Alguns comentários são marcantes na nossa vida acadêmica. Lembro-me de várias vezes ter escutado de uma professora que nós não conseguíamos reconhecer algo como diferente. Sempre atribuímos algum valor, como melhor ou pior àquilo. Nunca, simplesmente, diferente. Por mais que essa proposição fizesse sentido, apenas recentemente pude pensá-la baseada em uma perspectiva estritamente comportamental: a Teoria das Molduras Relacionais, sobre a qual vou falar um pouco a respeito.
A Teoria das Molduras Relacionais, do original Relational Frame Theory (RFT) foi proposta por Steven Hayes em 1980 para o estudo da linguagem e cognição humanas (Bleckledge, 2003). Ela se baseia nos estudos de Sidman sobre Equivalência de Estímulos (Bleckledge, 2003; Luciano, Gutíerrez & Páez-Blarrina, 2006).
A RFT possui três propriedades que a definem: implicação mútua, implicação combinatória e transformação de função (Luciano, Gutíerrez & Páez-Blarrina, 2006). A primeira delas, a implicação mútua, refere-se a relações que possuem uma bidirecionalidade (se A – B
[1], então B – A). A segunda, implicação combinatória, refere-se à derivação de uma relação oriunda de duas relações anteriores que compartilham um de seus termos (se A – B e B – C, logo A – C). A última propriedade, transformação de função, estabelece que um estímulo pode mudar de função de acordo com um outro estímulo ao qual está relacionado pelas implicações mútua ou combinatória. Por exemplo, quando uma fruta A é relacionada à outra fruta qualquer B como melhor ou pior:
Já provou mexerica? Não? É muito melhor que laranja!
No exemplo acima, se antes mexerica não possuía nenhuma função específica, após a sua participação na relação verbal citada, ela pode ter suas funções transformadas – ainda que nunca tenha sido provada. A partir dessa relação, o ouvinte pode emitir comportamentos de ir ao supermercado, comprar a fruta ou pedir que alguém a compre, dentre outros.
A partir dessas três propriedades, em especial a última, é possível ampliar o conhecimento sobre a emergência de novos comportamentos, em especial compreender por que é possível para os seres humanos responderem a um estímulo com base em outro, mesmo sem treino prévio, ou seja, sem história prévia de reforçamento.
Dentre as relações possíveis entre estímulos, a RFT prevê 9 – coordenação, oposição, distinção, comparação, hierarquia, espacial, temporal, condicionada/causalidade, deítica. São relações como “igual/diferente que”, “melhor/pior que”, “maior/menor que”, “acima/abaixo de”, “mais/menos que”, dentre outros (Moreira, Todorov & Nanini, 2006).
O estabelecimento dessas relações é fruto de uma extensa história de aprendizagem relacional que vem desde a primeira infância, na qual inúmeros estímulos são relacionados de inúmeras maneiras – começando por objetos, formas geométricas, até as sílabas sem sentido, as palavras escritas, dentre outros. De início, ocorre com relação a características formais, que podem ser ouvidas, cheiradas, provadas, vistas ou sentidas. A partir de inúmeros treinos, é possível responder a propriedades não formais, ou seja, arbitrárias. Por exemplo:
(01) Qual é maior?
(02) Qual é maior?
Perguntar qual é maior frente a figura 01 levará a uma resposta baseada em uma propriedade formal – tamanho –, enquanto que fazer a mesma pergunta frente a figura 02 conduzirá a uma resposta baseada em propriedades arbitrárias, treinadas por uma comunidade específica. Este é o chamado “enquadramento relacional”
[2]. O responder não arbitrário não precisa de molduras relacionais porque reside nas propriedades formais – características físicas. A arbitrariedade precisa das molduras para que a pessoa seja capaz de responder corretamente quando em um contexto particular.
Segundo a RFT, os humanos respondem arbitrariamente baseados em pistas contextuais para fazê-lo. Estas pistas especificam as relações relevantes e as funções a serem relacionadas numa moldura relacional (Gross & Fox, 2009). Não é toda relação arbitrária que é reforçada: dizer, por exemplo, que um tablet é maior que uma TV 32’, baseada em valor, aparentemente não faz sentido. A comunidade sócio-verbal só reforça certas propriedades arbitrárias de estímulo e em um contexto apropriado.
Com o tempo, uma ampla variedade de estímulos podem ser relacionados arbitrariamente, construindo um mundo complexo, de inúmeras relações arbitrárias e não-arbitrárias. Uma vez que se aprende a relacionar arbitrariamente, o processo passa a acontecer constante e despercebidamente (Bleckledge, 2003; Luciano, Gutíerrez & Páez-Blarrina, 2006).
Apesar de seus benefícios, é possível que esse processo saia do controle se as relações estabelecidas forem inadequadas, provocando um responder disfuncional. Retomando o exemplo do início deste ensaio: o discurso geral, e reforçado pela comunidade, é da comparação melhor/pior – em geral arbitrárias – ao invés de diferente. E esta ocorre de tantas formas e com tanta frequência que se torna imperceptível. Fica impossível pensar em quantos estímulos já foram alterados, sem que nunca tenhamos tido contato, baseados unicamente em relações verbais. Como Luciano (2010) coloca, “as vezes, nossa possibilidade de comparar é muito útil, e outras provoca pensamentos que não queremos” e, posso acrescentar, atitudes que não queremos – o que servirão de discussão para as próximas postagens.
[1] Lê-se A “está relacionado a” B, já que a RFT prevê vários tipos de relações, além da relação de igualdade (mais frequente). Isso se aplica às outras expressões.
[2] A metáfora de uma moldura é usada para enfatizar a ideia de que esse tipo de responder pode envolver qualquer forma de estímulo, assim como uma moldura pode conter qualquer imagem (Hayes & Fox, 2001 apud Gross & Fox, 2009).
REFERÊNCIAS
BLACKLEDGE, J. T. An Introduction to Relational Frame Theory: Basics and Applications. The Behaavior Analyst Today, vol. 3, 2003.
GROSS, A. C., FOX, E. J. Relational Frame Theory: An Overview of the Controversy. The Analysis of Verbal Behavior, nº 25, 2009.
LUCIANO, C. Condición humana y felicidad: hechos y palabras. Lección inaugural curso Universidad Almería, 2010.
LUCIANO, C., GUTIÉRREZ, O. PÁEZ-BLARRINA, M., Avances desde la Terapia de Aceptación y Compromiso (ACT). EduPsykhé, vol. 5, nº. 2, 2006.
MOREIRA, M. B., TODOROV, J. C., NANINI, L. E. G. Algumas considerações sobre o responder relacional. Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva, vol. 8, nº 2, 2006.
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