“Amor de mãe?… ah, isso é inabalável, inquestionável e incontestável!” foi o que ouvi há alguns anos atrás antes de iniciar minhas pesquisas sobre o assunto. Ora, algo inabalável possui status fixo, invariável, praticamente algo inexistente neste planeta. Inquestionável e incontestável são características dogmáticas, incompatíveis com a proposta do método científico de produção do conhecimento. E se o amor de mãe diz respeito a um fenômeno comportamental humano, devo dar a triste notícia de que sim, é abalável, questionável e contestável, e pode ser estudado cientificamente. A própria mídia nos testifica com perguntas mediante acontecimentos por ela registrados: Mas será? O que levaria algumas mães a abandonarem seus filhos? Como uma pessoa teria coragem de fazer uma coisa dessas? São questões que fazemos quando nos deparamos com casos de abandono, maus-tratos e até mesmo infanticídio. Em 20 de junho de 2001, um caso assustou boa parte do mundo, quando em Houston (Texas, EUA) a dona de casa Andrea Yates matou seus cinco filhos pequenos, afogando-os na banheira de sua casa. Segundo a revista Veja da época, “os corpos estavam molhados, sobre uma cama, enrolados num lençol. Só o mais velho estava na banheira. Pouco antes de chamar o marido, ela havia ligado para a polícia e confessado: ‘Matei meus filhos’”.
Casos como este nos fazem questionar a universalidade da frase que iniciou nossa conversa aqui e levantar perguntas de inquietação sobre tais acontecimentos tão assustadores
Quando olhamos para outros animais percebemos que esta não se constitui uma questão exclusivamente humana, mas presente em outras espécies, levando-nos a concluir que se trata de um comportamento adaptativo com marcante caminho evolutivo (Tokumaru, 2009). Mas como um comportamento destrutivo da própria prole contribuiria para a perpetuação genética da mãe que mata seus filhos? Em nossa conversa anterior, vimos que a seleção natural atua sobre aquilo que contribui aos dois objetivos filogenéticos fundamentais: sobrevivência e reprodução. Não é a espécie o foco da seleção, mas o indivíduo (Lewin, 1998/1999). Assim sendo, a luta pela sobrevivência está relacionada à transmissão genética do indivíduo nas populações descendentes, o que significa que aquilo que popularmente conhecemos como “egoísmo” também possui bases evolutivas (Dawkins, 1976/2001). Deste modo, cuidar e investir nos filhos são, em termos filogenéticos, atos egoístas, por incrível que possa parecer (Para maior conhecimento sobre o tema, recomendamos a leitura de Rachlin, 2002).
Robert Trivers, um renomado biólogo evolucionista e professor do Departamento de Antropologia da Universidade de Rutgers (EUA) cunhou em 1972 o importante conceito de “Investimento Parental” que significa qualquer investimento realizado pelos pais em uma prole que aumente as chances de sobrevivência desta e, portanto, de seu sucesso reprodutivo, ao custo da habilidade dos pais em investir em outros filhos (Trivers, 1972). Isto significa que o benefício de se investir na educação e sustento de um filho é a perpetuação dos genes dos pais que estão nele. Façamos uns parênteses aqui: esta é perspectiva filogenética da explicação do comportamento parental. O repertório do cuidado envolve ainda dois níveis de complexidade, ontogênese (história de vida, experiências e modelos de criação dos indivíduos que hoje são pais) e a cultura (variações sociais daquilo que se entende como criação e educação de filhos).
Considerando que este conceito de investimento parental possui características essencialmente econômicas, o comportamento de investir na prole permanecerá se o valor dos benefícios superar o dos custos. O amor materno então tem limites? A conclusão que estes quarenta anos de pesquisa em diversas partes do mundo têm alcançado é que sim! Se entendermos o conceito de comportamento como relação do organismo com o ambiente (Skinner, 1974/1976), o próprio comportamento parental também será emitido de acordo com o ambiente de inserção da família. Assim, o organismo do genitor realiza cálculos de custos e benefícios de se cuidar de um filho de acordo com: características da própria criança (sinais biológicos da criança que discriminem maiores probabilidades de sobreviver e reproduzir-se conforme as demandas do ambiente em que estão), as características do próprio genitor (idade, aspectos físicos e repertório que indiquem capacidade de alocar recursos para sustentar a prole), e fatores ditos ecológicos (os riscos, disponibilidade de recursos, rede de apoio disponível composta por parentes e pessoas próximas, previsibilidade e sinais do ambiente que indiquem a possibilidade de cuidar e investir nos filhos). É na combinação específica de tais fatores, variando conforme a ontogênese e a cultura, que residirá a modulação do investimento parental. Deste modo, em termos filogenéticos, a negligência aos filhos (ou mesmo a redução dos cuidados) se dá quando o genitor percebe um custo muito alto no investimento, com baixíssimas possibilidades de benefício, isto é, manter o filho vivo e forte o suficiente para alcançar idade reprodutiva.
