Dimensões: 117 x 162 cm. Local de exposição: Museo del Prado, Madrid. Título da obra: “O triunfo da morte”. Antes de prosseguir a leitura, clique na imagem e separe alguns minutos para analisar esta obra detalhadamente. Concluída em 1562, esta magnífica pintura da renascença flamenga é de autoria do grande artista holandês Pieter Brueghel de Oude. Nela o autor retrata com grandeza e brutalidade o destino de todos nós: a morte. Repare que muitas pessoas são indiscriminadamente tomadas pelo decesso, de plebeus a nobres, de crianças a idosos, do clero à realeza. Ninguém escapa. O exército de esqueletos que consigo trazem o fim é absolutamente invencível. Fingimos esquecer que seremos alcançados – tal como o músico do canto direito inferior da tela que, em meio à morte de todos ao seu redor, simplesmente toca seu instrumento. Mas que faremos a não ser fingir esquecer? Pode esta trágica lembrança nos ensinar algo sobre a vida?
“Digo-vos que não sabeis o que acontecerá amanhã. Porque, que é a vossa vida? É um vapor que aparece por um pouco, e depois se desvanece” [1]. Simples assim? Por mais frias e realistas que possam parecer, essas palavras foram escritas por Tiago, irmão de Jesus Cristo, em sua carta dirigida aos judeus da dispersão no ano 45 d.C. Ainda no contexto judaico-cristão, aproximadamente trezentos anos antes de Tiago, o rei Salomão [2] foi ainda mais cru e niilista:
“Vazio, tudo é um grande vazio! Nada vale a pena! Nada faz sentido! O que resta de uma vida inteira de trabalho sofrido? Uma geração passa e outra geração chega, mas nada muda — é sempre a mesma coisa. O sol nasce e se põe, um dia após o outro — é sempre igual. O vento sopra para o sul e depois para o norte. Gira e dá muitas voltas sopra aqui e acolá — e vai seguindo o mesmo rumo. Todos os rios vão para o vasto oceano, mas o oceano nunca transborda. Os rios correm para o mar e logo depois voltam a fazer o mesmo percurso. É tudo um tédio só! É uma mesmice sem tamanho! Nada tem sentido! Será que os olhos não cansam de ver nem os ouvidos de ouvir? O que foi será novamente, o que aconteceu acontecerá de novo. Não há nada novo neste mundo. Ano após ano, é sempre a mesma coisa. Se alguém grita: “Ei, isso é novo!” Não se anime — é a mesma velha história! Ninguém se lembra do que aconteceu ontem. E as coisas que vão acontecer amanhã? Ninguém se lembrará delas também. Você acha que será lembrado? Pode esquecer!”
Ora, definitivamente não é nova a questão sobre o sentido da vida. Eu arriscaria afirmar que este, talvez, foi e ainda é um dos principais motores da filosofia, desde a Grécia antiga. De onde viemos e para onde vamos? Qual o significado disso tudo aqui? Certo, e depois? E daí? Para que? Seria a vida algo mais do que um simples vapor que rapidamente se desvanece? Qual o seu propósito? Haveria nela um sentido que transcendesse o mero tédio da repetição cotidiana descrita pelo rei judeu (conhecido por ser sábio)?
Essas interrogações inquietantes sobre a existência parecem ser eternas no pensamento humano e, por mais supostamente avançados e modernos que possamos nos considerar, cedo ou tarde nos confrontaremos com elas ao dobrarmos uma das esquinas da vida. O professor britânico Steve Stewart-Williams – que será nossa principal referência neste texto – sugere que essas questões são provavelmente mais intensas para as pessoas que vivem hoje do que para aquelas que viveram antes do surgimento das civilizações e da ciência. Quando a concepção de que o universo era limitado a uma pequena parte do mundo em que habitavam, era mais fácil para as pessoas acreditar que elas constituíam parte significante do universo. Mas com o crescimento e expansão das sociedades, o desenvolvimento da ciência, assim como o aparente aumento da vastidão e da idade do universo, tem se tornado cada vez mais difícil acreditar que temos realmente uma importância nesta grandiosa e infinita estrutura universal. Somos apenas e simplesmente “poeira das estrelas”? Qual a importância disso?
