Inicialmente, quando falarmos de relacionamento amoroso neste trabalho, não nos restringiremos ao modelo convencional (heteronormativo), posto que toda relação social/amorosa está sujeita a dificuldades devido a expectativas irreais quanto ao outro e a relação em si.
Dentro do escopo analítico-comportamental, compreendemos que um repertório comportamental pode ser instalado por uma consequência específica, mas que, por sua vez, a manutenção poderá ser feita por outro tipo de consequência. Por exemplo, o repertório de estudar análise do comportamento pode ter sido instalado pela consequência reforçadora intrínseca dos textos sobre práticas culturais. No entanto esta mesma pessoa pode estudar textos experimentais sobre comportamento supersticioso apenas para se esquivar de reprovação social e nas disciplinas da graduação. De tal modo, o repertório “estudar análise do comportamento” foi instalado e mantido por consequências distintas.
Do mesmo modo, o repertório comportamental de relacionar-se de modo amoroso/íntimo pode ser instalado por conta de consequências específicas (contato físico/afetivo, reforço mútuo de seguimento de regras sociais, etc.) e, no decorrer do relacionamento, poderá ser mantido por outras consequências (reprovação social da perda de bom partido, sentir-se sozinho, etc.).
Desta maneira, podemos compreender por que motivo as queixas (tatos verbais) “Nosso relacionamento não é mais o mesmo” ou “Eu não sinto o que sentia no começo do relacionamento” são geralmente emitidas no contato com o psicólogo. Apesar de elas não descreverem as contingências-problema, nos possibilitam questionar o que mudou, o que passou a funcionar de modo inadequado. Por exemplo, a forma mais romântica de um dos conjugues podia ser emitida com frequência no início do relacionamento, como escrever poesias, enviar flores, etc., e, na medida em que a intimidade entre ambos aumentou, pode ter deixado de ocorrer com tanta frequência, sendo emitida apenas em datas comemorativas.
Pessoas que apresentam essa queixa podem embasar seus comportamentos em uma autorregra comum, formulada a partir das experiências do início do relacionamento: achar que os efeitos respondentes (emoções de prazer e/ou desagrado) são o melhor parâmetro para medir se um relacionamento está bem. Isso porque tanto as consequências reforçadoras quanto punitivas podem eliciar respostas emocionais intensas. Segundo Milleson (1967), a novidade é um reforçador natural e, no início do relacionamento, muitas atividades novas são feitas por um casal (o primeiro beijo, a primeira dança, o primeiro sexo, etc.). Estas diversas atividades novas podem propiciar um contexto para emergência de regras e autorregras de topografia “um relacionamento feliz e saudável sempre eliciará respostas emocionais prazerosas”. Além disso, muitas das mídias a que estamos expostos (televisão, publicações em redes sociais) apresentam modelos de casais felizes, de um relacionamento amoroso saudável, sem mostrar frustrações no decorrer da experiência a dois. O constante contato com essa dinâmica pode instalar e ajudar a manter no indivíduo essa regra de que “só é bom se eliciar sentimentos positivos”. Assim, o sujeito pode passar a usar este parâmetro como “termômetro” para saber se algo no relacionamento amoroso precisa ser mudado. Quando acha que algo precisa ser mudado, este sujeito poderá solicitar, de modo assertivo ou não, mudanças no comportamento do outro.
Aqui devemos pontuar uma situação que ocorre com frequência: referir-se aos comportamentos do outro como causa do problema do relacionamento sem levar em consideração que seus próprios comportamentos podem contribuir para manutenção dos contextos aversivos e problemas conjugais. Acreditamos que parte da manutenção deste comportamento esteja relacionado a prática cultural de explicar os fenômenos do mundo a partir o modelo mecanicista, cujo fenômeno ocorre apenas em função de uma única causa. Por exemplo, como se a causa da chuva fosse apenas a temperatura, sem levar em conta a umidade do ar, época do ano, etc. Na verdade, a relação amorosa pode apresentar problemas que não seriam causados por apenas um dos membros do casal, mas que estariam relacionados a uma série de eventos passados e presentes da vida a dois. Pode-se supor que, não há, assim, um sujeito causador/iniciador dos problemas por si, já que ambos são responsáveis pela dinâmica do relacionamento . Desse modo, é preciso olhar para a história do casal para compreender como um problema se tornou um problema, em vez de fazer um recorte no qual indicamos um dos conjugues como possível culpado.
