O Behavior Analyst Certification Board®, Inc. (BACB®) é uma empresa sem fins lucrativos estabelecida em 1998 para atender às necessidades de credenciamento identificadas pelos analistas do comportamento, entidades governamentais e consumidores dos serviços analítico-comportamentais. O BACB® se conforma às normas nacionais para comitês que certificam credenciais profissionais. Os procedimentos de certificação e seus conteúdos submetem-se a revisões e validações psicométricas periódicas, de acordo com pesquisas de análise da tarefa (job analysis) da profissão e com os padrões estabelecidos por especialistas em conteúdo da área. (http://www.bacb.com/index.php?page=1, tradução do presente autor).
A Certificação de Analistas do Comportamento – subsídios para uma discussão inicial
Roosevelt R. Starling
O Boletim Contexto, n. 33, da ABPMC, nos traz a notícia de que a atual diretoria está considerando o problema da certificação do analista do comportamento e que realizará um encontro no próximo mês de fevereiro, na USP, em São Paulo, para discutir o assunto. Não especifica, porém, data mais precisa ou a duração que se prevê para o evento, nem especifica a natureza do encontro (se fechada ou aberta). Um encontro realizado em São Paulo, no mês de fevereiro, estabelece uma contingência na qual a maioria dos debatedores será de colegas que residem/trabalham/estudam naquela cidade. Sendo São Paulo um pólo indiscutível da Analise do Comportamento no nosso país, isso me parece muito bem. Contudo, penso que a matéria é de interesse geral, ou deveria ser, quer por suas implicações técnicas imediatas e mediatas, quer por suas implicações políticas de curto, médio e longo prazo.
Não sei que outros mecanismos estão sendo pensados para facilitar a participação do restante da comunidade AC/BR brasileira, mas, de qualquer forma, nos ensina o conceito do entrelace das contingências de reforçamento que encaminhamentos e concepções iniciais sobre matérias complexas tomadas em grupo – sobretudo por um grupo tão expressivo e competente como por certo será o que lá se reunirá – dificilmente são reversíveis, exceto quando reconsideradas e modificadas pelo mesmo grupo que estabeleceu o marco inicial. Assim sendo, embora o citado Boletim já trate, em grandes linhas, de alguns dos problemas envolvidos num projeto de certificação, o objetivo deste pequeno trabalho é oferecer à comunidade a colaboração adicional de um dos seus membros que vem se interessando pelo tema já por mais de uma década.
Essa colaboração não se define pelo oferecimento de quaisquer respostas – mesmo porque respostas a projetos dessa monta não é tarefa da qual possa desincumbir-se uma pessoa ou mesmo um grupo de pessoas – mas sim, essencialmente, pela exposição das indagações que, exatamente pelo interesse no tema, venho acumulando ao longo desse tempo.
De fato, tenho me interessado pelo tema há algum tempo e, em 1999, em palestra proferida ao VIII Encontro da ABPMC, depois formalizada em publicação [1], já perguntava:
(…) quem é um analista do comportamento ou, ao que valha, o que ele faz que o distinga dos seus competidores? Hoje, um analista do comportamento é quem assim se autoproclamar. (…). Embora nos agrade a idéia de que ninguém possa falar em nome d’O Behaviorismo, o fato é que, numa dada comunidade, ele será selecionado ou não dependendo das contingências estabelecidas pelos behavioristas que lá atuarem. (p.5, chaves acrescentadas ao texto original).
Noutras palavras, cada um de nós, na nossa área restrita de atuação, é quem acabará por definir para o seu meio social próximo o que é e o que faz um “behaviorista” ou um “psicólogo comportamental”, como usualmente o público leigo nos denomina, ou seja, cada um de nós, através do nosso desempenho mais bem sucedido ou menos, constrói, em alguma medida, a nossa imagem pública e, com ela, as nossas maiores ou menores possibilidades de participar com sucesso da cesta de práticas psicológicas oferecidas para a seleção.
