Os transtornos da moda

Costumo brincar em sala de aula dizendo que um ou outro transtorno está “na moda”. Embora seja só uma brincadeira, ela só é engraçada por que tem um fundinho de verdade.

Um exemplo é a depressão, um transtorno tão comum que têm sido chamado de “o resfriado” das doenças mentais (Keller, 1994). Segundo a OMS (citado por Azevedo et al., 2009) ela é a quarta “doença” mais diagnosticada no mundo, sendo que um sexto da população poderá apresentar alguma manifestação depressiva. 
Podemos fazer alguns esforços para tentar compreender os motivos que fazem um certo transtorno entrar ou sair de moda. De acordo com o Behaviorismo Radical, só se pode compreender um fenômeno comportamental se o analisarmos levando em conta os três niveis de seleção do comportamento: a filogênese, a ontogênese e a cultura. Pretendo neste texto discutir como cada um deles interfere no desenvolvimento ou manutenção de um transtorno.


1. A filogênese

De acordo com Skinner (1953) o comportamento é parte da relação entre um organismo e seu ambiente, o que inclui seu próprio corpo e o que nele existe. 
Os seres humanos de hoje são o resultado de um processo de evolução que já dura 3 bilhões de anos e ainda não acabou. Isso de maneira alguma nos faz especiais, existem vários animais que enxergam melhor do que nós, que “respiram” debaixo da água ou voam quilômetros de distância sem ajuda de aparelhos externos. 
No entanto, somos os únicos que discutimos porque fazemos as coisas que fazemos, podendo contar para outros através de palavras, músicas ou poesias. Isso com certeza se dá pelo nosso cérebro extremamente evoluído. 
O cérebro é tão importante para nós, que a descoberta do primeiro antipsicótico (clorpromazina, na década de 1950) é considerada a 3ª revolução psiquiátrica, diminuindo consideravelmente o número de leitos dedicados a pacientes crônicos (e procedimentos de lobotomia). 
Embora o cérebro seja essencial para nós, ele não é a causa do comportamento, é apenas parte do corpo. E parte do corpo não determina comportamento. No entanto, com o avanço das neurociências, os cientistas começaram a descobrir e diferenciar as áreas cerebrais e substâncias químicas que interferem em diferentes respostas, o que tem influenciado o reducionismo biológico, isto é, faz algumas pessoas acreditarem que todo comportamento (ou transtorno) tem origem cerebral. Isso pode ter consequências perigosas, como esta apresentada pelo neurocientista Steven Rose (2006, p.14):

“O peremptório Diagnostic and Statistic Manual, com base em dados dos Estados Unidos, agora inclui como categorias de doenças o transtorno opositor desafiante, o distúrbio do comportamento destrutivo e, mais notavelmente, uma doença chamada de distúrbio de hiperatividade e déficit de atenção, que supostamente afeta até 10% das crianças pequenas (principalmente meninos). o ‘distúrbio’ é caracterizado por fraco desempenho na escola e incapacidade de se concentrar nas aulas ou de ser controlado pelos pais. Supostamente é consequência de função cerebral defeituosa associada a outro neurotransmissor, a dopamina. O tratamento prescrito é um remédio análogo à anfetamina, chamado Ritalina. Há uma epidemia mundial crescente de uso da Ritalina.” 

Não há dúvidas de que a Ritalina ajude estas crianças (e os pais, principalmente). Não é meu objetivo criticar os psicofármacos, pelo contrário, sou a favor da pesquisa e desenvolvimento dos mesmos. A minha preocupação é com o aumento excessivo do diagnóstico e prescrição dos medicamentos causados pela visão exageradamente organicista, assim como mostra o gráfico abaixo, de Sclar et al (2012): 

 

Ele mostra o aumento do diagnóstico do TDAH em crianças nos EUA nos últimos 20 anos. De 2003 para cá o número parece ter diminuído, espero que seja por consciência dos profissionais de saúde mental e não consequência de, por exemplo, um aumento indiscriminado de outro diagnóstico, como o autismo. 

