
O AT está numa posição dúbia; ao mesmo tempo em que ele é privilegiado por atuar no ambiente natural, ele tem que lidar com as dificuldades intrínsecas a esse ambiente. Cabe ao AT decidir o caminho que a sua atuação irá seguir: ele será uma ferramenta para ajustar o desviante e fazer com que ele entre em menos conflito com o ambiente, ou ele será uma ferramenta que irá combater o status quo e retomar o espaço público que foi perdido.
Estas não são escolhas excludentes. A luta pelo direito a cidade começa com o empoderamento daquele que foi excluído. O AT ajuda na criação de estratégias de enfrentamento, que vão desde a clarificação dos seus direitos enquanto cidadão, até todo o arcabouço de intervenções que dispomos (e.g., treino de habilidades sociais, planejamento de técnicas de exposição). O primeiro passo é retomar o convívio no espaço público. A partir daí que se pode pensar em uma nova maneira de agir na rua.
Mas por que essa preocupação com a rua? Por que o espaço público interfere diretamente no comportamento de toda a população. Em uma abordagem externalista como a nossa, o ambiente não pode ser negligenciado, e não só a função do estímulo, mas o estímulo enquanto um objeto em si. O acesso ao estímulo e a possibilidade de construir uma história comportamental em um determinado ambiente são preocupações importantíssimas. A rua, enquanto ambiente, determina o que cada um entrará em contato ao longo da sua vida – variando de acordo com o indivíduo ou mesmo na ontogênese deste mesmo indivíduo – ela que irá construir o comportamento dito “patológico” e o “sadio”, tanto enquanto conceito, como enquanto repertório comportamental de um indivíduo específico. É nosso papel atuar na reconfiguração do ambiente público urbano se quisermos lidar com a prevenção e a promoção de condições dignas de vida.
Alguns grupos (mesmo dentro da Análise do Comportamento) já vêm trabalhando nesse sentido, porém este objetivo deve fazer parte da agenda do AT, e não ser tratado como um objetivo secundário. Holland (1979) afirma que se o nosso objetivo é a igualdade social, então temos que trabalhar para substituir todas as formas institucionais que mantem a desigualdade, por formas que assegurem a igualdade de poder e de status. O AT está na linha de frente, lidando diretamente com essa estrutura. É sua responsabilidade agir na modificação dessas estruturas.
Entendo que esta ação não seja fácil, até mesmo por que não depende só do AT (seja ele um aluno ou um profissional). É uma mudança muito maior e que precisa do engajamento de muitas outras pessoas. Entretanto é importante pensar em qual o papel do AT nesta mudança, para que a partir disto seja possível direcionar a sua prática para uma mudança mais efetiva e duradoura.
O AT é fruto direto da luta contra uma sociedade desigual. O simples caminhar ao lado de uma pessoa dita psicótica, louca, ou tantos outros adjetivos impostos pela sociedade em um shopping, num parque, na rua, etc. é um movimento politico. É lutar por uma cidade que permita que todos os seus membros se sintam parte dela. Já é dar um passo imenso, embora pareça pouco para aqueles que não têm dificuldade em transitar pela cidade. E se caminhar já é um avanço tão importante, o que acontecerá quando começarmos a correr?
Referências
Berger, E.; Morettin, A. V.; Neto, L. B. (1991). História. Em: Equipe de acompanhante terapêuticos do hospital-dia A Casa (org.). A rua como espaço clínico. São Paulo: Ed. Escuta.
Carta mundial pelo direito à cidade (2006): http://www.polis.org.br/uploads/709/709.pdf
Cesar, A. C. (1991). A rua e o social de cada um. Em: Equipe de acompanhante terapêuticos do hospital-dia A Casa (org.). A rua como espaço clínico. São Paulo: Ed. Escuta.
Harvey, D. (2012). Direito à cidade. Lutas sociais, n29, p.73-89.
Harvey, D. (2009). Alternativas ao neoliberaliso e o direto à cidade. Novos cadernos NAEA, 12(2), p. 269-274.
Holland, J. G. (1973/1977). Servirán los principios conductales para lós revolucionários? Em: Keller, F. S. & Ribes-Iñesta, E. Modificación de conducta: aplicaciones a la educación. México: Ed. Trillas. PP.265-281.
Pessotti, I. (1994). A loucura e as épocas. Rio de Janeiro: Editora 34.
Zamignani, D. R; Kovac, R. & Vermes, J. S.(2007). A Clínica de Portas Abertas. Santo André: ESETec.