Entretanto, de maneira mais geral o público usuário dos serviços psicológicos tipicamente nos considera numa categoria mais ampla, a dos “psicólogos”. É de conhecimento e reconhecimento geral a pobreza discriminativa desta categoria, em função da enorme diversidade de teorias e práticas que nela estão contidas.
No que diz respeito mais de perto à Análise do Comportamento, o tratamento ABA para o autismo vem se disseminando entre a comunidade interessada como sendo o tratamento de eleição. Sobre essa aplicação, que também sofre dos problemas comuns à psicologia em geral, qual seja a da incerteza quanto ao treinamento e formação adequados dos seus praticantes, há alguns meses escrevi que (…) dissemina-se no Brasil que o “método” ABA é o tratamento de eleição para os transtornos invasivos do desenvolvimento e já se vê “especialistas” oferecendo tratamento e cursos, boa parte somente com o treinamento da graduação ou declarando especializações estranhas à área e atuando sem supervisão analítico-comportamental competente e experiente [2] nessa aplicação tão delicada. Parece que esses, mais agressivos ou menos bem formados, ou as duas coisas, também aprenderam algumas “técnicas” e entreviram uma “oportunidade de mercado”, lançando-se prematuramente ao seu encalço. O problema é que essa não é uma “oportunidade de mercado”, mais sim algo muito mais precioso e conseqüente: é uma oportunidade para ampliar o bem-estar de seres humanos reais ou falhar em fazê-lo e, caso isso ocorra, comprometendo e desgastando, no processo, a mais efetiva das oportunidades de tratamento que eles têm (Entrevista publicada neste link).
Foi gratificante ver essa mesma apreciação refletida no já citado boletim da ABPMC e as considerações lá apresentadas sobre o tema me levam a crer que as mesmas contingências que vem controlando minhas preocupações com o assunto sensibilizam também parcela importante dos colegas brasileiros.
Nesse panorama, ao se considerar uma certificação para o analista do comportamento, pensa-se então em estabelecer uma identidade profissional social diferenciada, tomando-se como supostos que (1) tal identificação ainda não existe ou ainda não está socialmente estabelecida, (2) que é possível e (3) que é desejável (para toda a comunidade, para parte da comunidade ou para alguém da comunidade).
Quanto a esses supostos, o primeiro se resolve de pronto: caso houvesse uma identidade profissional social estabelecida para o analista do comportamento, não se estaria considerando uma certificação redundante.
Quanto a ser possível, a resposta é positiva, pois isto já vem sendo feito há mais de uma década nos EUA, através do Behavior Analysis Certification Board, BACB®, um empreendimento privado sem fins lucrativos, conforme afirmam em seu site (http://www.bacb.com); lá, assim se apresenta o BACB:
A história desse programa de certificação é em larga medida apócrifa, de vez que não pude encontrar documentação formal dela. Tanto quanto pude apurar através de troca de e-mails em listas de discussão americanas, referências esparsas e ocasionais na literatura da área e através de conversas com colegas americanos, o BACB® herdou, por assim dizer, a proposição de um programa originalmente desenvolvido na Florida (Behavior Analysis Florida Certification Program) e, ao longo dos anos, aglutinou e unificou programas semelhantes que, a partir da experiência na Flórida, haviam se desenvolvido em vários outros estados americanos. Diz a tradição oral sobre a origem desses programas que a principal motivação foi a necessidade de pais de autistas de garantir legalmente o auxílio financeiro necessário para o tratamento AC (ABA) dos seus filhos. Precisavam exibir algum documento de credibilidade legal que provasse que a pessoa ou pessoas contratadas com dinheiro proveniente de fundos públicos teria de fato as habilidades necessárias para conduzir este tratamento.
Entretanto, estabelecer a possibilidade de uma certificação através da existência dela em outro país, não assenta a discussão da validade e da qualidade desta certificação e nem enfrenta os problemas referentes às diferenças legais e culturais entre dois países. Igualmente, a identidade profissional social que uma certificação pode conferir não se traduz diretamente por uma identidade profissional alicerçada numa práxis compartilhada e a possível eficácia social desta identificação não se estabelece pela simples certificação, problemas que considerarei mais abaixo.
