Todos os dias perdemos. Perdemos a hora, o ônibus, objetos, alguma notícia na tv, perdemos o sono, perdemos pessoas… Algumas perdas são incontroláveis, outras são irreparáveis e podem acontecer com qualquer um de nós. Mas, estas perdas fazem parte da vida, e a maneira como lidamos com elas podem ser construtivas ou não.
No filme “Para sempre Alice’, a partir de um determinado momento, a perda se torna uma constante na vida da personagem e de seus familiares. A história baseada no livro “Still Alice”, de Lisa Genova, apresenta o drama da Dra. Alice Howland, renomada professora de linguística na Universidade de Columbia, que sutilmente começa a perceber mudanças relacionadas à sua cognição e comportamentos. Em alguns momentos a personagem se esquece de certas palavras e se perde por ruas onde costumava praticar suas corridas rotineiras, dentre outros acontecimentos. Alice procura um neurologista e é diagnosticada com a doença de Alzheimer.
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Em alguns momentos serão citadas algumas cenas do filme para exemplificar situações comuns ao Mal de Alzheimer.
De acordo com Serenik e Vita (2008)
“A doença de Alzheimer é considerada uma patologia neurodegenerativa mais freqüente associada à idade, cujas manifestações cognitivas e neuropsiquiátricas resultam em uma deficiência progressiva e uma eventual incapacitação. Além das dificuldades de atenção e fluência verbal, outras funções cognitivas deterioram à medida que a patologia evolui, entre elas a capacidade de fazer cálculos, as habilidades vísuo-espaciais e a capacidade de usar objetos comuns e ferramentas. O grau de vigília e a lucidez do paciente não são afetados até a doença estar muito avançada. A fraqueza motora também não é observada, embora as contraturas musculares sejam uma característica quase universal nos estágios avançados da patologia. Esses sintomas são frequentemente acompanhados por distúrbios comportamentais, como agressividade, alucinações, hiperatividade, irritabilidade e depressão. Transtornos do humor afetam uma porcentagem considerável de indivíduos que desenvolvem doença de Alzheimer, em algum ponto da evolução da síndrome demencial. Sintomas depressivos são observados em até 40-50% dos pacientes, enquanto transtornos depressivos acometem em torno de 10-20% dos casos. Outros sintomas, como a apatia, a lentificação (da marcha ou do discurso), a dificuldade de concentração, a perda de peso, a insônia e a agitação podem ocorrer como parte da síndrome demencial.”
No filme as alterações cognitivas e comportamentais afetam fortemente a rotina da personagem, e também aos que estão a sua volta. São perdas constantes, conflitos de emoções, surpresas, adaptações e aprendizados diários. No entanto, em vários momentos o filme mostra Alice tentando se manter presente e lúcida. Nos estágios iniciais da doença, a personagem consegue ainda apresentar comportamentos de autocuidado e também cria estratégias para não esquecer palavras, datas, acontecimentos importantes e nomes. É sabido que métodos comportamentais e alterações nas contingências de reforço são eficazes no tratamento da doença, e tais procedimentos podem ser importantes no desenvolvimento de novos comportamentos mais adequados ao contexto da doença, bem como na diminuição de comportamentos inadequados, além disso, oferecem possibilidades de desenvolver habilidades comportamentais também aos cuidadores (Pontes e Hübner, 2008; Jafe, 2015). Exemplo de alguns destes métodos e procedimentos são apresentados em várias cenas em que Alice fica sob controle de anotações no celular ou no quadro de recados para, de alguma forma, tentar manipular as variáveis de seu ambiente e fazer relações que a ajudem a recordar situações importantes como: tomar a medicação, lembrar o nome dos filhos, as datas de aniversário etc.
Ao passo que a doença de Alzheimer se agrava, torna-se imprescindível a presença de um cuidador, pois, em alguns casos, é necessário um monitoramento contínuo para que o paciente não se machuque, tome a medicação corretamente, se alimente, cuide de suas necessidades de higiene pessoal etc. De acordo com Freitas, et.al, (2008), “à medida que a doença progride, ocorrem regressões acentuadas do indivíduo, que já não se torna capaz de realizar atividades diárias simples”. Consequentemente, também ocorre um aumento do grau de dependência em relação ao cuidador. Desta maneira, o contexto é apresentado de maneira brusca e repentina, e exige uma reorganização do núcleo familiar. Em alguns casos, é também necessário ajuda profissional de enfermeiros ou cuidadores que estejam próximos à família para auxiliar nas rotinas do enfermo e uma série de mudanças ambientais para que o acompanhamento se torne menos desgastante para a família com a evolução da enfermidade.
