Suicídio: Observações sobre a tragédia de não mais querer viver

[Recomenda-se que as notas do texto sejam lidas atentamente]
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Suicídio. Essa é uma das questões que talvez menos se cale. Robin Williams nos emocionou tanto nas telas do cinema com obras lindíssimas, pregando o amor, o carinho ao próximo, e o cuidado ao outro como meio de expansão da vida. Na segunda semana de Agosto de 2014, nos chocamos e choramos por sua morte. Morte por suicídio. A pergunta “por que?” permanece. Ecoa em alta voz, cuja continuidade nos perturba e nos assusta pela ausência de uma resposta imediata. Equivalentemente, uma pessoa morre por suicídio [1] a cada 40 segundos em algum lugar do planeta [2]. Nas palavras dos pesquisadores Katie Dhingra, Daniel Boduszek e Rory O’Connor num artigo publicado em Julho de 2015 [3],

“De fato, o suicídio é responsável por mais mortes a cada ano do que todas as guerras e outras formas de violência interpessoal juntas – significando que há maior probabilidade de morremos pelas nossas próprias mãos do que pelas mãos de outra pessoa [OMS, 2014].”

Veja no diagrama abaixo alguns dados do relatório sobre suicídio publicado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em Setembro de 2014 [2].

WHO's information
De acordo com a OMS, especula-se que para cada morte por suicídio por ano, outras duas pessoas engajam-se em tentativas e sobrevivem [4]. No Brasil, para cada atendimento em pronto-socorro resultantes de tentativas de suicídio, três outras pessoas tentaram tirar a própria vida, cinco pessoas planejaram a própria morte, e dezessete pensaram no suicídio como alternativa possível [5]. Já mencionado neste texto, o relatório da OMS é o primeiro especificamente voltado para a situação do suicídio no mundo [2]. Os dados não só chocaram em termos estatísticos, mas também surpreenderam no que diz respeito às questões culturais, faixa etária e gênero. Ao contrário da antiga crença de que as taxas mais altas de morte por suicídio seriam algo restrito aos países nórdicos, ricos, frios e com baixa incidência de luz do sol, os dados mostraram o contrário. 75,5% dos óbitos por suicídio em 2012 ocorreram em países pobres e em desenvolvimento. Na lista dos dez primeiros países com maiores índices estão Guiana (44,2 mortes a cada 100 mil habitantes), Coréia do Norte (38,5), Coréia do Sul (28,9), Sri Lanka (28,8), Lituânia (28,2), Suriname (27,8), Moçambique (27,4), Nepal e Tanzânia (24,9), e Casaquistão (23,8). O mapa abaixo publicado pela OMS mostra a incidência de mortes por suicídio a cada 100 mil habitantes ao redor do mundo.

Map_suicide_word_WHO
Preventing suicide: A global imperative. World Health Organization. Copyright 2014. Copyright WHO. Geneva, Switzerland.

As taxas também assustam quando o tópico é gênero. Homens morrem mais por suicídio do que mulheres em todas as regiões do planeta. A variação mundial vai de 50% a aproximadamente 355% mais mortes entre homens do que entre mulheres. No Brasil esta diferença é ainda mais acentuada. Os últimos dados disponíveis pelo DATASUS são de 2012 [6] e apontam que na faixa etária de 20 a 24 anos de idade, o número de homens mortos por suicídio foi 4 vezes maior em comparação ao número de mortes de mulheres. Entre os jovens de 25 a 29 anos, a diferença de mortalidade alcançou a casa de 500% a mais para homens. Na população acima de 60 anos, a discrepância é ainda maior: 6 homens tiram suas próprias vidas a cada morte por suicídio de uma mulher. Os dados estão ilustrados no gráfico abaixo.

suicide by sex in BR (2012)

Fatores de Risco

Diversos pesquisadores ao redor do mundo têm se dedicado intensamente ao estudo do suicídio a fim de entender o que, de fato, dirige tantas pessoas dos mais distintos lugares e culturas do planeta a sofrerem esta tragédia. Ao contrário do que se pensa (e de modo oposto à prontidão de alguns em responder por que pessoas tiram suas próprias vidas), não há uma resposta óbvia, imediata, simples, nem completa. Suicídio é um fenômeno altamente complexo e resulta de uma combinação entre fatores biológicos, psicológicos e sociais. Sabe-se que alguns fatores podem aumentar ou reduzir o risco de tentativas de suicídio, e a maior parte das pesquisas é conduzida no sentido de identificar tais fatores e entender como funcionam. Assim, as atuais políticas de prevenção ao suicídio estão baseadas na identificação e manipulação desses fatores de risco. Um exemplo diz respeito ao acesso aos meios pelos quais tenta-se o suicídio. A disponibilidade ou proximidade de armas de fogo, por exemplo, é considerada um fator de risco. Uma vez dificultado o acesso a elas, menores são as chances de tornar a morte por esta via algo provável. O mesmo é feito com outros meios. A disponibilidade e a preferência por meios específicos também depende dos contextos geográficos e culturais [7].