Quanto à desejabilidade da certificação social de uma identidade profissional, esta tem sido uma resposta selecionada na nossa cultura, através das inúmeras associações e sociedades profissionais já estabelecidas e que certificam os seus membros, principalmente na área médica (Sociedade Brasileira de Cardiologia, Sociedade Brasileira de Oftalmologia, etc.). Dado ao estado caótico da psicologia nesta sua fase inicial é razoável supor que esta desejabilidade, para o analista do comportamento, possa ser tacitamente assumida. Para aqueles que se submetem ao crivo da comunidade verbal analítico-comportamental, publicando seus trabalhos ou apresentando-os em congressos, existe algum controle exercido pela comunidade AC sobre essa declaração de afiliação, ainda que incidental. Para aqueles que não o fazem, o controle é de muito pouco a nenhum.
Na minha área de atuação mais imediata já tomei conhecimento da existência de vários “analistas do comportamento” ou “terapeutas comportamentais” que nunca vi nos nossos encontros, dos quais não pude encontrar trabalho algum publicado e, assuntando daqui e dali, cujos professores desconheço, o que é quase uma impossibilidade, dado ao nosso número ainda pequeno. Fiquei sob a impressão de que essas pessoas leram em algum livro ou artigo algumas “técnicas comportamentais” e passaram a aplicá-las, tirando daí, presumo, a identidade profissional que declaram.
Contudo, e mais uma vez, estabelecer a desejabilidade de um projeto não corresponde a estabelecer a sua factibilidade e, sobretudo, o seu modus operandi, assunto sobre o qual me deterei mais abaixo.
Seja como for e tanto quanto estou informado, há também que se perguntar por que somente nós, os analistas do comportamento, estamos considerando uma certificação. Historicamente, a psicanálise já manteve, no Brasil, uma forma de certificação, talvez mais bem entendida como uma forma de formação, que se chamava “análise didática”, uma herança direta das práticas iniciais da psicanálise na Europa. O candidato à psicanalista, para ser plenamente considerado como tal, precisaria submeter-se ele mesmo a uma análise com um analista sênior e se considerava que este processo o habilitaria a replicar esta prática com seus futuros clientes. Tanto quanto sei, desde o início este processo esteve restrito a uns poucos grupos, ou seja, não era um processo de formação/certificação de adoção ampla e, legalmente, nunca teve qualquer respaldo. Parece que este processo, enquanto existiu, mantinha-se por reforçamento social: o status de ser reconhecido pelo grupo tal ou qual como um profissional que havia cumprido na plenitude o processo formativo que aqueles grupos preconizavam. Não tenho notícias da continuidade desse processo.
De imediato, uma pergunta pode ser feita as respeito dessa iniciativa da ABPMC: porque agora? A temática não é nova na área. Como já dito acima, nos EUA a certificação do analista do comportamento já é praticada por mais de uma década [3] e mesmo aqui, no Brasil, o tema já tem sido objeto de consideração também por mais de uma década. Perguntar “porque agora?” é perguntar que nova contingência ou contingências entraram em ação agora, ou se fizeram presentes agora.
Outra questão que a própria idéia de certificação levanta é a questão da padronização. Só se pode “certificar”, nesse contexto, um padrão e estabelecer um padrão implica reduzir variação. A questão de quem (e como) estabelecerá o padrão a ser certificado nos remete inevitavelmente à dimensão política implicada nesta proposição.
Penso que não se pretenderá valor legal para essa certificação. No Brasil, somente uma entidade parece ter obtido a inserção da sua certificação na ordem jurídica vigente: a OAB. O certificado da OAB, que não é exatamente um certificado, mas sim o direito de inscrição do bacharel em direito como afiliado da OAB, o que lhe confere o direito de se intitular advogado e é um requisito legal necessário para o exercício da advocacia junto aos tribunais e para os demais atos jurídicos de efeito pleno, sendo adquirido através da aprovação numa prova específica.
