Autismo e Inclusão Escolar: O Passo a Passo
Fechando a sequência de 3 artigos sobre inclusão escolar de crianças com Transtorno do Espectro do Autismo, este artigo visa apresentar o passo a passo da inclusão, ou seja, a prática do analista do comportamento que visa incluir a criança com autismo em uma sala de ensino regular.
O primeiro passo do processo de inclusão consiste na avaliação, que tem como objetivo avaliar e medir comportamentos-alvos na escola, identificando os antecedentes e consequentes que evocam e mantêm cada um deles, o que é feito por meio da Análise Funcional (descrita no artigo “Autismo: Lidando com comportamentos socialmente inadequados” desta coluna). Nesta avaliação também visamos avaliar o desempenho da criança nas atividades rotineiras e acadêmicas.
A avaliação consiste na observação (ao vivo ou em vídeo) e registro de comportamentos em diferentes aulas, com diferentes professores, em diferentes contextos. Também é importante analisar os materiais acadêmicos do aluno de inclusão e o currículo pedagógico proposto pela escola. Durante este primeiro passo, o analista do comportamento também faz reuniões com a equipe da escola e os familiares para levantamento de queixas, exposição dos dados analisados e definição das modificações ambientais necessárias.
Como resultado da avaliação no ambiente escolar, o analista do comportamento deve ter definidos os comportamentos e habilidades que estão deficitários ou ausentes no repertório e, portanto, devem ser maximizados ou instalados; bem como os comportamentos e habilidades que estão em excesso e estão prejudicando o desenvolvimento e aproveitamento escolar e, portanto, devem ser minimizados ou extintos.
O segundo passo da inclusão deve começar antes mesmo de se pensar em inclusão ou, pelo menos, paralelamente ao processo de inserção da criança na escola. Este passo consiste na intervenção individualizada, ou seja, intervenção em um ambiente de ensino planejado, com controle total de variáveis ambientais, onde podemos apresentar um estímulo por vez e garantir o aprendizado de cada habilidade. Para esta intervenção o analista do comportamento treina um profissional ou estudante de psicologia, pedagogia ou áreas afins, para aplicar os procedimentos de ensino de habilidades pré-requisitos e novos repertórios e, também, procedimentos para minimização de comportamentos disruptivos.
Dentre os comportamentos a serem maximizados ou instalados no contexto individual estão: o comportamento de aluno, ou seja, sentar, esperar, manter contato visual, seguir comandos, etc.; a comunicação funcional vocal ou por pistas visuais; as habilidades sociais, como brincar, interagir, comunicar-se; as habilidades pré-acadêmicas, dentre elas estão contato visual, imitação, seguir instruções, discriminações visuais e auditivas, etc.; as habilidades acadêmicas como alfabetização, noções matemáticas, etc.; o repertório de brincar, isto é, o uso do brinquedo com a função correta, compartilhar a vez, brincar junto, etc.; e a independência nas atividades de vida diária (banho, vestir-se, alimentar-se, escovar os dentes, uso do banheiro, etc.).
Os comportamentos a serem minimizados ou extintos na intervenção individualizada consistem nas estereotipias, ou seja, respostas repetitivas com função auto-estimulatória e os comportamentos de difícil manejo como: birras (choros, gritos, se jogar no chão, etc.); autolesão (machucar a si mesmo); e agressão (machucar outras pessoas). Os detalhes dos procedimentos utilizados pela análise do comportamento no ensino de novas habilidades e controle de comportamentos inadequados estão descritos em outros artigos desta coluna.
O terceiro passo da inclusão consiste em levar toda esta tecnologia comportamental para dentro dos muros da escola. Para isso, precisamos de um Acompanhante Terapêutico (AT), isto é, um profissional ou estudante da área da saúde (psicologia, terapia ocupacional, fonoaudiologia, enfermagem, etc.) ou educação (pedagogia), ou ainda um para profissional (cuidadores, pais, parentes, etc.). O objetivo da inserção de um AT para acompanhar a criança na escola é maximizar o número de horas de estimulação específica no ambiente natural, com valores mais acessíveis para a família, isto é, não precisa ter um analista do comportamento, com mestrado e doutorado, executando este serviço. Podemos ter outro profissional ou estudante, com menos formação, mas bem treinado e orientado pelo analista do comportamento.
