Ao que tudo indica, em 1859 Darwin já havia reunido um grande volume de comprovações suficientes para que suas propostas fossem universalmente aceitas. No entanto, isso só viria a ocorrer quase um século depois. Mas por que tanto tempo assim? De acordo com os historiadores, os principais muros foram construídos com tijolos de fábricas filosóficas defendidas por praticamente todos os oponentes a Darwin. “A crença irrestrita na verdade literal de cada palavra da Bíblia foi uma delas” (Mayr, 2009, p. 100). Para refutar essas ideias, Darwin cunhou quatro novos importantes conceitos: seleção natural, populações, história e acaso, em meados do século XIX. Esses conceitos não serviram apenas para refutar as ideias oponentes, mas embasaram a construção da filosofia da biologia, à partir da metade do século XX. Faz-se necessário, entretanto, conhecer alguns aspectos dessas filosofias. É interessante perceber que ainda no século XXI as ciências biológicas ainda possuem ramos do criacionismo travestidos do chamado “Design Inteligente”, tema sobre o qual discutirei em publicações posteriores. Mas vamos voltar ao século XIX e ver quais as principais correntes ideológicas travavam batalhas contra a Teoria da Evolução.
Essencialismo (Pensamento Tipológico / Tipologia)
Foi uma visão de mundo nascida na Grécia antiga com Platão e os pitagóricos. Sua premissa básica parte do pressuposto de que todos os fenômenos e elementos da natureza que, aparentemente variavam, podiam ser classificados e organizados em classes, sendo cada uma dessas classes caracterizada por sua essência constante, invariável e diferente de todas as outras essências. Deste modo, havia a classe das árvores – definida por um tronco e uma copa cheia de folhas; outro exemplo seria a classe dos cavalos, definida por seus dentes protuberantes e por uma pata com um único dedo.
Da mesma maneira, na religião cristã acredita-se que todas as classes, categorias e espécies foram criadas separadamente e que todos os seres vivos de uma mesma espécie descendem de um único casal criado por Deus. Possuindo essência imutável, tais seres possuem hoje a mesma configuração composta no dia da criação. Vale ressaltar que o essencialismo não era uma proposta filosófica adotada apenas pelos religiosos do cristianismo, mas também por filósofos agnósticos. (Pausa: é interessante como o essencialismo ainda se mantém fortemente presente na Psicologia nas teorias que compreendem o comportamento humano como produto de uma essência construída na infância, com a qual deve-se “aprender a conviver” por ser imutável e constante). Os essencialistas consideravam uma espécie como uma classe, a qual denominavam “tipo natural”.
Ainda alguns evolucionistas pré-darwinianos (qual Lamarck, por exemplo) adotaram uma versão mais branda do existencialismo quando admitiam uma mudança gradativa com o passar do tempo, mas a classe do ser vivo ainda possuía características invariáveis.
Pensamento Populacional
Em contraposição ao essencialismo, Darwin afirmara que o que encontramos nos seres vivos não são classes constantes (tipos), mas sim populações variáveis. Cada espécie é composta por diversas populações locais que se reproduzem sexualmente, e estas são constituídas por indivíduos diferentes um dos outros, o que também é aplicável aos seres humanos. Esta proposição de Darwin foi gradualmente sendo aceita pelos naturalistas à partir das constatações de que animais e plantas apresentavam variação e individualidade tão grandes quanto as da espécie humana.
Finalismo
Esta foi outra filosofia explicativa de que o mundo dos seres vivos tende gradativamente à perfeição. Esta é a ideia de que a evolução segue a lógica do aperfeiçoamento das espécies indo “do inferior ao superior, do primitivo ao avançado, do simples ao complexo, do imperfeito ao perfeito” (Mayr, 2009, p.102). De acordo com esta corrente de pensamento, este tipo de evolução seria possível pela existência de uma força interna inerente aos seres vivos. Tal filosofia parte de uma raiz aristotélica teleológica de explicação causal. Apesar de ser aceita por muitos anos após 1859, esta proposição foi radicalmente negada por Darwin, pois este rejeitava forças obscuras em suas explicações e não se referia a um aperfeiçoamento. Ao propor a teoria da evolução, Darwin não afirmou que uma espécie era “melhor” ou “mais aperfeiçoada” que outra, mas sim que a evolução se referia ao processo de mudança de direção biológica na adaptação de acordo com as contingências do ambiente e a capacidade dos indivíduos de sobreviver e se reproduzir. Apesar de concordar com algumas postulações newtonianas de explicações físico-químicas, Darwin introduziu uma perspectiva histórica na ciência (algo ausente na ciência de Isaac Newton), pois para compreender os fenômenos evolutivos, faz-se necessário lançar mão de antecedentes históricos.