Os fatores de risco para o suicídio são classificados de acordo com o nível de influência sobre o comportamento suicida (biológico, psicológicos e social). Portanto, cada um desses três níveis possui diversos fatores de risco. Algumas subdivisões são feitas a fim de facilitar a visualização da intervenção. A OMS, por exemplo, subdivide os fatores de risco de nível social em “sociedade”, “comunidade”, e “relacionamentos”. A partir dessas classificações, intervenções de prevenção baseadas em evidências são delineadas em níveis universais (planejadas para alcançar toda a população no esforço de maximizar saúde e minimizar os riscos de suicídio através da remoção de barreiras para o cuidado, facilitando acesso a ajuda); intervenções seletivas (direcionadas a grupos vulneráveis dentro da população, com base em características como idade, gênero, status ocupacional ou histórico familiar); e intervenções indicadas (estratégias de intervenção direcionadas a grupos específicos da população – tais como aqueles que apresentam sinais precoces de engajamento em comportamento suicida, ou os que possuem um histórico de tentativas). O diagrama abaixo – construído pela OMS [2] e traduzido para uso exclusivo deste texto – lista os principais tipos de fatores de risco de acordo com suas classificações (primeiro quadro), e a que tipo de estratégias de intervenção tais fatores devem ser endereçados (segundo quadro). As linhas refletem a importância relativa das intervenções em diferentes níveis para diferentes áreas de fatores de risco.

WHO's risk factors diagram_portuguese
Preventing suicide: A global imperative. World Health Organization. Copyright 2014. Copyright WHO. Geneva, Switzerland.

 

Por que?

A pergunta, no entanto, permanece. Por mais que identifiquemos fatores de risco e proteção associados ao aumento ou diminuição das probabilidades de engajamento em tentativas de suicídio, e ainda que saibamos sobre os perfis dos grupos mais vulneráveis, tais informações não explicam por que uma pessoa engaja-se no processo de dar fim à própria vida. Aspectos biológicos e sociais são massivamente importantes para o estudo do suicídio. Entretanto, é inegável o fato de que este tipo de morte está relacionado à decisão de um indivíduo em por fim à sua própria vida, fazendo da análise psicológica algo crucial para a compreensão deste comportamento. Por envolver diversos processos psicológicos como tomada de decisão, baixa intolerância ao sofrimento, índices consideravelmente reduzidos (ou ausência) de habilidades de resiliência, e diversas outras características importantes, o suicídio não prescinde uma análise individualizada, única, e específica.

A pesquisa em psicologia do suicídio vem, durante as últimas décadas, evoluindo suas análises para métodos mais complexos, os quais vão além das abundantes análises bivariadas (nas quais apenas a relação entre duas variáveis é examinada), além da ampliação do número de trabalhos com métodos qualitativos. Tal evolução tem permitido o delineamento de pressuposições teóricas mais robustas, válidas e confiáveis, oportunizando a construção de intervenções mais eficazes. Em 2011, um passo marcante foi dado na construção de um dos modelos mais modernos e bem estruturados para a explicação do comportamento suicida: o capítulo onze [8] do livro “International Handbook of Suicide Prevention” (organizado pelos professores Rory O’Connor, Stephen Platt e Jacki Godon – cuja segunda edição está em preparação) caracteriza um marco importante na pesquisa sobre suicídio e apresenta pela primeira vez o “Integrated Motivational-Volitional Model of Suicidal Behaviour” (Modelo Integrado Motivacional-Volitivo do Comportamento Suicida ou IMV), desenvolvido pelo psicólogo irlandês Rory O’Connor, professor da Universidade de Glasgow e presidente da International Academy for Suicide Research.

