Nos últimos meses a comunidade internacional tem tido razões mais do que plausíveis para se preocupar. Os jornais e os dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) têm constantemente mostrado os terríveis desdobramentos causados pela rápida contaminação do vírus Ebola, uma das piores epidemias já registradas. Segundo o relatório da OMS publicado em 16 de setembro de 2014 [1], 4.985 casos de contaminação foram confirmados em Guinea, Libéria, Serra Leoa, Nigeria e Senegal, dentre os quais 2.461 morreram com a infecção.
O vírus foi isolado pela primeira vez em 1976, na epidemia da doença que ocorreu na República Democrática do Congo e na República do Sudão do Sul [2]. De acordo com a OMS, os primeiros surtos de Ebola ocorreram em remotas vilas do centro e oeste do continente africano, próximas a florestas tropicais. O vírus se manifesta agressivamente em seres humanos, mas outros animais como morcegos, antílopes, porcos-espinhos e macacos (cujas carnes são apreciadas nessas regiões da África) também podem hospedá-lo [3]. Sua transmissão direta entre seres humanos se dá através do contato com fluidos corporais (sudorese, lágrimas, saliva, sangue, etc.), ou indiretamente através do contato com ambientes contaminados. Até mesmo funerais de vítimas da doença se caracterizam como contextos de risco para a disseminação do vírus [3]. Segundo a OMS [4], sintomas incluem febre alta, dores de cabeça, anorexia (perda do apetite), vômito, diarreia, dores estomacais, letargia, dores musculares e nas articulações, dificuldades respiratórias, soluço e dificuldades para engolir, hemorragia inexplicável ou morte súbita inexplicável.
O contexto aparentemente restringe-se a intervenções de profissionais das ciências médicas. Entretanto, há contingências que carecem de intervenções comportamentais, e o principal deles está relacionado às práticas culturais dos povos locais e suas conexões com a transmissão do vírus Ebola. Em Monrovia (Libéria), por exemplo, um dos centros de isolamento e tratamento de pacientes portadores da doença foi invadido por rebeldes locais armados, os quais “libertaram” as pessoas da quarentena – 17 fugiram e outras 10 foram levadas por suas famílias [5]. De acordo com as autoridades locais, parte da população afirma que o vírus Ebola é uma farsa e, por isso, não cooperam com os profissionais de saúde enviados para intervir no estancamento da epidemia [5]. O governo da Libéria precisou utilizar-se das forças armadas na tentativa proteger os centros de quarentena e obrigar a população a seguir os procedimentos necessários de segurança e prevenção.
Na página eletrônica “Social Evolution Forum”, o evolucionista David Sloan Wilson publicou em 02 de agosto de 2014 um texto intitulado “Ebola and Applied Cultural Evolution – You Can Help” (“Ebola e Evolução Cultural Aplicada – Você pode ajudar”) [6]. Nele, Wilson cita um e-mail enviado por uma colega que trabalha para uma organização não governamental (“Commit and Act”) na cidade de Bo, em Serra Leoa, um dos locais onde o vírus se alastrou rapidamente. No relato, a profissional Beate Ebert descreve uma das dificuldades encontradas no trabalho de prevenção da epidemia:
A epidemia do Ebola se alastra principalmente por causa dos hábitos locais, tais como dar banho e beijar os corpos das pessoas mortas. As pessoas não obtém as informações necessárias. Elas evitam hospitais, uma vez que a maior parte dos pacientes com Ebola morre lá. Médicos e enfermeiros parecem monstros com suas vestimentas preventivas quando vêm às vilas. Os habitantes ficam assustados e pensam que os profissionais da saúde trazem a doença. Muitos enviam e encaminham mensagens que estimulam medo e também influenciam as pessoas a evitarem o tratamento, tal como não fazer contato com estranhos.
Grande parte das informações é conhecida pelos moradores. Entretanto, a “conscientização” não se caracteriza como elemento final ou único, uma vez que tais conhecimentos não são apropriados pela população. As contingências podem evidenciar a necessidade de novos comportamentos, novas regras. Entretanto, o controle por regras tradicionais é maior. Circunstâncias como estas são especialmente perigosas, uma vez que a doença pode dizimar uma nação inteira e alcançar proporções até maiores caso não sejam emitidos comportamentos que previnam e estanquem a epidemia.