E como funciona, afinal de contas a evolução por seleção natural?
Tudo o que há no universo também está evoluindo, isto é, mudando visivelmente de direção. Nos seres vivos, as espécies evoluem e todos os conjuntos de espécies em suas classificações taxonômicas (gênero, família, ordem… reinos). Mas como a evolução envolve os seres vivos? Uma pergunta clássica é: os indivíduos evoluem? A resposta é não! Nosso fenótipo (características físicas) muda ao longo da vida, mas o genótipo (nossa constituição genética) permanece essencialmente o mesmo, desde o dia em que nascemos até o dia de nossa morte [1]. Mas então qual seria o menor nível de organização no processo evolutivo dos seres vivos? A resposta é a população! De acordo com Ernst Mayr (2009):
… a população é o substrato mais importante para a evolução. A evolução pode ser definida como a mudança da distribuição genética dos indivíduos que toda população sofre de geração para geração. […]. Uma população consiste em uma comunidade de indivíduos de uma espécie, potencialmente capazes de acasalamento e situados em uma localidade determinada (Mayr, 2009, p. 103).
A reprodução sexuada (fusão de gametas de diferentes indivíduos) proporcionou a possibilidade de haver grande variabilidade genética, fazendo com que um indivíduo seja geneticamente diferente do outro (genótipo) e, portanto, contendo diferentes características físicas (fenótipo) dentro de um grupo de indivíduos (população). Assim sendo, os indivíduos cujas características contribuírem para sobrevivência e reprodução, terão perpetuado nas gerações descendentes suas características genéticas, ou seja, terão transmitidos os seus genes. Observe que a seleção ocorre sobre o indivíduo, mas as evidências da evolução aparecem na população.
Para que o processo de evolução por seleção natural ocorra, ele depende de algumas condições, as quais são: (1) os membros de uma mesma espécie são diferentes entre si e esta variabilidade é hereditária; (2) todos os organismos geram mais descendentes do que podem sobreviver; e (3) dado que todos os descendentes sobrevivem, aqueles que o fazem tendem a possuir uma anatomia, fisiologia ou comportamento que os prepara melhor para as demandas dos ambiente prevalecente. O princípio da seleção natural tornou-se conhecido (incorretamente) como “sobrevivência do mais apto”, apesar de Darwin nunca ter utilizado este termo (Lewin, 1999).
O biólogo norte-americano David Sloan Wilson, em seu brilhante livro denominado “Evolution for Everyone: How Darwin’s theory can change the way we think about our lives”, explica de modo bastante claro e informal:
A teoria de seleção natural de Darwin é como um recipiente com três ingredientes: Começamos com variação. Indivíduos como você e eu diferem em quase tudo que pode ser medido, tal como peso, cor dos olhos, ou prontidão para ficar nervoso, por exemplo. Em seguida acrescentamos as consequências. As distinções entre você e eu ocasionalmente fazem a diferença na nossa habilidade de sobreviver e se reproduzir. Talvez sua altura ou tamanho permita que você tome as minhas coisas ou até mesmo me mate diretamente. Talvez o meu tamanho ou altura inferior me permita sobreviver ao inverno ou quando há menos comida disponível. Os detalhes dependerão de nossas particularidades e dos ambientes em que habitaremos. E o ingrediente final, uma espécie de fermento que faz com que a mistura tome vida, é a hereditariedade.Para muitos traços, os filhotes tendem a se parecer muito com seus pais. Darwin não sabia como a hereditariedade funcionava em seu mecanismo, mas ela era um fato muito bem estabelecido (Wilson, 2008, p. 17).
