Autor: Daniel Gontijo
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Ao que parece, estamos em um clima propício para acalorados debates. Recentemente, e para citar um caso que tem gerado grandes repercussões, o CFP tomou nota de que a psicóloga Marisa Lobo está, em alguns sítios virtuais, vinculando seu título de psicóloga ao domínio da religiosidade e se posicionando de forma preconceituosa para com a homossexualidade (que, aliás, não é doença). A despeito do que tem sido alegado, a questão elementar não é a de se a psicologia é realmente uma ciência — e poderia negar, por isso, a absorção de práticas que não sejam cientificamente validadas — ou a de se os psicólogos podem ou não ser livres para crer. Antes disso, trata-se da importância de se observar as diretrizes que, ao descrever normas de conduta do psicólogo, culminam na delimitação de um campo específico e legítimo de ação: o das das práticas do profissional de psicologia. Quando a psicoterapia se mistura com ideias e preceitos religiosos, surge um problema similar ao que é levantado pelos defensores da laicidade do Estado. E, se já não há referenciais que tragam — através de teorias, métodos e resultados — reconhecimento e identidade satisfatórios ao exercício da profissão, as coisas estariam longe de melhorar caso permitíssemos a entrada de búzios e cartas, bolas de cristal, leitura de mapas astrais e, por que não, aconselhamentos budistas ou cristãos aos consultórios.
Diante disso, o CFP publicou uma nota de esclarecimento acerca das relações entre a psicologia e a religiosidade. A nota teve como pano de fundo as discussões atuais e como fundamentação o Código de Ética Profissional do Psicólogo. Como o próprio conselho adiantou, ainda há muita água para rolar. Abaixo, trouxemos o pronunciamento do CFP na íntegra.
Fonte: Psicologia Online (POL)
28/02/2012 – Nota Pública do CFP de esclarecimento à sociedade e às(aos) psicólogas(os) sobre Psicologia e religiosidade no exercício profissional
Não existe oposição entre Psicologia e religiosidade, pelo contrário, a Psicologia é uma ciência que reconhece que a religiosidade e a fé estão presentes na cultura e participam na constituição da dimensão subjetiva de cada um de nós. A relação dos indivíduos com o “sagrado” pode ser analisada pela(o) psicóloga(o), nunca imposto por ela(e) às pessoas com as quais trabalha.
Assim, afirmamos o respeito às diferenças e às liberdades de expressão de todas as formas de religiosidade conforme garantidas na Constituição de 1988 e, justamente no intuito de valorizar a democracia e promover os direitos dos cidadãos à livre expressão da sua religiosidade, é que o Código de Ética Profissional da(o) Psicóloga(o) orienta que os serviços de Psicologia devem ser realizados com base em técnicas fundamentados na ciência psicológica, e não em preceitos religiosos ou quaisquer outros alheios a esta profissão:
Art. 1º – São deveres fundamentais dos psicólogos:
c) Prestar serviços psicológicos de qualidade, em condições de trabalho dignas e apropriadas à natureza desses serviços, utilizando princípios, conhecimentos e técnicas reconhecidamente fundamentados na ciência psicológica, na ética e na legislação profissional;
Se as(o) psicólogas(o) exercerem a profissão declarando suas crenças religiosas e as impondo ao seu público estarão desrespeitando e ferindo o direito constitucional de liberdade de consciência e de crença.
O Código de Ética Profissional das(o) Psicólogas(o) cita nos dois primeiros princípios fundamentais a necessidade de respeito à liberdade e a eliminação de quaisquer formas de discriminação, e no artigo 2º veda à(o) psicóloga(o) a indução não só de convicções religiosas, mas também de convicções filosóficas, morais, ideológicas e de orientação sexual, compreendendo a delicadeza e complexidade que o tema merece:
Princípios Fundamentais
I. O psicólogo baseará o seu trabalho no respeito e na promoção da liberdade, da dignidade, da igualdade e da integridade do ser humano, apoiado nos valores que embasam a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
II. O psicólogo trabalhará visando promover a saúde e a qualidade de vida das pessoas e das coletividades e contribuirá para a eliminação de quaisquer formas de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Art. 2º – À(o) psicóloga(o) é vedado:
b) Induzir a convicções políticas, filosóficas, morais, ideológicas, religiosas, de orientação sexual ou a qualquer tipo de preconceito, quando do exercício de suas funções profissionais;
Esse Código de Ética em vigor foi construído a partir de múltiplos espaços de discussão sobre a ética da profissão, suas responsabilidades e compromissos com a promoção da cidadania. O processo ocorreu ao longo de três anos, em todo o país, com a participação direta das(os) psicólogas(os) e aberto à sociedade. Seu objetivo primordial é garantir que haja um mecanismo de proteção à sociedade e à profissão, no intuito de garantir o respeito às diferenças, aos direitos humanos e a afirmação dos princípios democráticos e constitucionais de um Estado laico.
A profissão de psicóloga(o) foi regulamentada no Brasil pela Lei nº 4.119/1962 e a Lei nº 5.766/1971 criou a autarquia dos Conselhos Federal e Regionais de Psicologia, destinados a orientar, a disciplinar e a fiscalizar o exercício da profissão de psicólogo e zelar pela fiel observância dos princípios de ética e disciplina da classe. Entre as atribuições estabelecidas por essa lei ao Conselho Federal de Psicologia estão a de elaborar e aprovar o Código de Ética Profissional do Psicólogo e funcionar como tribunal superior de ética profissional, portanto atuar como instância de recurso aos processos julgados nos Conselhos Regionais.
Cumprindo seu papel previsto na Lei 5.766/1971 de zelar pela fiel observância dos princípios de ética e disciplina da classe, os Conselhos Regionais de Psicologia recebem e apuram as denúncias que chegam sobre o exercício profissional de psicólogas(os). Do julgamento do plenário do Conselho Regional, cabe recurso ao plenário do Conselho Federal de Psicologia.
Qualquer cidadão pode oferecer denúncia contra o exercício profissional do(a) psicólogo(a), visto ser seu direito constitucional. Assim, as ações de orientação e fiscalização promovidas pelos conselhos profissionais no âmbito Regional são legítimas e não podem ser tomadas como perseguições ou cassações a qualquer direito. Todos os profissionais que exercem suas funções reconhecidas pelo Estado Democrático de Direito estão submetidos às legislações e Códigos de Ética dos seus respectivos Conselhos e, portanto, têm o dever de pautar sua atuação profissional nas legislações que disciplinam o exercício de sua profissão.
A Psicologia como ciência e profissão pertence à sociedade, tendo teorias, técnicas e metodologias pesquisadas, reconhecidas e validadas por instâncias oficiais do campo da pesquisa e da regulação pública que validam o conjunto de formulações do interesse da sociedade. Os princípios e conceitos que sustentam as práticas religiosas são de ordem pessoal e da esfera privada, e não estão regulamentadas como atribuições da Psicologia como ciência e profissão.
Finalizamos esse posicionamento declarando que o CFP iniciará uma série de atividades de debate sobre a relação entre Psicologia e religiosidade, com vistas a contribuir com o debate público da categoria e da sociedade frente a esse tema, objetivando explicitar que não somos contrários a que os profissionais tenham suas crenças religiosas, e sim que devemos zelar para que estes não utilizem suas crenças, de qualquer ordem, como ferramenta de atuação profissional.