O analista do comportamento indica a presença deste aplicador porque a criança com autismo apresenta dificuldades na generalização dos comportamentos aprendidos no contexto individualizado para o contexto natural (escola). Por isso, a criança precisa de um ensino mais individualizado dentro de sala de aula e nós não podemos exigir que o professor ou o auxiliar de classe exerçam estas funções, pois isto significaria a retirada destes profissionais da posição de referência para a turma.
O treinamento teórico do AT consiste na apresentação dos conceitos básicos da Análise do Comportamento aplicados à educação em supervisões individualizadas ou em workshops. O treinamento prático envolve a observação de um terapeuta experiente atuando na escola; atuação direta com a criança com supervisão ao vivo do terapeuta experiente; e auto avaliação, ou seja, o AT deve assistir a vídeos de sua própria atuação para identificar falhas e mudanças necessárias. Este treinamento é contínuo e mantido em consultorias sucessivas feitas pela equipe de analistas do comportamento que coordenam a intervenção. Paralelamente, a escola também deve fazer um treinamento específico com o AT, focado nas regras e princípios educacionais da escola, afinal o AT atuará neste espaço.
Uma das funções do acompanhante terapêutico é aplicar, na escola, procedimentos de ensino individualizado e de controle de comportamentos-problema orientados pelo analista do comportamento. O AT também deve estimular a interação da criança com seus pares, usando procedimentos planejados junto com o analista do comportamento. Quando necessário, o AT adapta os materiais acadêmicos e apresenta estes materiais adaptados em sala de aula.
Desta forma, o AT acompanha a criança em todos os contextos escolares, nas diferentes atividades, disciplinas e ambientes, garantindo a máxima participação dela nas atividades propostas utilizando, se necessário, técnicas de motivação e facilitação da tarefa orientadas pelo analista do comportamento. A função do AT não é criar e nem propor atividades, mas sim garantir que a criança participe das atividades criadas e propostas pelos professores com as adaptações necessárias.
A equipe de analistas do comportamento acompanha a evolução do caso por meio de registros e gráficos correspondentes a cada procedimento aplicado. Estes registros são feitos pelo AT com orientação do analista do comportamento. Também espera-se que o AT faça a troca de informações entre os profissionais da escola (professores, coordenadores, etc.) e os familiares e membros da equipe que atuam em outros contextos, garantindo a coesão da intervenção.
Com o desenvolvimento da criança e maior adaptação desta ao contexto escolar, o analista do comportamento pode decidir começar o processo de retirada do AT do ambiente escolar. Para isso, começamos afastando o AT dos momentos em que a criança já se comporta de forma correta e independente. Então, designamos outras tarefas para o AT executar durante o período de aula que não sejam diretamente com a criança (Ex: registros, análises, adaptação de material, etc.). Em um determinado momento realizamos um delineamento de intervenções específicas, isto é, orientamos que o AT atue somente nas situações em que a criança ainda não consegue se comportar de forma correta e independente. Em um estágio mais avançado, podemos inserir um AT camuflado na função de auxiliar de classe sem que a criança saiba que essa pessoa é sua AT, visando gerar mais autonomia.
O quarto passo do processo de inclusão escolar refere-se às adaptações necessárias para que a criança consiga acompanhar as aulas e atividades. Estas adaptações são preparadas antecipadamente e aplicadas pelo acompanhante terapêutico (AT), sob orientação do analista do comportamento. As adaptações consistem em alterações de contingências delineadas para a escola (relações específicas aluno-ambiente) em todos os contextos (diferentes espaços e disciplinas). Estas adaptações devem envolver tanto os eventos antecedentes (que evocam as respostas do aluno) quanto os eventos consequentes (que fortalecem e mantêm as respostas do aluno).