O IMV ultrapassa a ideia de suicídio como resultado de psicopatologias prévias (depressão, transtornos de ansiedade, transtorno bipolar e esquizofrenia, por exemplo), e o conceitualiza como processo comportamental. Esta primeira concepção quebra uma tradição forte da visão médica clássica de entender o suicídio como doença, insanidade ou loucura, e o toma como experiência humana, como processo comportamental [9]. A segunda, e talvez mais importante característica do IMV reside na análise detalhada dos processos psicológicos envolvidos no comportamento suicida, especialmente na explicação de como ideações suicidas se traduzem em ações, tentativas de suicídio. O IMV separa o processo comportamental em três fases: pré-motivacional (que envolve variáveis biológicas, ambientais e de eventos do desenvolvimento), motivacional (onde ideações suicidas são formadas), e fase volitiva (na qual ideações suicidas são traduzidas em ações e tentativas de suicídio) [10].

Resumidamente, a fase pré-motivacional leva em consideração a sensibilidade biológica do indivíduo às experiências da vida, os aspectos de formação de seu repertório de comportamentos [11], padrões de apego, experiências parentais, eventos marcantes da vida e fatores de gatilho que oportunizam o desenvolvimento da segunda fase. Esta, motivacional, envolve uma série de processos psicológicos complexos na formação de ideações suicidas. Experiências de derrota e humilhação podem desenvolver sentimentos de aprisionamento. Esse desenvolvimento, no entanto, só será possível na presença de “variáveis de auto-ameaça”, tais como a ausência de repertório de resolução de problemas gerais e interpessoais, intensa ruminação de pensamentos de autocrítica e autodepreciação, auto-exigência exacerbada e auto-desvalorização. Os sentimentos de aprisionamento podem evoluir a ideações suicidas caso estejam presentes as variáveis motivacionais, as quais mediarão tal evolução. Exemplos de variáveis motivacionais incluem perda do senso de pertencimento, sentimentos de opressão, desesperança, ausência de expectativas sobre o futuro, inexistência de objetivos, sentimentos de solidão extrema e de escassez de suporte social. A terceira e última fase, volitiva, examina a transição das ideações suicidas para as tentativas de suicídio em si. Esta transição é moderada por variáveis denominadas “moderadores volitivos”, que incluem impulsividade, intenções e planejamentos da própria morte, acesso aos meios e/ou instrumentos para a implementação do plano, e imitação de procedimentos suicidas previamente conhecidos, por exemplo [8].

Apesar de cada componente do modelo ter sido construído com base em dados de pesquisas prévias, o IMV ainda se caracteriza como modelo bastante novo e desde sua publicação vem sendo testado por pesquisadores de diversas partes do mundo. O IMV mostra a complexidade do fenômeno do suicídio, e por mais que se proponha a ser um modelo generalizável, não pretende esgotar o assunto – já que esta seria talvez uma pretensão ilusória diante da algo tão difícil de ser compreendido em sua totalidade. Ao contrário, a proposta do IMV é expandir as possibilidades de análise, e abrir oportunidades da construção de novas perguntas e novos problemas de investigação.

Há ainda centenas de outros tópicos relacionado ao comportamento suicida que precisam ser discutidos. No mês de setembro – escolhido pela Associação Internacional de Prevenção ao Suicídio como período de conscientização mundial sobre o suicídio – há algo mais importante a ser feito: falar sobre este problema. Desenvolver empatia. Escutar o outro. Conversar sobre. Desfazer-se de julgamentos (sejam eles morais ou religiosos). Quebrar barreiras sociais. Nos colocar disponíveis à ajudar aqueles que carregam consigo uma dor insuportável, a ponto de pensar em não querer mais viver. Precisamos ajudar a encontrar novas possibilidades, achar novas portas. Conceder suporte na restauração da esperança. Reafirmar a vida.

*Se você está vivendo um momento muito difícil e se identificou com alguma parte deste texto, converse agora com um profissional do CVV (Centro de Valorização da Vida) através do telefone 141 ou via internet (chat, Skype ou email) através do site: http://www.cvv.org.br/site/index.php. Os profissionais desta ONG (uma das mais antigas e reconhecidas instituições no país) estão disponíveis 24 horas para ajudar e acolher.