O CFM (Conselho Federal de Medicina), cuja natureza jurídica é a de uma autarquia, sanciona ou reconhece os títulos de especialistas adquiridos através de critérios estabelecidos à discrição das sociedades profissionais específicas (p. ex.: Sociedade Brasileira de Cardiologia), que não são divisões formais do próprio CFM/CRM, mas sim associações profissionais independentes, como a ABPMC ou a SBTC. Entretanto, um simples graduado em medicina pode legalmente exercer qualquer ato médico, incluindo cirurgias as mais complexas, sem a necessidade dessa titulação ou mesmo de residência médica na especialidade, bastando para tal o diploma de graduação e o registro no CRM do seu estado. Quanto à residência médica, esta costuma ser uma exigência das sociedades médicas para a concessão do título de especialista e o MEC reconhece para algumas delas o estatuto de um curso de pós-graduação, no nível de especialista, mas não para todas elas, conforme se adéqüem ou não às exigências daquele ministério [4].
Dentre nós, o CFP (Conselho Federal de Psicologia) instituiu uma certificação ou titulação de especialista, mas que somente tem valor como referência, de vez que um psicólogo que não tenha o título de especialista concedido pelo CFP (ou CRP) não está, legalmente, impedido de exercer aquela especialidade ou qualquer outra especialidade (clínica, escolar, etc.). Assim, tanto para o médico, quanto para o psicólogo, o que o título de especialista dá é somente o direito de identificar-se publicamente como tal, por ter sido admitido/aprovado segundo os critérios daquela associação profissional, no caso do médico, ou do CRP/CFP, no caso do psicólogo. Em ambos os casos, esse título não equivale, para efeitos legais, ao título de especialista concedido pelo MEC após certificação emitida por centro de ensino por ele credenciado.
Existem também pelos menos duas outras dimensões relevantes envolvidas nessa proposição: as dimensões técnica e a logística, que também receberão atenção neste trabalho. Por outro lado, essas diversas dimensões (políticas, técnicas e logísticas) estão entranhadas de tal forma que separá-las, para fins de análise, demandaria um tempo maior do que o disponível para que este trabalho tenha alguma chance de atingir o seu objetivo, qual seja o de subsidiar as discussões que se darão já neste mês. Por essa razão, não se fará aqui esse esforço, reservando-o para a atenção da nossa comunidade que é quem, ao fim e ao cabo, deverá se pronunciar sobre a questão.
Através de quais procedimentos se poderia assegurar à sociedade que um dado profissional possui as habilidades necessárias para ser considerado um analista do comportamento?
Ainda sem enfrentar a questão de quais seriam essas habilidades, penso haver poucas dúvidas que se considera insuficiente a mera graduação em psicologia, com a necessária passagem por disciplinas mais ou menos relacionadas à área, principalmente a disciplina chamada no Brasil de AEC ou Análise Experimental do Comportamento, comum nos currículos acadêmicos da graduação em psicologia e por vezes a única exposição de um acadêmico de psicologia à cultura analítico-comportamental. Primeiro, porque não existe um esforço – na verdade, tanto quanto sei, não existe nem mesmo um estudo sistematizado extensivo – da comunidade analítico-comportamental brasileira para estabelecer alguns parâmetros para o conteúdo dessas disciplinas ainda que como simples referência, que mais não pudesse ser. Em algumas das faculdades de psicologia que conheci, a AEC era ministrada por professores que declaravam orientar-se por referências teóricas diferentes da AC/BR [5].
Assim, impossibilitada de ser resolvida através da simples graduação em psicologia, o problema da identidade profissional do analista do comportamento seria resolvida pela certificação ou titulação correspondente a um estudo pós-graduado na área?
A simples idéia que ora se considera, a de uma certificação extra-academia ou centros de formação, ainda que credenciados pelo MEC ou pelo CFP, indica que não.
Quanto às especializações, até uns cinco anos ou pouco mais anos atrás existiam bem poucas, todas elas sob a responsabilidade de membros seniores da nossa comunidade e, até então, devido à exposição a membros fluentes da nossa cultura e com repertórios verbais finamente modelados por anos de exposição a uma audiência com reconhecido nível de exigência, poder-se-ia dizer que um egresso de uma dessas especializações poderia ser identificado na comunidade analítico-comportamental intramuros como um analista do comportamento, no sentido de que apresentaria, quando estimulado, o repertório intraverbal desejado e provavelmente produziria os tatos adequados utilizando a linguagem AC/BR (as categorias de análise, os conceitos), pelo menos na situação de treinamento [6].
