Tablets: A Contribuição da Tecnologia na Intervenção Comportamental com Autismo

Estamos vivendo a geração mais tecnológica de todos os tempos, estamos assistindo, cada vez mais espantados, crianças cada vez mais novas manipulando aparelhos com tecnologias cada vez mais avançadas com uma facilidade alarmante e um interesse compulsivo. Estamos achando graça cada vez que o netinho ensina a vovó como ligar o tablet, checar e-mails ou postar em redes sociais. Nos dias de hoje parece que as crianças já nascem sabendo como manipular tanta tecnologia o que, para nós, foi necessário tempo e dedicação para aprender. Porque será? As crianças estão nascendo mais “espertas”? Acho que não… Para mim a tecnologia é que está ficando mais óbvia e muito, mas muito mais interessante.

A grande jogada das empresas de tecnologia foi o touch screen. Na minha opinião, está aí o começo da era em que bebês muito novos manipulam tecnologia. A tela sensível ao toque é o segredo para o aprendizado e interesse precoces por tecnologia, afinal, a resposta de tocar e passar os dedos sobre as superfícies surge muito cedo no desenvolvimento infantil. Com apenas 3 meses os bebês já tocam e passam os dedos em objetos, principalmente os que possuem cores chamativas ou luzes. O touch screen (espertamente) tornou essa resposta tão precoce no desenvolvimento humano, a única resposta necessária para manipular qualquer aparelho tecnológico atual. Ou seja, eliminando o mouse e os botões, tornou-se desnecessário qualquer tipo de treino para uma criança usar um aparelho tecnológico, afinal, a resposta necessária (tocar) ela praticamente “nasce sabendo”.

Associado a essa facilidade no manuseio trazida pelas telas sensíveis ao toque, o imenso universo de imagens, cores, luzes e sons torna tablets, computadores e celulares objetos extremamente atraentes e desejados pelos pequenos. O mesmo se aplica aos pequenos diagnosticados com Transtorno do Espectro do Autismo que, como qualquer criança, também aprendem rapidamente e com interesse voraz a manusear essa tecnologia. Essa facilidade de manuseio e essa grande motivação são grandes aliados na intervenção com crianças autistas, já que os tablets e computadores podem ser instrumentos de aprendizado. Muitos estudos (Krantz e McClannahan, 1998; Finkel e Williams, 2001; Shabani, Katz, Wilder e Beauchamp, 2002) indicam que crianças com Autismo aprendem melhor com estímulos visuais e mais concretos do que com estímulos apenas auditivos.

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Neste artigo vou apresentar os diversos usos dos tablets para a intervenção com crianças autistas e outros transtornos do desenvolvimento, visando a motivação, o aprendizado e a generalização de habilidades já aprendidas. Também vou citar alguns aplicativos que têm sido utilizados no dia-a-dia de nossos clientes como pistas visuais para comunicação, organização da rotina, treino de habilidades acadêmicas, motivação, etc.

Os tablets têm sido instrumentos muito úteis no ensino de habilidades acadêmicas e, principalmente, na generalização de habilidades aprendidas na escola ou na terapia individualizada. Essa motivação natural facilita o engajamento das crianças em atividades acadêmicas que, na maioria das vezes, não são motivadoras em si. Existem muitos aplicativos com essa finalidade que são bastante lúdicos e motivadores. Esses aplicativos podem ser utilizados nos momentos livres para evitar a ociosidade e os comportamentos inadequados que esta provoca; nos momentos de transição entre atividades, até mesmo no carro; na escola quando a criança não puder acompanhar o conteúdo que estiver sendo dado ou nos momentos mais desestruturados; etc.