Dentre as modificações de eventos antecedentes necessárias para a inclusão de uma criança com autismo na escola regular, está a adaptação do material que será utilizado (livros, apostilas, provas, etc.). Neste material deve-se, por exemplo: reduzir enunciados, deixando somente 1 instrução em cada enunciado; usar frases objetivas e apenas com palavras-chave; manter menos exercícios por página; usar letras maiores e, preferência, letras de forma (bastão); deixar mais espaço para escrever, desenhar ou colar; substituir as questões dissertativas (que exigem só a escrita) por atividades para ligar, recortar, colar, pintar, circular, etc.; e incluir temas do interesse da criança e de situações de seu cotidiano em todas as atividades.
Fora esta preparação antecipada do material, durante as aulas o AT também deverá usar dicas verbais, visuais ou motoras para que o aluno realize as atividades propostas ou atividades adaptadas e obedeça aos comandos individuais e coletivos dos professores.
Outra modificação antecedente importante é a fragmentação de tarefas. Deve-se apresentar menos demandas por vez, quebrar as atividades longas em partes menores e intercalar a resposta a cada demanda com reforçadores e pequenos intervalos.
Algumas manipulações de variáveis antecedentes envolvem modificar o próprio ambiente físico de sala de aula, por exemplo, acomodar a criança próximo a um colega que possa dar apoio (este colega deve variar, para que não fique custoso demais para as crianças); alterar a disposição física da criança na sala de aula (sentar mais na frente para se concentrar melhor, ou sentar mais atrás se precisar sair de sala muitas vezes); alterar a estimulação de sala de aula acrescentando fotos, figuras e vídeos acompanhando o conteúdo das aulas expositivas; utilização de tecnologia para apresentação de conteúdos durantes as aulas expositivas e verbais, como, por exemplo, computador, quadro interativo, DVD, tablet, etc.; e usar horários, calendários e sequências de atividades visuais (Quadro de Rotina).
Na maior parte das vezes o próprio currículo escolar deve ser adaptado. Esta decisão é feita pela equipe de intervenção (analistas do comportamento) em pareceria com a coordenação pedagógica da escola. A depender do nível de dificuldade da criança pode-se optar por ensinar o mesmo currículo, mas em nível menos complexo, mais lentamente, com adaptações de material ou apenas com aplicação direta à rotina do indivíduo. Em casos de maior atraso cognitivo deve-se optar pelo ensino de um currículo diferente, totalmente adaptado às necessidades da criança.
Também faz parte do conjunto de adaptações antecedentes a antecipação de conteúdos acadêmicos. Para isso, a escola deve fornecer o planejamento curricular da turma e, então, os conteúdos, ou parte deles, são inseridos nos programas de ensino aplicados na intervenção individualizada. Assim, a criança adquire os pré-requisitos ou aprende totalmente o conteúdo antes de vê-lo em sala de aula. Para crianças com necessidades especiais de aprendizagem, o aprendizado em contexto individualizado é sempre mais fácil do que no contexto coletivo, afinal, no contexto individualizado é possível utilizar estratégias de estimulação antecedentes e consequentes mais eficientes. No contexto individualizado pode-se, ainda, detectar o formato ideal de apresentação de um determinado conteúdo acadêmico e, depois, reproduzi-lo em sala de aula.
Quanto às modificações dos eventos consequentes, é necessário usar esquemas de reforçamento especiais para fortalecer e manter as respostas adequadas do aluno já que, como já discutido nesta coluna, a criança com autismo pode não ficar sob controle das variáveis consequentes mais comuns ao contexto escolar (notas, elogios, gosto por aprender, etc.). Muitas vezes, orientamos que o AT monte, na sala de aula, uma caixa om diversas opções de possíveis reforçadores, ou seja, objetos e atividades do interesse da criança, de casa ou da escola, que poderão ser usados para consequenciar respostas corretas. Estes objetos devem ser renovados constantemente.