A seleção natural, portanto, constitui-se como o sucesso reprodutivo diferencial com a transmissão de características favoráveis à descendência oferecendo uma vantagem na sobrevivência daqueles indivíduos que as possuem. Deste modo, geração após geração, as características favoráveis tornar-se-ão mais comuns na população, provocando uma mudança microevolutiva na espécie. Entretanto, tais características continuarão sendo favorecidas somente se as condições prevalecentes continuarem as mesmas, o que em geral não acontece. O ambiente de uma espécie geralmente não permanece constante na natureza, as contingências são imprevisíveis e modificam-se constantemente. Uma mudança no clima, por exemplo, pode modificar a vegetação disponível, por exemplo, demandando dos indivíduos novas estratégias de forrageamento. Uma nova espécie pode entrar no ecossistema, ou uma espécie, até então presente, pode desaparecer. Pode haver o aparecimento de novos predadores, exigindo dos indivíduos que compõe a população novas formas de comportamento com função de sobrevivência. Uma espécie existente pode ela mesma modificar-se, tornando-se um predador mais eficiente ou uma presa mais difícil de ser capturada. Cada uma destas mudanças, e outras que podem ser imaginadas, pode alterar o contexto adaptativo de uma população, talvez atribuindo menor benefício a uma característica antes vantajosa ou tornando uma característica menos vantajosa mais favorável. Como resultado, as características hereditárias que se tornam importantes em uma população da espécie dependem do ambiente que predomina: a seleção natural, ou a “luta de um indivíduo pela sobrevivência”, como colocou Darwin, é um processo local, consistindo-se de um ajustamento [2] às condições que se dá a cada geração (Lewin, 1999).
Darwin foi o primeiro teórico a propor no campo científico a noção de que cada indivíduo é absolutamente único, e que a evolução só é possível devido a existência da variação, da variabilidade, da diversidade (Mayr, 2009). O que é verdadeiro e aplicável à espécie humana – que não existem indivíduos iguais – também se estende a todas as outras espécies de seres vivos, animais e plantas. Diz Mayr (2009) que até mesmo o indivíduo muda continuamente com o passar do tempo e com a exposição a novos ambientes – o que Skinner já propunha desde 1938 (Skinner, 1938), e os neurocientistas e epigeneticistas tem confirmado no nível filogenético fisiológico (Schneider, 2012). Na teoria da evolução, quando se utilizam métodos estatísticos, “as médias são meras abstrações estatísticas. Apenas os indivíduos que compõem as populações têm existência real. Para o essencialista, o tipo é real e as variações são uma ilusão, enquanto para o populacionista (darwiniano) o tipo (média) é uma abstração e apenas as variações são reais.” (Mayr, 1959).
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Notas:
[1] A Epigenética – Nova área da genética que estuda a interação gene-ambiente tem descoberto coisas bastante interessantes. Entretanto, esta área, recém-nascida, ainda se encontra no plano da pesquisa básica, em processo de construção de seus alicerces empíricos e teóricos.
[2] Queria eu não precisar fazer este comentário, mas infelizmente ele é muito necessário. O termo “ajustar” aqui não se refere ao sentido referenciado por alguns críticos, de “subjugar-se”, “entregar-se”, “não lutar”, “não resistir”. A proposta é exatamente contrária: se o contexto se modifica, então, para que haja probabilidade de sobrevivência, faz-se absolutamente necessária uma adaptabilidade do organismo ao ambiente, no sentido de “dar o máximo de si” na tarefa de sobreviver e se reproduzir. Vale ressaltar que quando falamos em Evolução por Seleção Natural, necessariamente nos referimos às funções biológicas de sobrevivência e reprodução.
Referências:
Lewin, R. (1999). Evolução Humana. São Paulo: Atheneu Editora.
Mayr, E. (1959). Darwin and the evolutionary theory in biology. In: Evolution and Anthropology: A Centennial Appraisal, pp. 1-10. Washington, D.C.: Anthropological Society of America.
Mayr, E. (2009). O que é a evolução. Rio de Janeiro: Rocco.
Schneider, S. M. (2012). The science of consequences: How they affect genes, change the brain, and impact our world. Amherst, N.Y.: Prometheus Books.
Skinner, B. F. (1938). The behavior of organisms. New York: Appleton-Century-Crofts.
Wilson, D. S. (2008). Evolution for Everyone: How Darwin’s theory can change the way we think about our lives. New York: Bantam Dell.