Nesta avidez por sentido e por respostas que, como peças de um quebra-cabeças, se encaixariam perfeitamente nos vãos da existência, há uma área complexa e controversa: a religião. Até aonde se sabe, não há registro histórico de povos da antiguidade destituídos de envolvimento religioso. As explicações mágicas sempre fizeram parte da história humana para preencher as lacunas abertas por perguntas sem respostas. A angústia e a insegurança nascidas da dúvida existencial foram sempre cessadas pelo absoluto da resposta religiosa. Na vivência mágica não há ambiguidades, somente certezas. A resposta definitiva da religião para as questões da vida localiza o indivíduo num lugar preciso, com funções pré-determinadas e com um objetivo específico fazendo-o se sentir importante e pertencente a um plano maior do qual ele é parte fundamental. Eis aí um rumo, um sentido.
Na maior parte das religiões ocidentais, o propósito da vida é servir e submeter-se a Deus; conhecê-lo, amá-lo e fazer sua vontade; amar ao próximo; ir para o céu; derrotar o mal; converter outras pessoas à causa defendida; exercer sua função como “servo”, “filho”, “soldado”, “embaixador do Reino de Deus na terra” usando os dons que lhe foram concedidos. Já em algumas das visões religiosas orientais sobre o propósito da vida, a resposta está em libertar-se do ciclo de reencarnação e karma; alcançar certo nível de iluminação e evolução espiritual; ou atingir elevação à “consciência cósmica”. Mas além de visões religiosas, há também perspectivas seculares ou “neutras” em termos religiosos. Stewart-Williams [3] lista algumas delas contidas na tabela a seguir.
Mas como se posicionam os cientistas, especialmente os evolucionistas, quanto o assunto é este? Ao contrário da religião, o que a ciência definitivamente não propõe é uma resposta absoluta para as questões da vida. Fala-se em probabilidade, uma vez que os fatores que compõem os fenômenos naturais (incluindo o comportamento) interagem de modo altamente complexo, impossível de serem previstos com certeza plena. O nível de confiabilidade pode chegar a 99%, mas sempre haverá margem para a dúvida, para o imprevisto. Por exemplo: sabe-se, através de inúmeros testes rigorosos e replicações, que determinado medicamento possui alta confiabilidade no cessar de uma dor de cabeça específica. O uso deste medicamento é atestado pela população. Entretanto, para algumas pessoas, o medicamento não passa de uma pastilha de tic-tac (bala) e seu efeito é absolutamente nulo. Esta ilustração mostra que não há certeza completa de que aquela dor de cabeça cessará após o uso do remédio, significando que sempre haverá margem de erro. Isso se dá pelo fato de que pessoas possuem metabolismos e funcionamentos fisiológicos diferentes, fazendo com que algumas sejam sensíveis ao uso do medicamento, outras não. Os fatores envolvidos nessas diferenças são inúmeros: influências genéticas, exposição a determinados tipos de ambiente, sensibilidade emocional, amplitude de repertório comportamental [4], histórico de doenças ou acidentes, dentre muitos outros. Assim, a ciência sempre fará análises probabilísticas – nunca exatas.
Há também outra característica essencial do conhecimento científico: estudam-se fenômenos naturais. Apesar de haver discordâncias sobre questões epistemológicas e metodológicas entre as diferentes correntes da filosofia da ciência [5], o conhecimento científico se constrói através da experimentação [6], do teste de hipóteses, da confiabilidade e validação de proposições teóricas, da descrição de relações entre variáveis, da análise de interações de possíveis fatores que influenciam a ocorrência de um fenômeno natural. Desconsidera, portanto, explicações que apelem a entidades que não possam ser estudadas. É importante observar neste momento que ciência e religião percorrem caminhos muito distintos ao que se propõem.