Vale lembrar que o analista do comportamento deve se preocupar sempre com a transferência gradual do reforçamento artificial para o natural. Para isso, brinquedos, vídeos, alimentos, etc. (reforçadores artificiais) devem vir sempre acompanhados de elogios (reforçadores sociais) e garantia de prazer e funcionalidade na atividade (reforçadores naturais). Assim, gradualmente, os elogios e o gostar de aprender passam a manter as respostas, permitindo a retirada gradual do reforçamento artificial.
O analista do comportamento deve planejar esquemas de reforçamento específicos para cada objetivo acadêmico. Por exemplo, com uma criança que está começando o processo de inclusão pode ser importante usar o reforçamento contínuo. Depois, com a criança mais adaptada ao contexto escolar, pode-se passar para um esquema de reforçamento intermitente e, com isso, possibilitar que reforçadores mais naturais detenham o controle sobre a resposta.
Uma das tarefas mais difíceis na parceria com as escolas consiste em impedir ou, pelo menos, minimizar o uso de punição após a ocorrência de comportamentos disruptivos. Afinal, os castigos, broncas, ameaças e retirada do acesso a situações prazerosas (Ex: não ir para o recreio) são práticas comuns na maior parte das escolas. Porém, como já discutido no artigo “Autismo: Lidando com comportamentos socialmente inadequados” publicado nesta coluna, o controle coercitivo gera muitos efeitos colaterais indesejados que podem comprometer o aprendizado e o sucesso da inclusão escolar.
Também faz parte do trabalho do AT a intermediação de interações sociais. Para isso, o analista do comportamento treina o AT para manipular variáveis ambientais de modo a facilitar a interação da criança com os colegas. O AT pode, por exemplo, propor brincadeiras que a criança de inclusão conheça, goste e saiba brincar, facilitando sua inserção nos momentos lúdicos. Durante estas interações o AT deve bloquear estereotipias e redirecionar para comportamentos mais funcionais; dar as dicas necessárias para a comunicação da criança de inclusão com seus pares; e ajudar a criança a se manter na brincadeira e manipular brinquedos de forma adequada (e não estereotipada). Também é importante orientar os pares acerca de como interagir e se comunicar com a criança de inclusão, tornando eles próprios o que passamos a chamar de “mini-ATs”.
Finalmente, o quinto passo do processo de inclusão escolar consiste na supervisão e coordenação da equipe (profissionais e familiares). O analista do comportamento deve garantir coerência e sistematicidade de procedimentos mantendo reuniões frequentes com todos os membros da equipe de intervenção e familiares mais próximos. Nestas reuniões deve-se promover a troca de informações entre os membros da equipe, para que todos conheçam a atuação dos demais, bem como o desempenho da criança em cada contexto de intervenção. Nestas reuniões também são estabelecidas novas metas de intervenção, com base nos problemas de comportamento e aprendizado que a equipe for relatando. Então, com as metas estabelecidas, o analista do comportamento explica e treina novos procedimentos para ensino de novas habilidades ou controle do comportamentos inadequados.
Vale ressaltar que todos os passos do processo de inclusão aqui descritos contemplam a concepção de Educação da Análise do Comportamento já descrita nos dois artigos anteriores a este. Assim, qualquer proposta de um profissional analista do comportamento precisa ser composta por esses passos fundamentais.
Referências Bibliográficas:
Bagaiolo, L. & Guilhardi, C. (2002). Autismo e preocupações educacionais: Um estudo de caso a partir de uma perspectiva comportamental compromissada com a Análise Experimental do Comportamento. In: Guilhardi, H. J., Madi, M.B. P., Queiroz, P. P., Scoz, M. C. (Org.) Sobre Comportamento e Cognição. 1ª Ed. Santo André: ESETEC, v. 10, p. 67-82.