Cuidar de um paciente com demência é uma tarefa desafiadora, na qual o cuidador pode se expor a altos níveis de estresse. Para Lipp (2000), alguns estímulos do ambiente, podem desencadear respostas positivas ou negativas de estresse. Essas reações podem se apresentar de forma física, psicológica, mental ou hormonal. “As respostas negativas significam uma não adaptação do indivíduo à situação imposta, levando à uma diminuição da produtividade e, portanto, da qualidade de vida da pessoa”. Além disso, podem surgir comportamentos relacionados à sintomas psiquiátricos, como ansiedade e depressão; podem desenvolver vulnerabilidade à distúrbios de ordem física, problemas no trabalho e conflitos familiares, principalmente aqueles que se responsabilizam de maneira integral aos cuidados do paciente e não recebem apoio de outros membros da família (Engelhardt, et.al, 2005).
“Muitos familiares cuidadores que lidam diariamente com a doença de Alzheimer – por não terem conhecimento sobre a doença ou por muitas vezes não aceitarem que seu familiar foi acometido por tal patologia – tornam-se deprimidos, angustiados, ao verem seus familiares, pai e mãe em sua maioria, com esta doença incurável e debilitante. Desta forma, são geradas, por parte do cuidador, sentimentos e conflitos diários, vivenciados à medida que ocorre a progressão da patologia” (Freitas, et.al, 2008).
Neste sentido, algumas relações familiares podem começar a se fragilizar a ponto de serem rompidas por conta do nível de estresse que é ocasionado pelo cuidar. No entanto também existe a possibilidade de aproximações mais afetivas e benéficas. No filme, por exemplo, assim que os sintomas da doença progridem, a filha caçula de Alice abdica de sua carreira para cuidar da mãe em tempo integral, fortalecendo o vínculo entre as duas. Assim como mostrou o filme, é muito comum o cuidador abrir mão de sua vida profissional e pessoal para estar mais próximo e oferecer um melhor cuidado. Nestes casos, é preciso que o cuidador também tenha um acompanhamento que o auxilie na forma como interagir com o paciente em casa, no sentido de criar melhores estratégias de resolução de problemas, principalmente aquelas que influenciam em seu ajustamento emocional para que consiga se manter saudável no decorrer do acompanhamento. Em muitos casos, os cuidados ficam sob responsabilidade de apenas uma pessoa da família, porém o ideal seria que outros familiares também se mobilizassem em prol dos cuidados para não haver sobrecarga somente para um cuidador, esta já seria uma importante medida de intervenção. Além disso, “a literatura aponta diferentes tipos de intervenção utilizados com cuidadores de idosos demenciados, tais como: grupos de apoio, intervenções psicoeducacionais, terapia familiar e terapia individual. Estas intervenções podem ajudar a amenizar a angústia do cuidador, evitar a institucionalização do paciente e permitir que a família possa fazer planos para o futuro” (Cruz e Handam, 2008).
Em relação às intervenções analítico-comportamentais, os resultados apresentados nas mais diversas pesquisas da área, também demonstram que a influência do ambiente, a estimulação contínua e o treino de comportamentos que se adequem ao contexto da doença, são capazes de desenvolver comportamentos muitas vezes considerados impossíveis, principalmente no arranjo e manejo de contingências para que respostas alternativas produzam os mesmos reforçadores (Montefusco e Jales, 2012). Em determinadas situações cotidianas, o rearranjo das contingências fará muita diferença nos resultados que o paciente e o cuidador terão possibilidade de obter. No banho ou uso do vaso sanitário, por exemplo, recomenda-se que o cuidador esteja atento ao ambiente e que esteja próximo, mas que respeite a privacidade do enfermo. Em casos de incontinência urinária ou fecal, é recomendável que o paciente utilize fraldas geriátricas e que o cuidador seja compreensivo caso o paciente faça na roupa ou na cama. É importante que comportamentos dessa natureza não sejam consequenciados com punições verbais (e nenhuma outra), pois a própria situação já é aversiva e constrangedora o suficiente para o enfermo. Além disso, evitar condições de controle aversivo tornará o ambiente muito mais reforçador também ao cuidador. Um exemplo deste tipo de acontecimento é apresentado em uma cena do filme, quando Alice entra em sua casa para usar o banheiro, mas não se lembra onde o mesmo se localiza e acaba não conseguindo se conter e urina na roupa. Neste momento o esposo vai ao seu encontro e a abraça na tentativa de amenizar todo constrangimento ocorrido na situação.