O aplicativo 123 Animals Counting permite o treino de duas habilidades importantes: Contagem e Emparelhamento de Numerais e Quantidades. Esse aplicativo tem contribuído muito para ensinar crianças autistas que têm dificuldade de ficar sob controle da quantidade. Essas crianças, muitas vezes, aprendem a contagem apenas sob controle intraverbal, ou seja, aprendem a falar os números em sequência, independentemente da quantidade de estímulos que estão vendo ou que lhes foi pedido para contar. Assim, a criança continua contando mesmo que já tenham acabado os estímulos, afinal ela não está sob controle destes. Esse aplicativo bloqueia o contar sob controle intraverbal e facilita a contagem sob controle da quantidade, afinal os números que surgem em cada estímulo tocado são pistas visuais para que a criança pare de contar verbalmente quando acabarem os estímulos. Depois de contar (tocar) em cada estímulo na tela do tablet, a criança deve tocar no numeral correspondente à quantidade, dentre 3 opções apresentadas nas estrelinhas (Emparelhamento Numeral e Quantidade). Essa resposta é uma discriminação condicional, ou seja, a quantidade contada é o estímulo modelo que determina qual dos 3 estímulos-comparação apresentados é o correto. O último número que apareceu acima do último animal contado é uma pista visual para a resposta de discriminação. Ou seja, a criança pode apenas olhar para este último número e tocar no número igual, dentre as 3 opções apresentadas, fazendo um Emparelhamento de Identidade. Outra característica legal é que o jogo apresenta elogio como reforço positivo a cada acerto, e liberação de novos animais após completar cada nível.

Outro aplicativo interessante é o Preschool Lite, que pode ser utilizado para dar função, generalizar e manter as habilidades ensinadas nos programas estruturados de alfabetização. Pode-se, por exemplo, pedir que a criança monte palavras com letras soltas, principalmente as palavras já aprendidas nos programas de alfabetização. Isto pode ser feito tanto com ditado (falar uma palavra para a criança escrever), quanto com cópia (escrever a palavra em um papel para a criança copiar no tablet). Outra utilidade é trabalhar a discriminação de letras, números e animais, ou seja, pedir que a criança aponte estímulos pedidos durante o jogo, estimulando que ela use esta habilidade treinada na terapia.

Têm muitos aplicativos voltados para a alfabetização que utilizam apenas letras cursivas (Por exemplo, o Descobrir o ABC), o que não é muito indicado para crianças com dificuldades de aprendizagem. O mais indicado é apresentar, inicialmente, apenas a letra bastão. Mas, caso a letra cursiva seja um interesse da própria criança, estes aplicativos podem ser muito úteis. Pode-se generalizar e estimular a manutenção de habilidades como: 1) Identificação de Letras, Palavras ou Imagens, ou seja, o adulto pede para a criança apontar um determinado estímulo na tela do tablet; 2) Leitura, ou seja, a criança pode fazer hipóteses de leitura das palavras ou treinar a leitura de palavras já aprendidas.

Uma grande variedade de aplicativos são voltados para o treino de habilidades motoras finas e grafomotoras (Ex.: Kids Finger Painting e Learn Your Numbers HD). As crianças autistas têm, na maior parte dos casos, muita dificuldade de desenvolver a coordenação motora fina. Essa dificuldade gera uma resistência grande a esse tipo de atividade que, por serem difíceis se tornam extremamente aversivas para essas crianças. Aplicativos como esses são muito úteis neste treino fundamental, afinal desenhar ou escrever com os dedos no tablet é muito mais motivador e atrativo do que receber uma atividade em papel e lápis. Assim, conseguimos ampliar o tempo de treino das habilidades motoras finas, sempre garantindo a motivação.

Outra importante utilidade dos tablets na intervenção com Autismo é a organização da rotina e combinados visuais. Programações, rotinas e combinados visuais aumentam a independência e diminuem a ansiedade nas transições entre atividades rotineiras, além de contribuírem para a compreensão de mudanças repentinas na rotina que costumam gerar irritação e desestruturação em crianças autistas. Os tablets oferecem uma série de aplicativos com este objetivo.

O First Then Visual Schedule tem sido muito útil com nossas crianças, pois ele permite que um procedimento que antes era feito só em casa e na escola, seja feito em qualquer ambiente, como: carro; parques; shoppings; restaurantes; passeios; viagens; etc. O fato de poder utilizar fotos armazenadas no tablet ou fotos da Internet facilita a montagem de pequenas rotinas ou combinados visuais na hora em que estes são necessários. Por exemplo, durante um passeio surge um imprevisto e uma nova rotina é planejada. Essa rotina pode ser apresentada visualmente para a criança, reduzindo a ansiedade gerada pela mudança, no mesmo instante pelo tablet, sem que seja necessário que a família esteja com fotos e pastas que são difíceis de transportar.

