Paula Grandi – www.paulagrandi.com.br
Conseguir relatar como nos sentimos frente a diversas situações é uma importante habilidade. Dizemos que sentimos tristeza, felicidade, medo, raiva, ansiedade, um aperto no peito ou até mesmo borboletas na barriga. É através do relato dos eventos privados (aqueles aos quais só nós mesmos temos acesso) que o outro pode saber o que se passa conosco. De uma perspectiva Behaviorista Radical e, ao contrário do que muitos críticos pensariam, seria loucura negligenciar como uma importante fonte de informação aquilo que sentimos privadamente pelo simples fato de que apenas uma pessoa, o próprio indivíduo, pode entrar em contato com o que é sentido (Skinner, 1974).
Uma observação, no entanto, é necessária: aquilo que se passa no nosso mundo privado não tem uma condição física especial por estar localizada dentro desses limites; os eventos privados, da mesma forma que os eventos públicos, se caracterizam como eventos físicos (Skinner, 1974). A diferença entre os eventos públicos e privados está apenas quanto a sua acessibilidade.
Vamos então falar sobre sentir. Prefiro a palavra sentir (em vez de sentimentos) pois ela explicita uma ação: sentimos aquilo que se passa privadamente. Desta forma, o sentir pode ser considerado uma ação sensorial como o ver ou ouvir (Skinner, 1989). Mas, se saber expressar como nos sentimos é tão importante, por que às vezes pode parecer tão difícil? Não é incomum que clientes com as mais diversas queixas clínicas cheguem ao consultório com muita dificuldade em relatar como se sentem. Eles podem não saber o que responder frente à pergunta “e como você se sentiu?”, ou parecer confusos se têm que escolher um sentimento específico (como raiva, medo, tristeza ou desapontamento) para descrever o que sentiram em determinada situação.
No presente texto, não pretendo esgotar o assunto ou analisar todas as possibilidades do porquê pode ser difícil relatar e compartilhar o que se sente. Irei então discorrer sobre duas possibilidades que parecem, por vezes, explicar a dificuldade de muitos em relatar o que ocorre privadamente: 1. Quando não aprendemos a relatar o que sentimos; e 2. Quando o relato do que sentimos é punido.
Saber relatar o que sentimos definitivamente não é uma habilidade inata. Ninguém nasce sabendo falar sobre os seus sentimentos e esta não é uma habilidade tão simples de ser aprendida. É a comunidade verbal que, através de perguntas e inferências, nos ensina a relatar o que sentimos – fazendo o possível para driblar a privacidade destes eventos (Skinner, 1974).
Imaginemos a seguinte situação: um adulto quer ensinar a uma criança o que é vermelho. O que será que ele faria? Provavelmente mostraria à criança muitos objetos vermelhos, objetos totalmente diferentes que tenham como única propriedade física semelhante a cor vermelha. Após reforçar o relato “vermelho” frente a todos esses objetos, a criança possivelmente conseguirá dizer com certa precisão que um objeto ainda nunca visto é vermelho. Mas e para ensinar o que é tristeza? Como se ensina a alguém o que é estar triste? A comunidade verbal pode inferir que alguém sente algo parecido com tristeza frente a determinados acontecimentos e assim reforçar o relato “estou triste”; mas a verdade é que, ao ensinar relatos sobre eventos privados (chamados de tatos sob controle de eventos privados), nunca se sabe exatamente o que se passa privadamente com o outro (Skinner, 1957). Ai está a grande dificuldade gerada pela privacidade. É possível apenas inferir que quando uma criança perde um brinquedo favorito ou não pode sair de casa porque está chovendo ela se sinta triste. A comunidade tentará ensinar o que é a tristeza em relação a estes eventos públicos (aos quais ela tem acesso), mas nem sempre o estabelecimento de tatos sob controle de eventos privados é bem sucedido. Imaginem tentar ensinar o que é saudade? Nossa, que complicado!
Se a própria comunidade verbal enfrenta tanta dificuldade para ensinar um indivíduo a tatear (entrar em contato com) e relatar eventos privados, imagine o que acontece com alguém que não passa por esse tipo de treino. Quem pensou que para essa pessoa provavelmente será muito difícil relatar o que sente, acertou. Na ausência de um treino extenso de tatos sob controle de eventos privados, não aprendemos a relatar o que sentimos.