[Leia outros textos sobre suicídio em Comportamento & Sociedade]

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Notas:

[1] Esta é a expressão correta: “morrer por suicídio”. Antigamente, na maioria dos países, a tentativa de suicídio era considerada um crime (ainda é em 25 países como Singapura, Malásia e Coréia do Norte, por exemplo), resultando penas e multas para os sobreviventes. O verbo “cometer” é utilizado para crimes. Uma vez que já alcançamos a compreensão de que tentativas de suicídio não se caracterizam como atos criminais, não há mais sentido manter a herança do verbo “cometer” para uma ação de outra ordem – de saúde mental.
[2] World Health Organization. (2014). Preventing suicide: A global imperative. Geneva, Switzerland.
[3] Dhingra, K., Boduszek, D., & O’Connor, R. C. (2015). Differentiating suicide attempters from suicide ideators using the Integrated Motivational-Volitional model of suicidal behaviour. Journal of Affective Disorders, 186, 211-218.
[4] Esta é a expressão correta: “sobreviver”. Algumas pessoas utilizam as expressões “obter sucesso” ou “falhar” na tentativa de suicídio. Entretanto, tais termos fazem alusão a outros sentidos que não cabem serem associados ao suicídio. Na linguagem coloquial, “sucesso” está associado a algo bom e positivo, e “falha” a algo ruim, negativo. Quando o tópico de discussão é o suicídio, o “sucesso” da tentativa é algo extremamente ruim, e a “falha” algo muito bom. A partir de um ponto de vista preventivo, não queremos que os sobreviventes de tentativas de suicídio sintam-se fracassados por terem “falhado”. Assim, uma pessoa “sobrevive de uma tentativa de suicídio” ou “morre por suicídio”.
[5] Botega, N. (2010). Comportamento suicida em números. Revista Debates Em Psiquiatria, 11–15.
[6] Datasus. Disponível em: http://tabnet2.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?idb2013/c09.def
[7] Ajdacic-Gross, V., Weiss, M. G., Ring, M., Hepp, U., Bopp, M., Gutzwiller, F., & Rössler, W. (2008). Methods of suicide: international suicide patterns derived from the WHO mortality database. Bulletin of the World Health Organization, 86(9), 726-732.
[8] O’Connor, R. C. (2011). Towards an Integrated Motivational-Volitional Model of Suicidal Behaviour. In R. C. O’Connor, S. Platt, & J. Gordon (Eds.), International Handbook of Suicide Prevention (1st ed., pp. 181–198). Chichester, UK: John Wiley & Sons, Ltd.
[9] É importante ressaltar aqui que grande parte da comunidade psiquiátrica engajada na pesquisa e na produção do conhecimento sobre suicídio possui uma visão holística do fenômeno e o compreende como área interdisciplinar, cuja complexidade exige a contribuição de pesquisadores vindos de todas as áreas do conhecimento. Um excelente exemplo é a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) que realiza um trabalho de ponta na pesquisa, no treinamento e na divulgação científica sobre o comportamento suicida.
[10] O diagrama que representa as fases do IMV não foi traduzido e publicado aqui, uma vez que encontra-se protegido por direitos autorais. Para ter acesso à versão original, o uso do modelo nos foi concedido para um texto em inglês, publicado no site IHAWKES do Institute of Mental Health and Wellbeing da Universidade de Glasgow: http://ihawkes.academicblogs.co.uk/2015/09/10/suicide-prevention-from-illness-and-risk-factors-to-thoughts-and-actions/
[11] Leia: “Notas sobre repertório comportamental” disponível em http://comportamentoesociedade.com/2013/08/05/notas-sobre-repertorio-comportamental/

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Escrito por Tiago Zortea

Possui graduação em Psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santo, onde atuou como pesquisador-bolsista do Ministério da Educação pelo Programa de Educação Tutorial em Psicologia. Possui mestrado em Psicologia pela mesma instituição na área de Evolução e Etologia Humana (Bolsista CAPES). Possui formação em Terapia Comportamental pelo Instituto de Terapia por Contingências de Reforçamento (ITCR) e atua em consultório particular no trabalho com crianças, adolescentes e adultos. Atualmente é pesquisador de PhD na University of Glasgow (Escócia, Reino Unido), membro do Suicidal Behaviour Research Laboratory, onde pesquisa sobre comportamento suicida e práticas parentais. É membro da British Psychological Society e revisor do periódico Archives of Suicide Research (International Academy of Suicide Research). Trabalha com os seguintes temas/áreas: Suicídio; Comportamento Suicida; Autolesão; Prevenção ao suicídio; Práticas parentais; Psicologia Clínica; Análise do Comportamento; Etologia Humana; Investimento Parental.

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