Todavia, devido ao que parece ser um interesse crescente na área, os últimos cinco e tantos anos viram florescer uma plêiade de cursos de especialização, alguns deles agora já nem sempre sob a responsabilidade ou contando com a participação continuada ou, ainda, com a supervisão de membros experientes da comunidade. No que diz respeito à aplicação clínica, a favorecida nessas especializações, esse problema pode ser mais agudo, de vez que o conhecimento técnico e a competência teórica não podem suprir as habilidades práticas cruciais nessa prestação de serviços, aquilo que Catania (1969) denomina desempenhos especializados [7], um repertório que somente o tempo de exposição intensa e continuada ao sistema reforçador pode instalar. Além disso, inexistindo uma base curricular consensual, inexistindo métodos de ensino e de avaliação da aprendizagem igualmente consensuais e quaisquer mecanismos externos de supervisão e avaliação da aprendizagem que se supõe deveria ocorrer nessas especializações, o que de certo se pode afirmar sob os egressos delas?
Já considerando os cursos formais de educação pós-graduada, tais como os mestrados e doutorados, é de se perguntar, por exemplo, se um doutor na área, cujo estudo foi desenvolvido com pombos e focou uma temática tal como momento comportamental ou comportamento de escolha, estaria automaticamente qualificado/a ou certificado/a, pelo título acadêmico obtido, como um analista do comportamento habilitado a conduzir programas terapêuticos ou intervenções em organizações. Certamente ele/a poderia possuir e demonstrar tais habilidades, mas dificilmente se poderia atribuí-las aos seus estudos pós-graduados e à sua titulação [8].
Tudo indica então que os processos formais de educação, tanto da educação graduada quanto da pós-graduada, quando consideradas no seu conjunto, não podem assegurar, por sua certificação própria, que o praticante nelas formado apresente de fato o repertório necessário para que a sua ação profissional estabeleça, socialmente, uma identidade profissional inequívoca, ou perto disso. Há, portanto, razões para se pensar numa certificação pela comunidade verbal analítico-comportamental – que encontra sua melhor representação na ABPMC – que disponha meios mais precisos para aferir e sancionar socialmente essa identidade.
Voltamos assim à discussão da oportunidade de uma certificação da comunidade verbal estrita, extra-academia e cursos profissionalizantes. Para fazê-lo, é de bom-senso retomar o exame das experiências já realizadas e procurar aprender com elas. Aqui, estarei limitado ao exame do que sei da experiência norte-americana, que é a que tenho mais extensivamente acompanhado e estudado.
Nos EUA, o BACB® avalia a proficiência do candidato ao certificado de Analista do Comportamento através do desempenho do candidato numa prova tipo lápis e papel, no qual o candidato deverá demonstrar fluência verbal nos temas constantes das Task Lists elaboradas por aquela empresa, cujos conteúdos podem ser vistos no já citado site daquela organização [9]. Noutras palavras, essa prova, tal como é atualmente conduzida, só pode avaliar o repertório intraverbal do candidato quanto aos conceitos e procedimentos definidos por aquela empresa como caracterizando o repertório intraverbal adequado para um analista do comportamento. Não pode avaliar o seu desempenho na produção de tatos de acordo com esse mesmo quadro conceitual e, menos ainda, é claro, seu desempenho num contexto profissional real.
Na primeira quinzena do mês de janeiro do corrente ano, portanto poucas semanas atrás, a comunidade AC/BR norte-americana foi apresentada a uma nova empresa que passou a oferecer também uma certificação ao analista do comportamento, a World Center for Behavior Analysis (http://baojournal.com/WCBA/WCBA.html), uma nova divisão da organização ou empresa Behavior Analyst Online, BAO (www.baojournal.com). Essa certificação é em Terapia Comportamental (Behavior Therapy), curiosamente sem o qualificador “analítico”. Diferentemente do BACB® com sua lista de desempenhos, a WCBA pretende aferir o desempenho do candidato ao seu certificado através de uma prova, também tipo lápis e papel, mas montada como um teste com propriedades estatísticas (tipo testes psicométricos). No site do WCBA pode-se ver elencados os temas nos quais o candidato precisará demonstrar domínio.