O pesquisador Robert Quinlan (2007) constatou em uma de suas pesquisas que o índice de cuidados oferecidos às crianças se reduz ao passo que aumentam os riscos de morte incidentes no ambiente de residência das famílias. Vide figura demonstrativa abaixo.
Neste gráfico, Quinlan (2007) explica a relação observada entre as variáveis “cuidado materno” (linha contínua), “estresse patógeno” e “idade da criança no desmame em meses” (linha pontilhada). É interessante perceber que o cuidado que a mãe tem para com os filhos aumenta ao mesmo tempo em que aumentam as dificuldades ambientais (aqui representadas pelo aumento na incidência de doenças na população – leishmaniose e tripanosoma, malária, esquistossomose, filaria, espiroquetas e hanseníase). No entanto, este aumento do cuidado (com fins de proteção da criança) só vai até níveis moderados de risco ambiental. A partir do momento em que os níveis de risco se acentuam mais, há uma queda brusca do cuidado oferecido aos filhos pela mãe. O mesmo acontece com a idade da criança no desmame, o que significa que quanto maiores os níveis de risco, mais cedo as crianças que estão em período de amamentação deixam de ser amamentadas pelas mães (entendendo que o próprio aleitamento se caracteriza como um tipo de investimento parental).
Casos como o ocorrido nos Estados Unidos impressionam e eliciam em nós respondentes de raiva, indignação da mãe e pena, tristeza pelas crianças. Entretanto, para além de classificações moralistas, é necessária uma inclinação sobre o fenômeno comportamental em questão a fim de compreendê-lo, para então poder intervir de modo eficaz. A ideia de que o amor materno não é incondicional incomoda bastante, principalmente pelo fato de a mãe, de um modo geral, ser uma figura de afeto. Todavia, ao sabermos da importância deste apego para o desenvolvimento de uma pessoa (Bowlby, 1976/1988), precisamos ficar atentos aos estímulos discriminativos do ambiente em que ocorre o comportamento parental. Em outras palavras, se conhecermos o contexto de inserção dos pais, podemos, em certa medida, analisar as contingências às quais o comportamento parental é função (incluindo aqui os maus-tratos na relação com as crianças, por exemplo).
O terceiro nível de seleção atua de modo bastante importante na criação e manutenção de práticas culturais, leis e instituições que oportunizam a ocorrência do comportamento parental (licença-maternidade, Estatuto da Criança e do Adolescente, conselhos tutelares, creches, e outros). Saber que o cuidado materno pode ser abalado nos responsabiliza, em certos aspectos, à atenção sobre as contingências que operam no cuidado. Aqui temos uma boa demonstração de que filogênese, ontogênese e cultura se confundem e nosso compromisso ético de defesa da vida figura como princípio fundamental nessa história toda. Os estudos evolucionistas nos lembram que somos uma espécie de animais e que o funcionamento de nosso organismo está “atrasado” em comparação ao ambiente que vivenciamos hoje – já que fomos selecionados para sobreviver nas savanas (Skinner também faz uma discussão sobre este assunto no texto “What’s wrong with daily life in the western world?”, 1987). Essa lembrança nos é importantíssima na busca de estratégias para lidar com nossa filogênese e sobreviver, enquanto grupo, às nossas próprias propensões selecionadas durante milhões de anos.
Referências:
Bowbly, J. (1988). Cuidados Maternos e Saúde Mental. Tradução: Vera Lúcia Baptista de Souza e Irene Rizzini. São Paulo: Martins Fontes. Originalmente publicado em 1976.
Dawkins, R. (2001). O gene egoísta. Tradução: Rejane Rubino. Belo Horizonte: Editora Itatiaia. Belo Horizonte. Originalmente publicado em 1976.
Lewin, R. (1999). Evolução humana. Tradução: Danusa Munford. São Paulo: Ateneu. Originalmente publicado em 1998.
Quinlan, R. J. (2007). Human parental effort and environmental risk. Proceedings of Biological Sciences B, 274(1606), 121-125.
Rachlin, H. (2002). Altruism and selfhisness. Behavioral and Brain Sciences, 25, 239-296.
Skinner, B.F. (1976). About Behaviorism. New York: Vintage Books. Publicação original de 1974.
Skinner, B. F. (1987). What is Wrong with Daily Life in the Western World? In: Skinner, B. F. Upon Further Reflection. Englewood Clifs (New Jersey): Prentice Hall, p.15-31.
Tokumaru, R. S. (2009). Investimento Parental e Maus-tratos de Crianças. In E. Otta & M. E. Yamamoto (Eds.), Fundamentos de Psicologia: Psicologia Evolucionista (1 ed., pp. 96-103). Rio de Janeiro: Guanabara Koogan.
Trivers, R. L. (1972). Parental Investment and Sexual Selection. In B. G. Campbell (Ed.), Sexual selection and the descendent of man 1871-1971 (1 ed.). Chicago: Aldine Publishing Company.