Se as reclamações de um não forem correspondentes aos contextos amorosos vividos ou se os problemas forem correspondentes ao cotidiano e não forem discriminados pelo outro conjugue, a solicitação de mudanças comportamentais, mesmo que de maneira assertiva, poderá gerar conflitos entre o casal: de um lado, porque não é uma reclamação baseada em fatos reais; por outro, porque um dos conjugues não percebe que há problemas reais na relação amorosa. De tal modo, temos aqui uma forma de expectativa amorosa que pode gerar frustração. De um lado, a pessoa que acredita existir um problema espera mudanças no comportamento do outro que podem não ocorrer; de outro, a pessoa a quem foi solicitado mudança não reconhece (discrimina) de que maneira ela é causadora dos problemas do casal, ou mesmo não encontra correspondência entre verbalizações do conjugue e acontecimentos diários.
Outro contexto que pode gerar expectativas amorosas incoerentes é o fato de que um dos membros do casal diminui a busca de outras fontes de reforçamento que venham a suprir suas necessidades. Por exemplo, pode deixar de sair com amigos para festas ou mesmo deixar de sair com amigos, pode diminuir a frequência de atividades físicas, etc. Há ainda a possibilidade de restringir seu lazer à presença do parceiro, ou seja, só sai com amigos se o conjugue for, só faz compras com conjugue, etc. Aqui, neste texto, chamaremos esta classe de comportamentos de auto restritiva, já que o sujeito deixa de buscar outras fontes de reforçadores em função apenas de contextos envolvendo o parceiro amoroso.
Deste modo, o conjugue que se comportou de modo auto restritivo pode esperar que o par seja responsável por prover determinada densidade de reforço ou mesmo, de comportamentos afetivos de topografias diversas, como atenção, ouvir problemas, dar conselhos, assistir a filmes e séries, falar de temas de pouco ou nenhum interesse do outro, etc. E assim, pode-se gerar a autorregra de que o outro não se importa, que o outro seja egoísta, que só pensa em si, quando, na verdade, o que ocorreu foi a auto restrição e baixa sensibilidade a perceber mudanças no próprio comportamento.
Este é um ponto importante: muitas das exigências solicitadas podem ser correspondentes aos contextos-problemas vividos, ou seja, uma queixa pode estar relacionada a fatos coerentes aos problemas do casal. Porém, engajar-se em mudança significa que haverá um custo, seja em relação ao tempo dedicado, atividades extras desempenhadas e, mesmo, ao custo financeiro. Assim, já começamos com uma dificuldade inerente a mudança: ela não ocorrerá rapidamente, de modo espontâneo, dependerá de certo grau de esforço.
Além do custo de resposta de se engajar em “fazer um bom relacionamento”, há outras atividades do dia a dia que podem ser fonte de maior prazer ou demandem maior atenção para evitar, fugir ou minimizar o desprazer. Por exemplo, certo gênero cinematográfico pode ser mais reforçador para um conjugue do que para outro, assim há concorrência entre ver um filme de seu inteiro prazer ou optar por assistir algo que não seja do seu maior interesse. Outro exemplo, escrever um relatório para evitar bronca do chefe ou professor pode ser mais (ter maior poder) aversivo do que chatear o conjugue por não fazer uma surpresa no dia dos namorados. Assim, nosso comportamento de engajar-se em um bom relacionamento não ocorre de modo apartado das outras contingências diárias, mas concorrem com os demais contextos e com as próprias consequências e graus de reforçamento/aversividade dos mesmos.
Neste ponto, é importante lembrar que é fácil falar sobre as contingências hipotéticas e/ou extraídas de textos acadêmicos. No entanto, no dia-a-dia estamos sob controle de diversos estímulos e discriminar que variáveis estão mantendo e/ou dificultando boas (e más) práticas amorosas torna-se mais complexo e impreciso. Por exemplo, quem de nós nunca percebeu que determinado gesto significava DR (discutir a relação)? Ou quem nunca percebeu que a outra pessoa evitava certos assuntos aversivos dizendo estar com dor de cabeça ou sono? Às vezes, a própria pessoa que se comportava nem percebe que agia assim.