Retornando à nossa questão inicial, para os evolucionistas talvez o sentido da vida seja lutar pela sobrevivência e espalhar os genes na população descente, certo? Na verdade, não. Na perspectiva evolucionista da vida não há um sentido ou propósito, um objetivo ao qual se chega, uma direção ou alvo a ser atingido. Ao contrário do que muitos pensam ou deduzem, a seleção natural não é uma entidade que selecionou determinadas características para que “mais fortes” ou “mais adaptados” sobrevivessem e se reproduzissem. Esta concepção é denominada teleológica. Teleologia diz respeito a noção de que determinados elementos são responsáveis por direcionar ordenadamente o alcance de um alvo ou objetivo previamente concebido [7]. Deste modo, poderíamos dizer que a seleção natural é “cega”, na concepção de ser um processo pelo qual os seres vivos com variações genéticas que os tornam resistentes às pressões ambientais tendem a sobreviver e transmitir tais variações para as gerações descendentes. O velho e bom exemplo do pescoço da girafa nos é útil para entender este processo. As girafas não possuem pescoços longos para alcançar folhagens em árvores altas e sobreviver. No decorrer de milhares de anos atrás havia girafas com vários tamanhos de pescoço. No entanto, com a provável longa escassez de gramínea ou folhagens baixas nos ambientes em que habitavam, somente as girafas que – por variação genética – possuíam pescoço longo puderam sobreviver e se reproduzir. Desta forma elas foram selecionadas por terem o pescoço longo, e não para alcançar alimento. Essa distinção é importantíssima, pois revela a evolução por seleção natural como processo histórico e não teleológico. “O fato de termos evoluído por seleção natural não implica que nosso propósito seja propagar nosso DNA. A Teoria da Evolução nos diz de onde viemos, não o que devemos fazer agora já que estamos aqui”, afirma Stewart-Williams [3]. Do ponto de vista darwiniano, portanto, a vida não possui em si um sentido para o qual caminha. Estamos aqui porque somos resultado de um processo evolutivo por seleção natural (assim como todos os outros seres vivos). A vida não possui em si um sentido último.
Entendo que, neste ponto do dialogo, faz-se necessária uma distinção entre a noção emocional de se ter um sentido na vida, e a ideia de a vida possuir um sentido ou propósito para o qual se direciona. Ainda se confunde a questão do propósito último da vida com a de se vale a pena viver ou não [8]. Essas duas perspectivas dizem respeito a diferentes processos e níveis de análise. A noção “emocional” de se ter uma vida com sentido está relacionada às contingências (ontogênese), às experiências de vida de uma pessoa, as quais lhe dão oportunidade de estabelecer metas, objetivos, sonhos e lutar por eles, alcançá-los. Dizemos que os sentimentos de esperança e alegria, que são efeitos do contexto em que uma pessoa está inserida e de sua interação com este ambiente, dão sentido à vida. Quando este sentido já não mais existe, é preciso buscar ajuda profissional com um psicólogo comportamental o quanto antes. O sentimento de que a vida faz sentido se configura como algo fundamental a qualquer pessoa. Já a noção de que a vida não teria um propósito final (teleológico) diz respeito a um ponto de vista biológico (filogenético). Assim, é importante que esta distinção entre níveis de análise esteja clara. Stewart-Williams [3] afirma que não há nenhuma contradição lógica em se ter uma vida alegre, gratificante e cheia de sentido (ontogênese), e ao mesmo tempo entendê-la como processo sem objetivo último ou propósito (filogênese).
Compreendendo que a evolução é um processo histórico e não teleológico, a vida se destitui, portanto, de um suposto propósito ulterior. Chegamos então ao título deste ensaio. A conclusão de que a vida não tem sentido poderia levantar questões como: qual seria o seu valor sem um propósito? Ou que importância a vida teria sem o sentido de um plano perfeito? Há, no mínimo, duas possibilidades de se abordar essas questões. A primeira diz respeito à opinião de nosso autor-referência para este texto (Steward-Williams): “Se a vida não tem sentido, nós então somos livres para atribuir a ela o sentido que quisermos (enquanto indivíduos e enquanto espécie). E por que não apreciar o despropósito como característica bela da vida?”, pergunta o pesquisador.