Não se trata, todavia, de atribuir culpa à população por tais práticas. Uma análise contextualizada mostrará que todo comportamento é adaptativo, e sua manutenção (ainda que contraditória às demandas das contingências) possui função. Povos que vêm sofrendo intervenções internacionais há centenas de anos, sejam elas exploratórias ou militares, possuem histórico de repertório de fuga/esquiva e contracontrole bastante fortalecidos, uma vez que tais repertórios contribuíram para sua sobrevivência e para a manutenção do que restou de sua cultura. Ao se depararem com estrangeiros vestidos de trajes protetores de contaminação do Ebola, não é incomum qualquer tipo de generalização, especialmente por parte dos moradores das vilas mais remotas, cujo principal conhecimento popular se dá através da transmissão oral de experiências passadas. Práticas e crenças que contribuíram para a sobrevivência do grupo no passado possuem probabilidades maiores de serem transmitidas, ainda que contradigam as demandas atuais. Eis então a necessidade e o desafio de uma intervenção.
Mas o que pode ser feito? De acordo com Wilson é possível utilizar-se dos conhecimentos evolucionistas como ferramentas de intervenção no apoio a este problema citado por Beate Ebert em Bo. Wilson menciona o método “Prosocial”, desenvolvido para aprimorar a eficácia de qualquer grupo cujos membros precisem trabalhar juntos para alcançar objetivos comuns. Desenvolvido por experts da biologia evolucionista (dentre eles David S. Wilson), da Análise do Comportamento (Steaven S. Hayes e Anthony Biglan) e contando com conhecimentos advindos das ciências políticas (Elinor Ostrom), o método Prosocial ajuda a criar um forte sentido de identidade grupal, esclarecendo valores fundamentais e obstáculos que impedem que o grupo avance na direção desejada. Além disso, a proposta também contribui para a criação de ambientes sociais favoráveis à cooperação e também à proteção contra comportamentos que enfraquecem a unidade e os objetivos do grupo [7]. Entretanto, o alcance de objetivos pelo grupo só é possível se certas circunstâncias forem atingidas. Ostrom (1990) (Wilson, Hayes, Biglan, & Embry, 2014) as enumera:
1. Forte identidade grupal e compreensão dos propósitos do grupo
Membros dos grupos mais bem sucedidos possuem um forte senso de identidade grupal, conhecem os direitos e os deveres envolvidos na filiação do grupo, e sabem dos limites dos recursos administrados pelo grupo.
2. Justa distribuição de custos e benefícios
Um grupo no qual apenas alguns dos membros fazem todo o trabalho enquanto outros só recebem os benefícios não durará por muito tempo. Nos grupos mais bem sucedidos espera-se que todos façam a sua parte, de modo justo, e aqueles que vão além dos deveres esperados recebem reconhecimento proporcional apropriado. Quando líderes recebem alguns privilégios especiais é porque eles possuem responsabilidades especiais para as quais foram designados.
3. Tomada de decisão consensual e inclusiva
Em geral, as pessoas não gostam de receber ordens, mas trabalharão arduamente para implementar uma decisão que seja resultante de um consenso (para fazer o que nós queremos, e não o que eles querem). Além disso, as melhores decisões frequentemente requerem conhecimento das circunstâncias locais que nós temos, e eles não tem, o que faz com que uma tomada de decisão consensual seja duplamente importante.
4. Monitoramento de comportamentos
Mesmo quando a maioria dos membros de um grupo caminha bem e compartilha das mesmas tarefas, a tentação de receber mais do que a sua parte nos benefícios e contribuir menos do que a sua parte dos custos sempre existe. Além disso, há a possibilidade de pelo menos alguns indivíduos burlarem o sistema ativamente. Se lapsos e transgressões forem indetectáveis, é improvável ter sucesso no objetivo comum almejado. Por isso, o monitoramento do funcionamento do grupo em si torna-se algo absolutamente necessário.
