Conheci uma moça que tinha uma cicatriz nos lábios, herança de um choque elétrico que levou quando era criança: guiada pela típica curiosidade infantil, ingenuamente levou à boca um fio que estava ligado na tomada! A marca da travessura – e literalmente do choque – ficou estampada em seu rosto para sempre.
Felizmente, a maioria de nós não precisou passar por uma experiência tão traumática como essa para aprender a manter uma distância segura da rede elétrica. Algumas mães incentivaram a aprendizagem, especificando contingências de punição adicionais ao choque, embora não menos chocantes:
– Moleque, se você encostar esse dedo aí, eu te mato!
Outras preferiram emitir um NÃÃÃÃO em alto e bom som. Mas até mesmo um toque delicado e menos incisivo de uma mãe reforçadora pode ter sido suficiente para colocar nossos comportamentos sob controle da regra – sempre útil, diga-se de passagem – de não sair por aí enfiando o dedo na tomada.
O fato é que muitos de nossos comportamentos são instalados através de controle instrucional. Ainda bem. Poder aprender e transmitir conhecimentos através da linguagem é uma grande vantagem da nossa espécie. A questão é que o mesmo mecanismo que nos poupa sofrimentos também produz um tanto deles. É bem paradoxal mesmo. Luoma et al. (2007) iniciam o livro Learning ACT com uma frase muito conhecida dentro da Terapia de Aceitação e Compromisso, que resume bem essa ideia: “A bênção e a maldição da existência humana é a linguagem”.
A linguagem e seu impacto sobre o desenvolvimento da espécie humana desperta o interesse de várias áreas do conhecimento, e tem sido objeto de estudo sob as mais diversas abordagens. O lançamento do livro Comportamento Verbal de Skinner abriu as portas para que os behavioristas não ficassem à margem e também pudessem participar. Ainda demorou um pouco até que esse campo de pesquisa se consolidasse e criasse corpo dentro da Análise do Comportamento, mas atualmente a literatura apresenta uma infinidade de estudos experimentais envolvendo estímulos verbais.
Segundo Skinner (1969), o comportamento modelado pelas contingências é um operante distinto do comportamento controlado por regras, sendo que o segundo teria uma propriedade característica: a tendência de não acompanhar posteriores mudanças nas contingências, que vem sendo chamada de insensibilidade às contingências. Posto de forma bem simplificada, seria mais ou menos assim: se eu já conheço bem as regras do jogo, pra que ficar prestando atenção aos detalhes à minha volta? Assim, o piloto-automático é acionado. O problema é que, muitas vezes, as contingências mudam, e nós permanecemos seguindo um script que já não funciona mais no novo contexto. Continuamos nos comportando de forma rígida e estereotipada, não sob controle do que está ocorrendo naquele momento, mas sob controle da boa e velha regra. Por exemplo, uma paulista obediente como eu, pode continuar levando agasalho e guarda-chuva dentro da bolsa, mesmo vivendo há muitos anos no Rio de Janeiro e não experimentando mudanças climáticas tão frequentes. As instruções que recebemos a esse respeito podem ter efeito muito mais controlador do que as pistas fornecidas pelo ambiente à nossa volta.
Algumas pesquisas confirmam essa tendência dos comportamentos sob controle de regras; outras demonstram que diferentes esquemas de reforçamento e exposição prévia a contingências de reforço, ou até o prestígio de quem especificou a regra, são exemplos de variáveis que podem influenciar na discriminação de novas contingências (Perez et al., 2009; Albuquerque & Paracampo, 2010). Não caberia aqui – nem é intenção deste artigo – fazer uma revisão desses estudos. A proposta é simplesmente situar historicamente o contexto no qual surgiu um dos principais conceitos da Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT), a inflexibilidade psicológica.
Steven C. Hayes, um dos fundadores da ACT, foi também um dos pioneiros dos estudos de comportamentos controlados por regras, com publicações que remontam ao início da década de 80 do século passado (Zettle & Hayes, 1982). Em 1989, organizou o livro Rule-Controled Behavior: Cognition, Contingencies and Instructional Control, que inclui um capítulo escrito pelo próprio Skinner.
O conceito de comportamento governado por regras está bem longe de ser um consenso entre pesquisadores. De acordo com Albuquerque e Paracampo (2010), “para que um comportamento seja considerado como controlado por regras é necessário descartar a possibilidade de que ele esteja sob o controle de suas consequências imediatas” (p.254). Já Hayes et al. (1989) defendem que até contingências diretas podem funcionar como estímulos verbais para humanos, o que criaria um grande desafio para isolar o controle verbal. De fato, é difícil imaginar que nós humanos, estando inseridos numa comunidade verbal, possamos responder a estímulos de forma dissociada das relações arbitrárias que estabelecemos ao longo de nossa história de aprendizagem.
Polêmicas à parte, a Teoria das Molduras Relacionais (Relational Frame Theory – RFT) tem demonstrado como palavras podem se tornar dolorosas ou aversivas, ou seja, terem suas funções transformadas, de acordo com as relações de equivalência com estímulos ou eventos reais. Pensar na morte de alguém querido, por exemplo, pode nos trazer sofrimento equivalente ao da vivência real desse evento. E é nisso que a ACT está interessada: na literalidade com que palavras, memórias ou imagens são percebidas e, com isso, podem nos afetar profundamente e assumir controle sobre nossos comportamentos.