2. História de vida e cultura 

Embora nosso aparato genético possa ter influência no desenvolvimento de determinados transtornos comportamentais, mesmo em caso de pessoas com o mesmo código genético (gêmeos) não temos certeza se ambos irão desenvolver uma psicopatologia. Isso porque o transtorno dependerá também da seleção ontogenética (nossa história de vida) e da cultura em que estamos inseridos. 
De tempos em tempos vemos também algum jornal falar sobre ansiedade, depressão ou assassinos em série e podemos pensar “ei, eu tenho isso!” ou então “o meu chefe é um psicopata”. De fato, alguns comportamentos descritos no DSM-IV (2002) são comuns em nossa sociedade, como “comer compulsivamente” ou “perda de energia quase todos os dias”. No entanto, não necessariamente querem dizer que a pessoa está com um transtorno. Em alguns casos é a própria cultura que irá produzir os comportamentos inadequados na pessoa, como na anorexia. 
Anorexia é aquele transtorno em que a pessoa faz o possível para emagrecer, mesmo quando já está com o peso corporal perigosamente abaixo do ideal. Curiosamente, este transtorno costuma ocorrer mais nas mulheres do que nos homens, em uma proporção de 10 para 1 (Holmes, 2001). Provavelmente isto acontece devido à importância que nossa cultura dá à beleza, principalmente à cobrança que é feita às mulheres. 
Às vezes um mesmo fenômeno pode ser interpretado de maneiras diferentes pela influência cultural, como é o caso da paralisia do sono. Neste transtorno, a pessoa desperta do seu sono mas não consegue se mover, é como se ela estivesse entre o sonho e a realidade, podendo então ter alucinações bastante vívidas. Segundo Sagan (1995) na Idade Média era muito comum nesse momento as pessoas virem bruxas e outras criaturas malignas. Hoje, está na moda ver extraterrestres e sofrer abduções. 
Em outros momentos um fenômeno pode nem estar ocorrendo fora da quantidade normal, mas a mídia fala sobre ele e de repente todos têm algo a dizer, como aconteceu na clínica-escola da faculdade em que leciono atualmente: foi ao ar em um jornal um depoimento de uma apresentadora de televisão dizendo que havia sofrido abuso sexual na infância – nas semanas seguintes o número de ligações de pessoas com queixas semelhantes aumentou consideravelmente. Não posso dizer que o abuso entrou na moda, mas falar sobre ele, pelo menos durante estas semanas, estava. 
É importante que os profissionais da saúde mental saibam utilizar os momentos em que um transtorno esteja “na moda” para conseguir a atenção da população e esclarecer as características do transtorno e, principalmente, a forma de tratamento. Isto é especialmente importante para os psicólogos e analistas do comportamento, pois enquanto vemos um crescimento de pessoas buscando diagnósticos médicos e receitas de medicamentos milagrosos, não sei se podemos dizer o mesmo quanto à busca pela análise do comportamento. 
obs: eu queria também falar sobre a proposta de “adicção à internet” ao DSM-V, às pessoas que sofrem com “fobia de perder o celular” e um recente caso de uma paciente de transtorno bipolar que escrevia 1333.33% mais mensagens de texto nas fases maníacas, mas achei melhor deixar para outro texto, como por exemplo, “os transtornos da modernidade”.
Referências

Azevedo, L. A.; Almeida, T. C.; Moreira, A. H. (2009). “O resfriado da psiquiatria”: a depressão sob o ponto de vista Analítico-Comportamental. Transformações em Psicologia, 2(2), 65-85.

Holmes, D. S. (2001). Psicologia dos transtornos mentais. Trad. por S. Costa. 2ª Ed. Porto Alegre: Artes Médicas.

Keller, M. B. (1994). Depression: A long-term illness. British Journal of Psychiatry, 165, 9–15.

Rose, S. P. R. (2006). O Cérebro do Século XXI. Trad. H. Londres. 1ª Ed. São Paulo: Editora Globo.

Sagan, C. (1997). O mundo assombrado pelos demônios: a ciência vista como uma vela no escuro. Trad. por R. Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras.

Sclar, D. A.; Robison, L. M.; Bowen, K .A.; Schmidt, J. M., Castillo, L. V.; Oganov, A. M. (2012). Attention-Deficit/Hyperactivity Disorder Among Children and Adolescents in the United States: Trend in Diagnosis and Use of Pharmacotherapy by Gender. Clinical pediatrics, 51(6), 584-589.

Skinner, B. F. (1953). Science and Human Behavior. New York: MacMillan.

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Escrito por Felipe Epaminondas

Analista do comportamento mestre em psicologia e com especialização em Psicopatologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Professor no curso de lato sensu "Psicopatologia: subsídios para atuação clínica" da PUC-GO e do curso de graduação em psicologia da Universidade São Judas Tadeu em São Paulo. Também é criador e mantém o blog "Psicologico", onde escreve sobre psicologia geral com uma linguagem voltada ao público leigo.

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