A questão do poder e do privilégio na prática clínica

Provavelmente, a maioria dos alunos de psicologia que um dia participou de alguma supervisão clínica ou teve aulas sobre o assunto, escutou que a terapia é uma “via de mão-dupla”, no sentido de que o terapeuta e o cliente tem a mesma importância para o desenvolvimento do processo psicoterapêutico. Porém, na prática, resumir essa visão bidirecional da relação terapêutica ao fato de que tanto o comportamento do terapeuta fica sob o controle do cliente quanto vice-versa, não abrange um ponto chave: a psicoterapia não é uma prática sociopolítica neutra.

Antes de qualquer coisa, o termo sociopolítico no texto será usado da maneira mais ampla possível, ou seja, como as relações que o indivíduo estabelece com o seu ambiente e a visão crítica dessas mesmas relações. Talvez você esteja pensando que esta é uma definição, pouco operacionalizada ou muito abrangente… bem, se você pensou isso, você começa a ver melhor o problemão que temos em nossas mãos.

Ao falar desse nível sociopolítico, estamos falando de dois aspectos básicos que o compõem: as relações comportamentais em si e a análise destas relações. Essa divisão é importante para que possamos identificar como elas se constroem ao longo do tempo, e a partir daí desenvolver uma operação nesse nível. As relações comportamentais podem ser explicadas pelo modelo de seleção por consequências (Skinner, 1981), não vou me aprofundar neste tópico para não tirar de foco o objetivo do texto, mas um leitor mais interessado encontrará com facilidade artigos abordando o tema. Mas a visão crítica sobre as relações comportamentais é um produto social e verbal. Skinner (1953/1981) afirma que é o grupo que determina o que será reforçado (os valores) ou não dentro de uma cultura, para isso se utiliza de diversos procedimentos de controle – muitos deles aversivos. Porém não existe um consenso ou apenas um grupo organizando os valores de uma cultura, e só precisamos abrir qualquer portal de notícias para ver a diversidade dos valores pregados como certos. Em tempos como os nossos, podemos ver facções evangélicas lutando pela “cura gay”, movimentos de minorias lutando pelo reconhecimento dos seus direitos, alguns pais ensinado o valor da meritocracia para seus filhos, enquanto outros ensinam as mazelas do materialismo.

Um indivíduo que cresça dentro de uma comunidade verbal aprenderá os seus valores, e estes determinarão o que é certo e errado. Entretanto, isso não quer dizer que esses valores não possam mudar. De repente, uma pessoa que em um dado momento é crítica com pessoas de uma determinada etnia, muda o seu comportamento depois que é obrigada a se mudar para um país em que tal etnia seja majoritária. O importante é que em nenhum dos dois momentos a pessoa foi neutra, sempre existiu um posicionamento sociopolítico. Aqui começamos a ver o desafio inerente de qualquer processo terapêutico: o terapeuta e o cliente não são a mesma pessoa, portanto, tem valores diferentes um do outro.

Otero (2012) salienta que é importante que o terapeuta saiba lidar com os próprios valores na sua prática clínica, a fim de evitar impor a sua interpretação acerca dos fenômenos que ocorrem na vida do seu cliente. Esta é uma preocupação básica em qualquer processo terapêutico, mas, mesmo que nossos supervisores nos alertem sobre isso desde os primeiros anos de estágio em clínica, é uma tarefa difícil de ser realizada.

Um possível erro é tratar valores como simples idiossincrasias de cada pessoa, como meros produtos da história de vida de um indivíduo. “Você não é um floco de neve, bonito e único” (Palahniuk, 1999, p.86). Valores existem dentro de um contexto social e representam relações de controle que não podem ser ignoradas pelo terapeuta.

Terapias feministas tem se debruçado sobre o tema já há certo tempo. Estas têm estudado as relações de poder e privilégio dentro do setting clínico. Terry, Bolling, Ruiz e Brown (2010), após uma detalhada discussão, definem poder como o controle sobre: (a) reforçadores importantes; (b) a história de reforçamento dos comportamentos das outras pessoas. Já privilégio é definido como o acesso diferencial aos reforçadores importantes, sendo que o critério para esse acesso não envolve mérito individual, e sim, inclusão dentro de algum grupo social.

O privilégio descreve não só uma possível história de reforçamento única para cada pessoa, mas que as possibilidades de variação dessa história são limitadas. Este limite é determinado pelas relações de poder exercidas tanto pelas agências de controle quanto por indivíduos que tem o respaldo destas agências. Aqui veremos pais de família obrigando seus filhos a adotar certas condutas de acordo com que o que é socialmente esperado para o seu gênero; diferenças significativas na porcentagem de certos gêneros ou etnias ocupando cargos de liderança; à quem servem as politicas de internação compulsória, etc. O privilégio e o poder estão presentes, também dentro do consultório. O terapeuta pertence a uma determinada classe social, a um determinado gênero e tem no mínimo o ensino superior completo. Quando uma pessoa assim se depara com um cliente de uma condição socioeconômica ou nível educacional diferente, clientes trans*, por exemplo, é difícil que essas situações não gerem conflitos. Estas noções de poder e privilégio nos mostram que a preocupação do terapeuta vai muito além de fazer interpretações erradas dentro do gabinete, já que ele pode perpetuar formas de controle que geram dependência e preconceitos. E para piorar: na maioria das vezes a perspectiva global do contexto em que o indivíduo se comporta não está completamente visível para o terapeuta. Na sua ânsia de ajudar, ele pode se colocar numa posição de autoridade ao considerar seu ponto de vista privilegiado pelo arcabouço teórico que possui. Dessa forma, o terapeuta pode acabar menosprezando o ponto de vista do cliente. Fugir do status quo é bem mais difícil do que parece.