A inflexibilidade psicológica nessa abordagem está associada à dominância do conteúdo verbal, que nos afasta da experiência direta com as contingências, e envolve seis aspectos: dominância do passado e futuro conceituais, esquiva experiencial, fusão cognitiva, apego ao eu conceitual, falta de clareza de valores e impulsividade, inação ou persistência na esquiva.
Esses aspectos estão interligados: a fusão com construções verbais substitui a relação direta com os eventos; nós nos esquecemos de que estamos interagindo com pensamentos, não com a coisa real. Essa fusão leva a um menor contato com o momento presente e menos consciência dos eventos privados, evocando comportamentos historicamente programados. Razões geralmente são vistas como causas literais. Assim, por exemplo, a depressão é percebida como aquilo que está “causando” a atitude de ficar na cama. O cliente conclui que, para poder retomar o controle de sua vida, precisa se livrar das experiências privadas, que são entendidas como perigosas. O repertório comportamental passa, então, a ser dominado por tentativas de controle das experiências internas, deixando poucos recursos para operar sobre as contingências e conduzindo a uma forma rígida e inflexível de viver.
Desse modo, o principal objetivo da ACT é promover mais flexibilidade psicológica, que de acordo com Hayes (2007), seria a habilidade de estar plenamente e sem defesa em contato com o momento presente, como um ser humano consciente, engajado na vida como ela é – não como nossa mente diz que é – e baseando-se no que a situação permite, persistir ou mudar de comportamento, a serviço de seus valores escolhidos. Segundo Westrup (2014), seria a habilidade de responder à vida de uma maneira viável, que nos permita viver vidas vitais e significativas. Harris (2009) explica o conceito de maneira bastante direta: “flexibilidade psicológica é a habilidade de estar no momento presente com total consciência e abertura para nossa experiência, e agir guiado por nossos valores. Colocando de maneira mais simples, é a habilidade de estar presente, aberto e fazer o que importa”.
Várias técnicas foram desenvolvidas dentro desse modelo, visando ao desenvolvimento de mais flexibilidade psicológica. A prática de mindfulness é bastante utilizada, com foco nas habilidades de aceitação da experiência como ela se apresenta, não como a pessoa gostaria que fosse, ou como é verbalmente descrita por sua mente. Os exercícios de desfusão buscam tornar o conteúdo verbal menos literal, enfraquecendo sua relação funcional com outros comportamentos. Pensamentos são vistos como são: simplesmente pensamentos, não como os eventos aos quais estão associados, nem como causadores de outros comportamentos.
Em resumo, regras são úteis, mas podem induzir a uma rigidez comportamental, ou seja, a uma diminuição da sensibilidade às contingências. Skinner entendia a consciência como sinônimo de autoconhecimento, como a habilidade de descrever as relações entre comportamentos e contingências em operação, possibilitando o autogoverno, ou seja, a criação das nossas próprias regras (Micheletto & Sério, 1993). A ACT busca aumentar a consciência das regras que controlam nossos comportamentos, não para lutar contra elas, mas para enfraquecer seu controle. Não se trata de deixar de seguir regras, mas de limitar seu seguimento a contextos em que possam ser úteis.
Referências:
Albuquerque, L.C. & Paracampo, C.C.P. (2010). Análise do controle por regras. Psicologia USP, São Paulo, abril/junho, 21 (2): 253-273.
Fox, E. An introduction to Relational Frame Theory. Tutorial sobre RFT. Disponível em: https://foxylearning.com/tutorials/rft
Harris, R. (2009). ACT Made Simple: An Easy-to-Read Primer on Acceptance and Commitment Therapy. Oakland, CA: New Harbinger.
Hayes, S.T.; Brownstein, A.J.; Zettle, R.D.; Rosenfarb, I. & Korn, Z. (1986). Rule-Governed Behavior and Sensitivity to Changing Consequences of Responding. Journal of the Experimental Analysis of Behavior, 45 (3): 237-256.
Hayes, S. C. (Ed.). (2007). ACT in Action DVD series. Oakland, CA: New Harbinger.
Luoma, J.B.; Hayes, S.C. & Walser, R.D. (2007). Learning ACT: An Acceptance & Commitment Therapy Skills-Training Manual for Therapists. Oakland, CA: New Harbinger.
Micheletto, N. & Sério, T.M.A.P. (1993). Homem: Objeto ou Sujeito para Skinner? Temas em Psicologia – Análises Da Análise Do Comportamento: Do Conceito À Aplicação. Sociedade Brasileira de Psicologia, no 2.
Perez, W.F.; Reis, M.J.D. & Souza, D.G. (2009). Efeitos de história experimental com diferentes instruções e do controle por contingências sobre o seguimento de instruções. Acta Comportamentalia, 18 (1): 55-85.
Teixeira Júnior, R.R. (2009). Variáveis do Comportamento Governado por Regras: Uma análise de estudos da área. Acta Comportamentalia. 17 (3): 351-385.
Westrup, D. (2014). Advanced Acceptance & Commitment Therapy: The Experienced Practioner’s guide to Optimizing Delivery. Oakland, CA: New Harbinger.
Zettle, R.D.,& Hayes,S.C. (1982). Rule-governed behavior: A potential theoretical framework for cognitive-behavioral therapy. In P. C. Kendall (Ed.), Advances in cognitive-behavioral research and therapy (Vol. 1,pp. 73-118). New York: Academic Press.