Quando uma criança cai no chão e rala o joelho, é provável que alguém vá socorrê-la e descreva: “Isso deve estar doendo! Está doendo? Vamos fazer um curativo.” Ensina-se então a criança a dizer que sente dor e a comunidade reforça esse relato, pois teve acesso a certos acompanhamentos públicos de estímulos dolorosos, no caso, ralar o joelho. A palavra dor é então pareada com os eventos privados eliciados pelo tombo e, em ocasião futura, quando os mesmos eventos privados voltarem a ocorrer, a criança indicará que sente dor. Ela passa então a saber falar o que sente. Mas e se uma criança não passar por esse treino? Ela pode ser socorrida por um adulto que não lhe descreve que o que ela sente é chamado de dor. Neste caso, será que ela saberá relatar que sente dor a próxima vez que se machucar? Com quase toda certeza, não. Podemos estender esse exemplo para diversas palavras que utilizamos para descrever o que sentimos: tristeza, felicidade, frustração, medo, raiva, ansiedade, nojo.
Isto posto, uma criança que é frequentemente questionada (O que você fez hoje? Você está com fome? Você ficou com medo quando isso aconteceu? O que você sentiu quando seu amigo fez aquilo?) terá que ficar sob controle dos seus eventos privados e do seu próprio comportamento para responder a essas perguntas. Uma criança que passa por um treino extenso de descrição de eventos privados (O papai já está viajando por três dias, imagino que você esteja com saudade. Uau, que demais, você deve estar muito feliz por ter ganho essa medalha.) provavelmente estará em uma melhor posição para falar sobre o que sente no futuro. É a nossa comunidade verbal que nos ensina a discriminar e a expressar verbalmente o que sentimos. Temos assim a primeira possibilidade que pretendia abordar: pode ser que seja difícil relatar o que sentimos devido a um treino deficiente.
Muitas vezes, aprimorar este treino pode vir a ser um dos focos da terapia (já que ele é tão importante nos relacionamos interpessoais). O terapeuta poderá expor o cliente a estas perguntas e exemplificar os diferentes sentimentos para que, após ser submetido a contingências de reforçamento especiais, o cliente consiga descrever com mais precisão o que está sentindo. Mas isso já é assunto para outro texto.
Por fim, a segunda possibilidade: quando o relato do que sentimos é punido. Imaginemos a seguinte situação: você compartilha com um amigo que ficou muito triste por ter perdido um chaveiro que tinha um valor especial por ter sido um presente de seu avô. Se seu amigo disser: “Ai, pare com isso, compramos outro! Tem tantas outras coisas mais importantes”, será que você lhe contará algo semelhante no futuro? Acredito que não.
Imagine agora que você vivenciou uma situação difícil no trabalho e a compartilhou com os familiares, afirmando que o que o seu chefe lhe disse o deixou muito apreensivo e preocupado (talvez com um aperto no peito). Vamos analisar as possíveis reações da família. Se eles lhe disserem “Nossa, você se preocupa demais! Nem foi tudo isso, para, bola pra frente! Você é muito inseguro mesmo”, você terá vontade de compartilhar com eles as suas preocupações e como se sente novamente? Provavelmente não. Quando desvalidamos e punimos o relato sobre o que o outro sente, não o ajudamos a deixar de sentir aquilo, apenas o ensinamos a não mais compartilhar conosco o que é sentido.
Interações coercitivas ameaçam o nosso bem-estar (Sidman, 1989). Quando uma resposta é punida (neste caso, o relato sobre o que é sentido), todos os estímulos que estavam presentes no momento da punição, bem como a pessoa que pune, tornam-se estímulos aversivos condicionados (Skinner, 1953). Assim, falar sobre o que se sente para uma pessoa que puniu esse relato provavelmente será muito difícil. É possível que a pessoa diga: “Eu não tenho mais vontade de falar o que estou sentindo para ele” ou ainda “Fico com medo e apreensiva de contar o que estou sentindo, eu nunca sei como ele irá reagir”.
Pode ser que aquele que teve o relato de eventos privados punidos pare totalmente de falar sobre isso, já que uma história de punição pode tornar a própria resposta de relatar um aversivo condicionado. Neste caso, tem-se o repertório para relatar o que é sentido, mas a aversividade do relatar impede que os sentimentos sejam compartilhados.
Gostaria de finalizar afirmando que, seja qual for a história de vida que torne o falar sobre o que sentimos difícil, sempre é possível construir uma nova história que torne este relato mais fácil. É possível aprender a relatar o que se sente por meio de contingências favoráveis e amigos atenciosos e interessados no que sentimos provavelmente tornarão o relato sobre eventos privados menos aversivo.
REFERÊNCIAS
Sidman, M. (1989/2009). Coerção e suas implicações. Campinas, São Paulo: Ed. Livro Pleno.
Skinner, B. F. (1953/2007). Ciência e Comportamento Humano. São Paulo: Martins Fontes.
Skinner, B. F. (1957/1978). O Comportamento Verbal. São Paulo: Cultrix: Ed. da Universidade de São Paulo.
Skinner, B. F. (1974/2006). Sobre o Behaviorismo. São Paulo: Cultrix.
Skinner, B. F. (1989/1991). Questões recentes na Análise do Comportamento. Campinas: Papirus.