Treinando a Flexibilidade Psicológica

    Há um provérbio chinês, de autoria desconhecida, que diz “não há que ser forte. Há que ser flexível”. Frase interessante, daquelas que nos faz pensar. E ela pode ser relacionada a diversos contextos. Utilizarei-a, aqui, para abordar sobre o contexto psicológico, mais especificamente o contexto verbal. Há um entendimento de que o sofrimento humano é maior quanto mais rígido e inflexível psicologicamente a pessoa está (Hayes, Levin, Plumb-Vilardaga, Villatte, & Pistorello, 2014). Ou seja, o sofrimento é normal. Mas sofremos ainda mais ao tentarmos lutar contra ele, utilizando estratégias como esquiva experiencial e estando associados aos pensamentos  (considerando-os verdade).

    Certo. Mas como ser flexível psicologicamente? Ou isso só é possível para algumas poucas pessoas escolhidas pelo acaso para terem essa habilidade? Na verdade, em geral podemos desenvolver a flexibilidade psicológica (FP), mesmo nunca a tendo antes. Porém, isso requer um treino. Você está disposto a treinar isso, agora, nesse momento? Sim? Então me acompanhe. Mas antes, vamos compreender alguns aspectos do treino.

    Baseado na teoria e prática da Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT), Kevin Polk organizou um diagrama chamado Matriz (do inglês, Matrix) que nos auxilia nesse treino (Polk & Schoendorff, 2014). De acordo com Polk, a essência da FP está em perceber a diferença entre experiências sensoriais – ou dos cinco sentidos (audição, gustação, olfato, tato, visão) – e da mente; além de perceber a diferença entre como se sente ao se afastar de experiências mentais desagradáveis (também chamado de sofrimento) ou de se aproximar daquilo que é importante. Dessa forma, foi organizado um diagrama (a Matriz) para auxiliar todos nós a notarmos essas diferenças. E o que é mais interessante é que essa Matriz se torna uma grande ferramenta de análise funcional do comportamento.

    Mas vamos ao treino. Primeiro, um “alongamento conceitual”:

Experiências dos sentidos e da mente:

    Experiências são pensamentos, sentimentos, memórias, sensações corporais, predisposições comportamentais, enfim… são vivências, percepções e sensações que todos nós sentimos (Hayes, 2005). Para auxiliar na desfusão cognitiva (um dos processos da ACT), diferenciar as experiências dos sentidos das da mente pode ser uma excelente estratégia. Experiências dos sentidos são todas aquelas que, de alguma forma, estão sendo observadas pelos sentidos nesse momento (audição, gustação, olfato, tato, visão) (Polk, 2014). Podemos treinar a observação dessa experiência com o seguinte exercício: pegue um objeto qualquer que tenha perto de ti (o teu celular, por exemplo). Procure nota-lo com o máximo dos sentidos possível. Veja-o, toque-o, sinta-o, cheire-o. Isso é experiência dos sentidos. Já experiências da mente são todas aquelas vivencias que não vem diretamente dos sentidos (ou seja, não se está sentido nesse exato momento) (Polk, 2014). Podemos treinar da seguinte forma: guarde o objeto que foi usado no exercício anterior em um lugar que não possas nota-lo pelos sentidos; agora imagine o objeto; imagine sua cor, cheiro, textura, barulho. Consegues imaginar? Mas olha que interessante: o objeto não está sendo sentido (pelos cinco sentidos) nesse momento. Se consegues imaginar, essa é a experiência da mente. Essa experiência só é possível graças a vivências diretas passadas e associações arbitrariamente definidas pelos processos da linguagem (procure por Teoria das Molduras Relacionais). As experiências da mente são fantásticas, mas ao mesmo tempo fonte de sofrimento. Veja:

    As experiências da mente podem ser divididas em Ideias Importantes (Valores) e Experiências Mentais Indesejadas (Sofrimento). As ideias importantes são experiências em que a sua vivência produz sensação de bem-estar e que são agradáveis de sentir. Ao realizar comportamentos que aproximam dessas ideias, geralmente se sente bem. Alguns exemplos podem ser: amigos, trabalho, família, solidariedade. Já as experiências mentais indesejadas (ou sofrimento) são experiências que geralmente se gostaria de não ter, pois são desagradáveis de se sentir e vivenciar. Diferente das ideias importantes, quanto mais próximo se estiver dessas experiências indesejadas, pior se sente. Quanto mais distante e evitativo for, melhor se sente. Exemplos dessas experiências são: tristeza, medo, fracasso, raiva, etc. (Polk & Schoendorff, 2014)

Comportamentos “Em direção à” e “Afastando-se de”:

    Para realizar uma análise funcional – leia Moreira (2007) para compreender mais sobre essa análise – , sugere-se diferenciar os comportamentos de acordo com a sua função. E é possível definir duas grandes funções para os comportamentos: 1) Comportamentos “em direção à”: são todos os atos que tem a função de aproximar a pessoa das ideias importantes (valores) dela. 2) Comportamentos “Afastando-se de”: são os comportamentos que tem a função de afastar, esquivar a pessoa das experiências mentais indesejadas. Cabe ressaltar que um mesmo comportamento pode ter as duas funções, dependendo do contexto. Por exemplo: Realizar atividade física em academia pode ter a função de aproximar da saúde (ideia importante) ou se afastar do medo de engordar (experiência mental indesejada) ou até mesmo dos dois, em pesos diferentes.