Uma segunda possibilidade nasce na filosofia e poderíamos exemplificar com Spinoza [8]. O filósofo holandês do século XVII identifica na vida um valor ontológico, intrínseco, imanente, e se opõe às concepções transcendentais de vida. Explico. Costumeiramente atribuímos o valor de algo ao que está fora dele. O valor do ensino fundamental, por exemplo, geralmente está no ensino médio: aprende-se um conteúdo agora cujo valor está em seu uso futuro (as bases do ensino médio). O valor do ensino médio, por sua vez, está no vestibular, e não no que se estuda em si mesmo. Ou seja, o conteúdo do ensino médio só tem sentido no processo seletivo universitário. Este exemplo ilustra, de modo geral, a noção de transcendentalidade – o valor de algo transcende seu estado atual. Numa perspectiva religiosa, por exemplo, o valor desta vida está na existência vindoura. Planta-se aqui para se colher em outra vida. “Porque para mim o viver é Cristo e o morrer é lucro” [9] escreveu o apóstolo Paulo entre 53 e 58 d.C na carta que redigiu aos habitantes de Filipos, na Macedônia. Ora, se o morrer é lucro, presume-se então que o valor da vida pós-morte é superior ao da atual. “Nascer, morrer, renascer ainda e progredir sem cessar, tal é a lei”, diz a escritura em francês no túmulo de Allan Kardec. Tratam-se, portanto, de visões transcendentais de vida, teleológicas, cujo valor está em sua consequência futura. Spinoza propõe, portanto, que o valor da vida está, e deve estar, na própria vida, e não em algo que dela venha potencialmente resultar em um tempo e espaço ulterior. Spinoza, grosso modo, fala em ética como desafio de viver na imanência e, à partir da experiência, produzir a ampliação da potência de vida e da alegria oriunda da própria vida. Diz do contentamento de viver.
A perspectiva filosófica spinoziana pode ser considerada, portanto, absolutamente compatível com aquela discutida por Steward-Williams oriunda de uma visão científica: a destituição de um suposto processo teleológico (transcendente) e a afirmação do valor da vida como algo ontológico, intrínseco a ela, construído historicamente nas contingências de reforçamento (imanente). Tom Jobim, Vinícius de Moraes, Toquinho e Miúcha, em uma das composições mais profundas e belas desta parceria – a música “Sei Lá” – afirmam a imanência de modo grandioso:
“Ninguém nunca sabe que males se apronta, fazendo de conta e fingindo esquecer que nada renasce antes que se acabe, e o sol que desponta tem que anoitecer. De nada adianta ficar-se de fora, a hora do sim é um descuido do não.
Sei lá, sei lá, só sei que é preciso paixão.
Sei lá, sei lá, a vida tem sempre razão.”
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Notas:
[1] Epístola de Tiago 4:14.
[2] Livro de Eclesiastes 1:2-11.
[3] Stewart-Williams, S. (2010). Darwin, God and the Meaning of Life: How Evolutionary Theory Undermines Everything You Thought You Knew (1st ed., p. 353). Cambridge: Cambridge University Press.
[4] Leia mais sobre repertório comportamental: http://comportamentoesociedade.com/2013/08/05/notas-sobre-repertorio-comportamental/
[5] Não discutirei este tópico. Assunto para um futuro texto.
[6] O uso do termo “experimentação” não se restringe ao método experimental em laboratório.
[7] Leia mais sobre teleologia: https://comportese.com/2012/10/biologia-e-analise-do-comportamento-dialogos-sobre-causalidade-parte-1-ernst-mayr/
[8] Chauí, M. (2005). Espinosa: Uma filosofia da liberdade. São Paulo: Editora Moderna Ltda.
[9] Filipenses 1.21