Temos utilizado também o Stories2Learn para montar rotinas, combinados visuais ou sequência de respostas para uma determinada atividade de vida diária. O adulto seleciona fotos armazenadas e descreve cada foto com letras grandes. No dia-a-dia o adulto apresenta essas rotinas para reduzir a ansiedade da criança frente à imprevisibilidade de acontecimentos e, também, como pistas visuais para a criança falar sobre suas atividades ou executar uma determinada atividade. Esse aplicativo também tem outras utilidades, como: 1) Criação de histórias – para estimular a criatividade na invenção de roteiros com imagens da Internet ou imagens salvas no tablet. A criança seleciona as imagens e escreve uma frase para cada uma, montando um livro digital. Com alguns clientes, fazemos isso ao final do Programa de Compreensão e Interpretação de Textos, no qual são feitas várias atividades que levam à compreensão total de uma história e à sua interpretação. Ao final, a criança monta um livro digital sobre a história trabalhada; 2) Relato de experiências – pode-se montar um portfólio de experiências extraordinárias da criança como: passeios, viagens, festas, visitas de familiares, eventos na escola, etc. Para isso, a criança pode selecionar fotos destas experiências já armazenadas no tablet e digitar (com ou sem ajuda do adulto) uma descrição para cada foto. Assim, a criança montaria uma espécie de livro digital para cada experiência extraordinária de sua vida. Estes livros digitais podem, depois, serem utilizados como pistas visuais para a criança relatar estes eventos para familiares ou contar suas experiências nas rodas de conversa da escola.

O aplicativo Corkulous também tem sido utilizado por nossa equipe, principalmente, para a montagem de rotinas semanais, afinal consiste em um quadro que permite colocar várias fotos em colunas para cada dia da semana. É possível visualizar a semana toda (em zoom baixo) ou ampliar o quadro para ver cada foto ou uma sequência de três fotos. A criança pode aprender a montar seu próprio quadro de rotina arrastando as fotos com o dedo.

Os tablets também oferecem diversão e motivação suficientes para ocuparem o tempo livre de forma funcional e prazerosa e, também, para serem utilizados como reforçadores para respostas adequadas a demandas colocadas na terapia, na escola ou no dia-a-dia. Existem muitos aplicativos que visam a diversão, mas que também podem ser utilizados para o treino, generalização ou manutenção de habilidades aprendidas. Por exemplo, o Painting the Animals, além do lúdico, é útil para estimular as habilidades de representação, afinal a criança começa pintando imagens de animais reais com pouca transparência, ou seja, ela praticamente pinta uma imagem já colorida e pronta; no decorrer dos níveis esta transparência vai gradualmente aumentando e a criança vai pintando cada vez mais sozinha, ou seja, sem a ajuda da imagem real. Com isso, estimula-se o desenhar e o pintar de acordo com a realidade, ou seja, imitando as cores e as formas das coisas reais.

Os aplicativos que apresentam um animal ou personagem que repete o que falamos perto do tablet, como o Talking Tom Cat e muitos outros que têm a mesma função (mudando apenas o personagem), além de divertidos podem ser usados para treino de diversas habilidades verbais. Para isso, o adulto deve sempre falar algo perto do tablet para o personagem repetir. Assim, é o personagem quem dá o modelo ou coloca a demanda para a criança, podendo até estabelecer pequenos diálogos com ela. O fato de o modelo ou demanda vir de um gatinho, robô, papai noel, papagaio, etc., pode aumentar a motivação para a criança responder. Além disso, o fato de o personagem repetir o que ela falou pode funcionar como um poderoso reforçador.