O anúncio desse novo certificado deflagrou uma intensa discussão na comunidade. Muitos questionaram a oportunidade e a necessidade de um novo certificado na área, argumentando que haveria o risco de diminuir, ao invés de aumentar, o asseguramento social oferecido por uma certificação na análise do comportamento. Como um legislador, ou juiz, ou empregador, ou, ainda, usuário de serviços, poderia distinguir entre o profissional certificado por uma ou por outra empresa? Qual deles deveria contratar/ouvir? Qual deles seria “mais” analista do comportamento? O questionamento é pertinente, pois embora o WCBA esclareça que sua ênfase é na aplicação clínica, as Task Lists do BACB® também cobrem esse conteúdo específico e o elenco das habilidades que serão avaliadas pelo teste do WCBA também compreendem os temas e conceitos centrais avaliados pelo BACB®.
Numa discussão paralela, questionava-se a validade de uma prova construída com propriedades estatísticas na avaliação do conteúdo teórico (intraverbal) a ser apresentado por um candidato à certificação de analista do comportamento de vez que provas assim construídas tem seu foco na validade discriminativa do teste, o que leva a itens de teste de domínio geral do grupo-teste (tal como, por exemplo, o conceito de reforçamento positivo) e os de relativo desconhecimento (como, por exemplo, o conceito de momento comportamental) a serem, ambos, eliminados dos itens de teste. Dessa forma, um candidato poderia se qualificar como analista do comportamento sem dominar o conceito de reforçamento positivo, por exemplo.
No decorrer dessa discussão, soube-se então que o Cambridge Center for Behavioral Studies, CCBS (http://www.behavior.org/) prepara-se também para lançar no mercado, digamos, ainda uma terceira e uma quarta certificação para o analista do comportamento, uma em tratamento comportamental (Behavioral Treatment, também sem o “analítico”) e a outra em educação, o qual já estaria sendo desenvolvido há alguns anos. Como diferencial, anuncia-se que o exame para os candidatos a essas certificações incluirá também avaliação do repertório verbal especializado do candidato através da exposição do mesmo a vídeos de situações estimuladoras para as quais o candidato deverá demonstrar fluência na produção dos tatos adequados. O anúncio do CCBS não detalha a logística de uma prova dessa natureza e também (ainda) não apresenta um elenco dos temas cujo domínio será objeto de avaliação.
No bojo dessa discussão, na última semana de janeiro do corrente ano mais um anúncio de certificação ocorreu, essa pelo Institute for Behavioral Studies at Endicott College, voltada para paraprofissionais e intitulada Certified Applied Behavior Analysis – Technician (CABA-Tech®), a qual, aparentemente, será conferida ao paraprofissional que cursar (e, de alguma forma for aprovado, presumo) um programa de educação especial. A base temática para esse certificado é a Quality Behavioral Competencies®, desenvolvida pela Quality Behavioral Solutions (Quality Behavioral Solutions (QBS, Inc.) que, segundo o anúncio, é baseada no sistema instrucional desenvolvido por Fred S. Keller (1899-1996), o PSI.
O contexto acima descrito nos EUA pode ser ilustrativo dos problemas inerentes a um processo de certificação e também de problemas potenciais que podem ser deflagrados por esse processo.
A se aceitar a discussão acima sobre a insuficiência dos mecanismos formais de certificação para o analista do comportamento (graduação e estudos pós-graduados), a questão de qual instituição ou organização poderia então chamar a si tal encargo parece ficar limitada à questão de se a ABPMC o faria ou se empresas com ou sem fins lucrativos seriam montadas para essa finalidade [10].