Desta maneira, um conjugue pode se comportar sob controle de expressões sutis do comportamento do outro, como gestos e expressões faciais, de tal modo que o comportamento de um pode ser contexto para que o comportamento problema do outro ocorra (como evitar discutir a relação, evitando a chateação do outro). Assim, como já foi dito, o controle comportamental é bilateral, os comportamentos de um influenciam os comportamentos do outro. Podemos supor que um membro do casal pode agir de modo coercitivo sem perceber e o outro pode se comportar de maneira a evitar possíveis punições do primeiro. Assim sempre devemos levar em consideração que as queixas ou ausência delas não dependerão de que apenas o outro tenha a iniciativa de agir em prol de melhora da relação, mas que ambos o façam, estando atentos aos detalhes mais sutis que fazem como que ajamos de determinadas maneiras que ou são parte do problema ou não ajudam a solucioná-lo.
Uma questão importante tratada por Neno e Tourinho (2007) é que não basta expressar sentimentos amorosos, mas que estes sejam adequados à audiência a que ele é direcionado. Por exemplo, digamos que em um certo país determinados comportamentos sejam tidos como expressão de sentimentos, mas em outro, o mesmo comportamento não desempenha essa mesma função social. Digamos que duas pessoas que chamaremos de A e B, uma de cada um destes países, mantenham um relacionamento amoroso. Os problemas que podemos ouvir deste casal são: (1) que A não se sente amada por B, pois este não expressa sentimentos que, para ela, são considerados adequados, ou B não os expressa nos momentos adequados; e/ou (2) B pode se sentir magoado, pois ele expressa muito sua intimidade, mas acredita que A não reconhece.
Esse exemplo é um modelo didático de como uma demonstração de afeto pode ser efetiva em um contexto social (geográfico/cultural) e em outro não. Mas podemos pensar que mesmo pessoas nascidas em uma mesma rua ou sendo da mesma família podem ter concepções distintas sobre demonstrações de afeto. A partir de seu histórico de vida (observação de relacionamentos amorosos, vivência em outros relacionamentos), um sujeito pode ter uma concepção de quais demonstrações de afeto são ou não efetivas em reforçar o comportamento de se relacionar afetivamente com o outro.
Assim, não basta se comportar de modo afetivo segundo seu ponto de vista, suas premissas pessoais e experiências anteriores, em um primeiro ou novo relacionamento amoroso é preciso levar em conta o que afetará o outro de maneira efetiva/afetiva. Somos sujeitos em constante mudança, a cada dia nossas relações com o mundo são renovadas (mantendo algumas formas de nos relacionarmos e outras deixando de nos influenciar). É preciso estar atento a estas mudanças e no modo de se comportar, de se relacionar com esse mundo. Dentro de um relacionamento amoroso, somos modificados/influenciados pela relação com o outro, e, por outro lado, nós também modificamos/influenciamos o outro de algum modo Estar atento ao que se pode fazer para produzir mudanças favoráveis ao relacionamento amoroso é essencial para que uma relação seja mantida de forma saudável e afetuosa.
REFERÊNCIAS
MILLESON, J. R. Princípios de Análise do Comportamento. Brasília: Coordenada, 1967.
NENO, S.; TOURINHO, E. Z. Dizer “eu te amo” também é ser assertivo. In. CONTE, F. C. S.; BRANDÃO, M. Z. S. Falo? Ou não falo? Expressando sentimentos e comunicando ideias. Londrina: Mecenas, 2007.
OTERO, V. R. L.; INGBERMAN, Y. K. Terapia Comportamental de Casais: da teoria a prática. In. BRANDÃO, M. Z. et. al. Sobre Comportamento e Cognição: contingências e metacontingências, contextos sócio-verbais e o comportamento do tearapeuta. Santo André: ESETec Editores Associados, 2004, v. 13