O Sound Touch Lite apresenta onomatopeias (sons de animais, eletrodomésticos, meios de transporte, instrumentos musicais, etc.). Além da diversão, este aplicativo pode ser usado para treinar as seguintes habilidades: 1) Ecoico: a criança escolhe um estímulo, toca nele, ouve seu som e, depois, deve repetir o som ouvido. Com isso, ela pode aprender a verbalizar os sons dos animais; dos meios de transporte; dos instrumentos musicais; etc.; 2) Discriminações Visuais: o adulto pode pedir para a criança tocar em um determinado estímulo, trabalhando a discriminação auditivo-visual, ou seja, a criança houve o que foi pedido pelo adulto e deve discriminar a imagem correspondente dentre as diversas imagens na tela do tablet.; 3) Discriminações Auditivas: sem a criança ver a tela do tablet, o adulto toca em um animal, transporte, instrumento musical ou utensílio doméstico, gerando seu som. Depois de ouvir o som, a criança deverá verbalizar o nome daquele estímulo. Se a criança não fala, depois de produzir o som sem ela ver a tela do tablet, o adulto pode apresentar a tela com todos os estímulos e pedir para a criança apontar de quem era o som que ela ouviu.

Finalmente, outra importante e muito utilizada função dos tablets na intervenção com Autismo é a comunicação por pistas visuais. Esta comunicação alternativa em tablets é vantajosa pela facilidade de inserir novas fotos sem que o material fique pesado ou difícil de transportar. O treino de comunicação por pistas visuais pode ser feito em tablets de duas formas. A primeira não utiliza aplicativos, ou seja, usamos fotos categorizadas na pasta de imagens do tablet e ensinamos a criança a abrir a pasta de imagens, abrir a pasta da categoria do que ela quer pedir ou contar (Alimentos, Brinquedos, Atividades, Lugares, Pessoas, etc.), depois selecionar a foto do que quer pedir ou contar e mostrar a foto ao adulto.

A segunda forma seria com aplicativos desenvolvidos exclusivamente para a comunicação por pistas visuais, por exemplo: iComm; Proloquo2Go; iCommunicate; Grace; iConverse; AutismXpress (este é exclusivo para a comunicação de sentimentos). Estes aplicativos possuem imagens padronizadas e, a maioria, também permite que usemos fotos próprias, arquivadas no tablet. É possível escrever legendas para as fotos e, alguns, permitem que gravemos um áudio que “fala pela criança” sempre que ela toca em alguma imagem ou forma uma frase. Alguns têm, ainda, a tecnologia “text to speech”, por meio da qual o tablet lê o que escrevemos, mas como a maior parte dos aplicativos é em Inglês, a leitura de textos em Português fica com uma pronúncia ruim. Então, o melhor é gravar o áudio que acompanhará cada imagem.

Para todas estas funções, o tablet deverá ser manuseado pela criança sempre com a supervisão de um adulto por dois motivos principais: 1) É um dispositivo frágil que pode se quebrar facilmente se não for manuseado com cuidado. Além disso, é muito caro para se fazer reposições frequentes; 2) Alguns aplicativos podem ser utilizados de forma estereotipada ou repetitiva, até mesmo o deslizar de páginas dos tablets pode se tornar um comportamento auto estimulatório. O adulto deve direcionar a criança para um manuseio funcional, educativo e correto.

Referências Bibliográficas:

Finkel, A. S. & Williams, R. L. (2001). Comparison of textual and echoic prompts on the acquisition of intraverbal behavior in a six-year-old boy with autism. The Analysis of Verbal Behavior, 18, 61-70.

Krantz, P. J. & Mcclannahan, L. E. (1998). Social interaction skills for children with autism: A script-fading procedure for beginning readers. Journal of Applied Behavior Analysis, 31, 191-202.

Shabani, D. B., Katz, R. C., Wilder, D. A., Beauchamp, K., Taylor, C. R. & Fischer, K. J. (2002). Increasing social initiations in children with autism: Effects of a tactile prompt. Journal of Applied Behavior Analysis, 35, 79-83.

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Escrito por Juliana Fialho

Graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo no ano de 2006. Mestre em Psicologia Experimental: Análise do Comportamento pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Dissertação defendida em maio de 2009). Trabalha como psicóloga na Gradual (Grupo de Intervenção Comportamental), onde lida principalmente com crianças e adolescentes com desenvolvimento atípico. Tem experiência em Análise do Comportamento Aplicada. Já desenvolveu pesquisas de Iniciação Científica, Conclusão de Curso e Mestrado nos seguintes temas: desenvolvimento atípico, avaliação de repertório inicial, intervenção comportamental, comunicação funcional e alternativa e variabilidade comportamental.

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