Junto a isso, interpõe-se a questão da abrangência e do reconhecimento social da instituição/organização que expedirá a certificação. Uma empresa/organização que viesse a se constituir para esse fim precisaria, em primeiro lugar, estabelecer sua representatividade e sua confiabilidade junto ao publico externo à nossa comunidade, pois para conferir uma identidade profissional social ao analista do comportamento por ela certificado é preciso, em primeiro lugar, que a agência certificadora tenha já, ela mesma, adquirido tal identidade. Essa tarefa é custosa, tanto em tempo quanto em recursos financeiros. Mesmo a ABPMC, nossa menina dos olhos, precisaria conduzir um programa caro e demorado de divulgação social (de marketing institucional, para usar o termo comumente utilizado) a fim de adquirir essa identidade, de vez que ela é virtualmente desconhecida do público em geral, ou seja, da sociedade extramuros, digamos, e essa é a sociedade junto à qual a certificação teria sentido pleno; não faria muito sentido, penso eu, nos certificarmos para nós mesmos. Um trabalho como esse, para ter os resultados pretendidos, não pode ser amador e empresas ou profissionais dessa área precisariam ser contratados por um prazo relativamente longo. A ABPMC teria os recursos logísticos e financeiros para isso? Poderia obtê-los?
Resolvida a questão posta acima, haveria de se conduzir o problema político da seleção dos temas para uma prova de certificação, que implica, de fato, numa padronização do que se entenderá como o comportamento verbal e as habilidades que identificam um analista do comportamento. Noutras palavras, estará se condicionando os rumos de longo prazo que tomará a cultura analítico-comportamental no nosso país.
Interesses os mais diversos, tanto pessoais quanto de grupos, serão afetados por esse processo, com repercussões na ordenação política da nossa comunidade e nos interesses financeiros atrelados a essa padronização. Uma discussão ampla e aberta de quem (e como) conduzirá essa padronização deveria, a meu ver, ocupar um tempo considerável nesse projeto.
Para nós, da comunidade AC/BR brasileira, essa discussão provavelmente será ainda mais delicada do que seria noutra comunidade verbal como a dos psicanalistas, por exemplo, porque temos uma particularidade histórica: existe um hiato etário na nossa comunidade. Praticamente, não temos membros de idade intermediária entre o grupo fundador e/ou o grupo histórico, se assim podemos chamá-lo, e a massa de jovens que se afiliou à nossa cultura nos últimos 15 e tantos anos e que hoje já completou sua formação acadêmica pós-graduada ou está em vias de fazê-lo, mas mal passaram dos trinta anos de idade. Sinais da inquietação que essa contingência governa já podem ser percebidos, por exemplo, no questionamento cada vez mais público da ordenação política da ABPMC e um empreendimento como esse que se contempla e que tem desdobramentos de longo prazo, precisará ter em conta esse fato.
Há ainda as questões técnicas envolvidas nesse projeto. À luz da experiência norte-americana, que tipo de verificação – prova ou teste – deveria ser montada de forma a assegurar ao certificador – e lhe permitir assim assegurar à sociedade extramuros – que um dado candidato qualificou-se para essa identificação profissional? O custo e os problemas logísticos de uma prova tipo papel e lápis (ainda que o papel e o lápis possam ser eletrônicos) são consideráveis. Pessoas precisariam ser remuneradas para trabalhar nas várias etapas desse processo. O valor que se cobraria por esse certificado precisaria ser criteriosamente calculado para que fosse simultaneamente acessível aos interessados e para que o processo pudesse ser mantido continuadamente.
Por outro lado, provas tipo papel e lápis somente poderão avaliar o repertório intraverbal de um dado candidato. Pode-se certificar a qualidade dos futuros serviços a serem prestados com base na avaliação desse repertório somente? A logística envolvida numa proposta como a do CCBS, como acima descrita na sua intenção, é ainda mais complexa e mais cara. Teríamos os recursos para custear o pessoal e os equipamentos necessários para isso? Teríamos um fluxo continuado de interessados em adquirir a certificação que pudesse manter esses custos?