Ruiz (1998) descreve uma situação que ocorreu com Sandy, uma aluna de psicologia, e que serve para ilustrar esse ponto. Em uma das suas aulas de psicoterapia, Sandy teve que assistir ao clássico vídeo do atendimento de Glória. O vídeo é composto por 3 seguimentos de atendimentos, cada um com um terapeuta diferente (Fritz Perls, Carl Rogers e Albert Ellis). A paciente havia procurado atendimento por que se sentia deprimida. Recentemente havia se divorciado, isso tinha feito com que criasse algumas dividas financeiras. Além disso, ela relava uma grande culpa por estar saindo com um novo sujeito, bem como por ter que trabalhar para sustentar a casa, o que lhe tirou bastante tempo de convivência com seus filhos. Ela se descrevia como uma “mãe ruim”. Após ver o vídeo, a aluna percebeu que todos os terapeutas tentaram validar o sentimento de Gloria, pois ela tinha o “direito” de se sentir assim naquela situação. Em nenhum momento algum deles tentou confrontar a noção de “mãe ruim” ou de “mãe solteira”. Ao tentar validar o sentimento, os terapeutas apenas fortaleceram o estereótipo feminino da época.

Terry, Bolling, Ruiz e Brown (2010) dão outro exemplo das ciladas que o terapeuta pode se meter sem perceber. Uma das autoras atendia uma cliente que estava em duvida sobre ter um filho ou postergar a gestação. Ela estava entrando numa pós-graduação, e a gravidez a obrigaria a atrasar a sua carreira. Após o atendimento, a terapeuta percebeu que se focou muito na questão da carreira. Mesmo que não tenha tomado um lado diretamente, a proporção de cada assunto durante a sessão foi bem diferente. A terapeuta percebeu que devido a sua própria condição de profissional bem sucedida e pós-graduada, ela acabou inferiorizando a opção da sua cliente de priorizar o filho e não a carreira.

Já que a psicoterapia não pode ser uma prática neutra, é papel do clinico fomentar uma discussão sociopolítica dentro do setting (Terry, Bolling, Ruiz e Brown, 2010). Se os valores, tantos os seus quanto os do cliente, não forem confrontados, o terapeuta pode apenas estar procurando maneiras do cliente se adaptar de uma nova maneira às exigências da sociedade.

Mas como fazer isso? E as questões éticas que esse posicionamento levanta? Bem, caro leitor, esse é um tema que terá que ficar para um próximo texto. Não quero terminar com respostas corridas e amplas que acabem parecendo senso comum. A intenção deste primeiro texto é mostrar a importância desta preocupação. Para finalizar, penso que a discussão do velho Holland (1974) resume bem a ideia:

Aqueles que aplicam os princípios do comportamento estão lidando com relações de poder entre pessoas e não podem ser considerados politicamente neutros. A escolha é se a ciência irá servir a elite ou as pessoas que são objetos dos procedimentos de controle. (p.419)

Referências Bibliográficas

Holland, J. G. (1974). Political implications of applying behavioral psychology. (http://neurodiversity.com/library_holland_1972.pdf)

Otero, V. R. L. (2012). Considerações sobre valores pessoais e a prática do psicólogo clínico. Em N. B. Borges, e F. A. Cassas. (Orgs). Clínica analítico-comportamental: aspectos teóricos e práticos. (pp. 200-205). Porto Alegre: Artmed.

Palahniuk, C. (1999). Fight Club. New York: Owl Books

Ruiz, M. R. (1998). Personal agency in feminist theory: evicting the illusive dweller. The behavior analyst, 21(2), 179-192.

Skinner, B. F. (1981). Ciência e comportamento humano. São Paulo: Martins Fontes (Trabalho original publicado em 1953).

Skinner, B.F. (1981). Selection by consequences. Science, 213, 501-504.

Terry, C., Bolling, M. Y., Ruiz, M. R., Brown, K. (2010). FAP and feminist therapies: confronting power and privilege in therapy. Em Kanter, J. W. et al (Orgs). The practice of functional analytic psychotherapy. (pp. 97-122). Seatle: Springer.

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Classificação do artigo

Escrito por Bernardo Rodrigues

Psicólogo pela Universidade da Amazônia, mestre em Psicologia Experimental pela UFPA, especialista em clínica analítico-comportamental pelo Núcleo Paradigma. Atualmente trabalha como psicoterapeuta e acompanhante terapêutico no Núcleo Paradigma.

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