5. Sanções graduadas para transgressões
Lembretes educados, gentis e amistosos são suficientes para manter as pessoas como membros participativos no grupo. Entretanto, deve haver também a capacidade de aplicar sanções mais fortes (tais como algum tipo de punião ou até mesmo exclusão), e as transgressões continuarem. Tais sansões devem ser aplicadas gradativamente, observando a mudança comportamental do participante em questão.
6. Resolução de conflitos de modo rápido e justo
Quando surgem conflitos, eles devem ser resolvidos rapidamente e de forma que ambas as partes considerem justa. Isso pode envolver um processo no qual os membros respeitados pelo grupo, de quais se espera imparcialidade, tomem uma decisão justa.
7. Autonomia local e autogoverno
Quando um grupo encontra-se inserido dentro de uma sociedade maior, como uma associação de agricultores lidando com o governo do estado, por exemplo, o grupo deve ter autoridade suficiente para criar a sua própria organização social e tomar suas próprias decisões. Grupos cuja autonomia é restrita pouco pode fazer na buscar por seus objetivos.
8. Relação apropriada com outros grupos
Quando um grupo esta contido e/ou conectado a um grupo maior (como uma sociedade em geral), as relações entre os grupos e entidades de nível superior devem refletir os mesmos princípios acima enunciados para grupos individuais.
Em Serra Leoa, participantes da ONG Commit and Act, previamente mencionada, já estão implementando os princípios agregados pela proposta Prosocial e alguns resultados já podem ser vistos [6]. Intervenções culturais possuem alto índice de complexidade por envolverem grande número de variáveis. As proposições do projeto liderado por Wilson se constituem bastante interessantes e pertinentes, uma vez que utiliza conhecimentos advindos da biologia evolucionista, economia, ciências políticas, antropologia e análise do comportamento. Uma análise mais aprofundada por parte dos analistas do comportamento sobre tal projeto seria interessante, já que aspectos comportamentais ainda não explorados pela proposição poderiam ser desenvolvidos/aprimorados.
No que diz respeito à contaminação do vírus Ebola, a intervenção nesse tipo de contexto se caracteriza como tarefa altamente desafiadora. A própria sobrevivência da população está em xeque, caso mudanças nas práticas culturais não sejam realizadas. Dittrich (2008), realizando um diálogo entre J. Diamond e B. F. Skinner, cita:
“Talvez o segredo do sucesso ou fracasso de uma sociedade esteja em saber a quais valores fundamentais se apegar, e quais descartar e substituir por novos quando os tempos mudarem” (2005, p. 518). O “respeito excessivo pela tradição e medo da novidade”, em especial, surge como determinante para o colapso de certas culturas.”
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Notas:
[1] Disponível em: http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/133546/1/roadmapupdate16sept14_eng.pdf?ua=1
[2] Disponível em: http://www.bbc.co.uk/news/magazine-28262541
[3] Disponível em: http://www.bbc.co.uk/news/world-africa-26835233
[4] Disponível em: http://www.who.int/csr/resources/publications/ebola/ebola-case-definition-contact-en.pdf?ua=1
[5] Disponível em: http://www.bbc.co.uk/news/world-africa-28827091
[6] Disponível em: http://socialevolutionforum.com/2014/08/02/ebola-and-applied-cultural-evolution-you-can-help/
[7] Disponível em: http://www.thisviewoflife.com/index.php/magazine/articles/introducing-prosocial-using-the-science-of-cooperation-to-improve-the-effic
Referências
Dittrich, A. (2008). Sobrevivência ou colapso? B. F. Skinner, J. M. Diamond e o destino das culturas. Psicologia: Reflexão e Crítica, 21(2), 252-260.
Ostrom, E. (1990). Governing the commons: the evolution of institutions for collective action. Cambridge, UK: Cambridge University Press.
Wilson, D. S., Hayes, S. C., Biglan, A., & Embry, D. D. (2014). Evolving the Future: Toward a Science of Intentional Change. The Behavioral and Brain Sciences, 37(04), 1–99.