São essas as principais indagações que tem me ocupado ao longo desses anos. Acredito que obter respostas claras, minimamente consensuais e satisfatórias para as indagações acima propostas e para outras tantas, aqui não consideradas ou não percebidas, deveria constituir o objetivo da fase inicial da discussão dessa proposição. Assim, me parece que a primeira e principal tarefa desse projeto seria discutir e estabelecer os mecanismos através dos quais se pudessem mobilizar e assegurar a participação plena de todos os membros da nossa comunidade que desejarem se manifestar sobre o tema.
[1] Starling, R.R. (2000). Behaviorismo Radical: uma [mal amada] matriz conceitual. Em: Sobre Comportamento e Cognição (3-12). V. 6. Santo André: SET.
[2] O que os colegas americanos têm definido como uma supervisão analítico-comportamental competente e experiente no tratamento desse grupo é que o supervisor possua no mínimo um mestrado, idealmente um doutorado, na área da AC, e pelo menos cinco anos de experiência direta e continuada no tratamento desta população, essa experiência, por sua vez, também adquirida sob supervisão.
[3] As primeiras tentativas mais formalizadas e sistematizadas datam do fim dos anos 80 e início dos anos 90.
[4] Informações obtidas por telefone à 24.01.11 junto ao CFM – Setor Jurídico.
[5] Evidentemente, mesmo para aquelas faculdades nas quais o professor da AEC é um praticante da nossa cultura, haveria que se considerar também o desempenho do aluno nessas disciplinas, o que implica considerar e avaliar os meios através dos quais esse desempenho foi aferido.
[6] Em situação de treinamento, pois ainda não há maneira de saber o que de fato fazem terapeutas que se denominam analítico-comportamentais na sua prática clínica cotidiana, ou nas suas intervenções na escola ou nas organizações, e nem se sabe a medida na qual um repertório verbal bem instalado controlará o seu comportamento na contingência.
[7] “Essa distinção [entre comportamentos governados verbalmente e modelados por contingências] é compatível com a forma com que tratamos anteriormente o comportamento governado verbalmente, se estendermos nossa taxonomia para incluir três classes de comportamento habilidoso: o comportamento modelado por contingências, que nunca dependeu de antecedentes verbais e que corresponde aos vários tipos de comportamento modelado por contingências, tratados rotineiramente pela análise do comportamento (como no comportamento não-humano); o comportamento governado verbalmente, em que os antecedentes verbais superam os efeitos das contingências não verbais, e, finalmente, os desempenhos especializados, em que o contato contínuo com o ambiente atenua o controle por antecedentes verbais e permite ao comportamento tornar-se sensível a mudanças sutis nas contingências (o que poderia ser considerado como um segundo e diferente tipo de comportamento modelado por contingências e que ainda não tem sido explorado em detalhes.”. (Catania, A. C. (1999). Aprendizagem. Porto Alegre: Artes Médicas. p. 365, chaves e itálicos do presente autor)
[8] Donde já se vê que certificar alguém simplesmente com o título geral de “analista do comportamento” provavelmente será insuficiente para lhe conferir uma identidade profissional social inequívoca, no sentido de assegurar à sociedade as suas reais habilitações.
[9] Em português, uma idéia dessas Task Lists pode ser obtida no capítulo de minha autoria, publicado na coletânea Sobre Comportamento e Cognição: Starling, R. R. (2006). Lista de Desempenhos: um possível primeiro passo para uma sistematização do ensino da Análise do Comportamento na graduação In: Sobre Comportamento e Cognição (382-400), v.18. Santo André: Esetec.
[10] O Boletim Contexto n. 33 contempla a hipótese de que instituições formais de organização da psicologia, como o CFP/CRP, por exemplo, possam ser instadas a fornecer essa certificação. É sempre bom esgotar todas as possibilidades que impliquem no menor esforço político-institucional por socorrer-se de organizações já estabelecidas. No entanto, a possibilidade do interesse real da montagem de um sistema de certificação para o analista do comportamento por parte essas instituições é, historicamente, praticamente nula. Somos minoria da minoria no universo psi brasileiro. Além do mais, limitar-se-á a certificação aos psicólogos? O CFP não teria base legal para certificar um psiquiatra nessa habilitação, acredito.