É válido também ressaltar que nas situações em que o enfermo apresentar alucinações, insônia, delírios, agressividade ou agitação é recomendável manter longe do alcance do paciente, objetos pérfuro-cortantes ou que ofereçam risco a integridade física do mesmo e das pessoas próximas. É também importante a este rearranjo, estratégias relacionadas à mudança de estímulos que possam alterar o humor do paciente, por exemplo, algum barulho que esteja irritando, algum objeto que esteja incomodando etc. Em situações como estas, o cuidador poderá se sentir sobrecarregado ao tentar manipular as variáveis de maneira adequada, visto que as alterações comportamentais do paciente podem afetar toda a rotina do cuidador e da família, desde afazeres comuns da vida diária, horários para comer, dormir ou até mesmo momentos de lazer. Este tipo de contexto também pode vir a gerar diversos níveis de estresse e condições de ansiedade, como já mencionado anteriormente. Neste contexto, é válido organizar contingências que estimulem processos cognitivos do paciente, como: fazer caminhadas (caso a fase em que se encontre ainda permita), ouvir músicas que o agradem, ouvir poesias, estimular habilidades como pintura ou artesanato etc. Estas atividades também podem se tornar positivamente reforçadoras ao cuidador à medida que este se adaptar à nova rotina.
Visto que a doença de Alzheimer e todas as perdas que a acompanham causam intenso sofrimento, muitas famílias recorrem à diversos métodos de tratamento na intenção de atenuar as condições aversivas deste contexto. Atualmente algumas pesquisas a respeito da reversibilidade do Mal de Alzheimer tem sido realizadas, mas ainda são necessárias mais investigações para que de fato as técnicas sejam conclusivas e eficazes para serem efetivadas. Neste sentido, a Análise do Comportamento propõe alternativas em prol destes pacientes, cuidadores e familiares; oferecendo uma mudança de foco que pode amenizar as limitações e déficits apresentados pela doença, objetivos que estimulam maior qualidade de vida tanto ao paciente, quanto ao cuidador, possibilitando promover uma convivência menos aversiva em relação à reorganização de contingências de reforçamento que podem vir a tornar a rotina de famílias com pacientes de Alzheimer mais positivamente reforçadora.
Lista de Referências
Cruz, M. da N. and Hamdan, A. C.(2008). O impacto da doença de Alzheimer no cuidador. Psicol. estud. [online]. vol.13, n.2, pp.
Engelhardt, E., Dourado, M., Lacks, J. (2005). A doença de Alzheimer e o impacto nos cuidadores. Rev Bras Neurol. 41(2):5- 11.
Freitas, I. C. C.; Paula, Kelvia, C. C. de; Soares, J. L and Parente, A. da C. M. (2008). Convivendo com o portador de Alzheimer: perspectivas do familiar cuidador. Rev. bras. enferm. [online]. vol.61, n.4, pp. 508-513.
Jaffe, I. (2015). Behavioral Therapy Helps More Than Drugs For Dementia Patients.Disponivelem: http://www.npr.org/blogs/health/2015/03/05/390903112/for-dementia-patients-behavioral-therapy-helps-more-than-drugs Acasso em: Março, 2015.
Lipp, M. N.(2000). Manual do inventário de sintomas de stress para adultos de Lipp. 2ª ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, p. 47-48.
Montefusco, E. V. R.; Jales, E. da S. (2012). Contribuições da Analise do Comportamento para Avaliação e Tratamento da Doença de Alzheimer. Disponivel em: https://comportese.com/2012/03/contribuicoes-da-analise-do-comportamento-para-avaliacao-e-tratamento-da-doenca-de-alzheimer/ Acesso em: Março, 2015.
Pontes, L. M. M., Hubner, M. M. C. A reabilitação neuropsicológica sob a ótica da psicologia comportamental (2008). Revista de Psiquiatria Clínica, 35 (1); 6 – 12.
Serenik, A.,Vital, M. A. B. F. (2008). A doença de Alzheimer: aspectos fisiopatológicos e farmacológicos. Rev. psiquiatr. Rio Gd. Sul [online]. 2008, vol.30, n.1, suppl., pp. 0-0. ISSN 0101-8108.