    Durante a análise do comportamento, temos que ter o cuidado de notar quando nossa mente estiver jugando comportamentos “em direção à” como bons e “afastando-se de” como ruins. “Bom” e “Ruim” são avaliações que, por si só, estão a serviço da mente. Seguir essa avaliação indiscriminadamente, pode nos levar a Fusão Cognitiva.

Treinando…

    Após o “alongamento conceitual”, podemos ir ao treino em si.

    Convido-te a responder essas quatro perguntas:

1)  O que ou quem é importante para ti?

2)  O que você sente que pode ser, muitas vezes, uma barreira para te aproximar do que ou quem é importante para ti? Em outras palavras, o que você sente internamente que pode ser classificada como sofrimento?

3)  Que estratégias/comportamentos você faz que têm a função de te afastar desse sofrimento?

4)  Que estratégias/comportamentos você faz que têm a função de te aproximar do que é importante para ti?

    Podes colocar as respostas nos quadrantes da imagem abaixo. O diagrama tem a função de te auxiliar a notar cada uma dessas experiências e comportamentos. E notar essa diferença é a primeira etapa para a FP. O notar está muito vinculado com o contato com o momento presente. Notar é: “o que está acontecendo comigo ou o que estou fazendo, agora?”. Discriminar é diferenciar se essa experiência é dos sentidos ou da mente ou se esse comportamento é de aproximação ou afastamento. Já escolher refere-se a qual ação, com a consciência de qual função ela tem (afastamento ou aproximação, respondendo à mente ou aos sentidos), será realizada em um contexto específico. E essa ação, escolhida intencional e atenciosamente, desenvolve a Flexibilidade Psicológica (Hayes, Pistorello & Levin, 2012).

O diagrama Matriz desenvolvido por Polk e colaboradores
O diagrama Matriz desenvolvido por Polk e colaboradores

Para compreender um pouco mais a diferença entre as experiências, podemos comparar a uma transmissão televisiva de algum esporte. Numa transmissão, há, pelo menos, dois profissionais falando para o telespectador: o narrador e o comentarista. O narrador tem a função de apenas descrever o que está acontecendo (quando o jogador passa para outro, quando é falta, quando é gol/ponto/cesta, quanto tempo ainda tem de jogo). Ele descreve o que está sentindo e, por isso, isso seria um exemplo de Experiência dos Sentidos. Já o comentarista avalia, critica, julga, comenta (compara um jogador com outro, projeta possíveis mudanças do jogo, reclama ou elogia determinada estratégia feita), tudo isso são características da mente, sendo um exemplo de Experiência da Mente. Ambas experiências são vivenciadas por nós, mas tendemos, devido a Fusão Cognitiva, sermos mais comentaristas do que narradores. Um dos objetivos da Matriz é notar essa diferença, discriminar quando estou narrador ou quando estou comentarista e escolher que ação eu vou escolher (me afastar de algo indesejado ou me aproximar de algo importante).

    Notar, discriminar e escolher. Três etapas de um treino que precisa ser constante para gerar uma mudança. A Flexibilidade Psicológica não vem a partir da realização de apenas um treino com essa Matriz, mas com a aplicação dela na vida. Por alguns momentos da tua vida diária, pergunte-se aquelas quatro perguntas anteriores e monte seu diagrama na hora. O objetivo da Matriz é auxiliarmos a notar a serviço de que está determinado comportamento em determinado contexto, enquanto dirigimos nossa vida ao que é importante para nós. Então, vamos lá: note, discrimine e escolha. Bom treino!

Referências:

Hayes, S. C, Pistorello, J., & Levin, M. E. (2012). Acceptance and Commitment Therapy as a unified model of behavior change. The Counseling Psychologist, 40 (7), 976-1002.

Hayes, S. C., Levin, M. E., Plumb-Vilardaga, J., Villatte, J. L. & Pistorello, J. (2014). Acceptance and Commitment Therapy and Contextual Behavioral Science: Examining the Progress of a Distinctive Model of Behavioral and Cognitive Therapy. Behavior Therapy, 44 (2), p. 180-198.

Hayes, S. C. (2005). Get out of your mind and into your life: the new acceptance and commitment therapy. Oakland: New Harbinger Publications.

Moreira, M. B (2007). Princípios básicos de análise do comportamento. Porto Alegre: Artmed.

Polk, K. L., & Schoendorff, B. (2014). The Act Matrix: a new approach to building psychological flexibility across settings & populations. (pp. 1-6) Oakland: New Harbinger Publications.

Polk, K. L. (2014). Psychological Flexibility Training (PFT): flexing your mind along with your muscles. Acessado em http://russwilson.coffeecup.com/Polk%20Psychological+Flexibility+Training.pdf

 

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Classificação do artigo

Escrito por Igor da Rosa Finger

Psicólogo (PUCRS). Doutor em Psicologia (PUCRS). Mestre em Psicologia, com ênfase em Psicologia Clínica (PUCRS). Colaborador do Grupo de Pesquisa Avaliação e Atendimento em Psicoterapia Cognitiva e Comportamental (PUCRS). Treinamento intensivo em Terapia Comportamental Dialética (Behavioral Tech/2016). Professor de disciplinas em diversos cursos de formação e especialização brasileiros. Diretor da Vincular. Membro da ACBS.

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