Análise do Comportamento e Psicanálise no Tratamento de Pessoas com Transtornos do Espectro do Autismo: Diálogos Possíveis (Caso Clínico)
Autor: Marcus Vinícius Fonseca de Garcia
Psicólogo Clínico – marcusvfg@yahoo.com.br
A pluralidade de contribuições no tratamento de pessoas do espectro do autismo pode ser importante, contudo, algumas incompatibilidades inevitavelmente ocorrem quando essas pluralidades dialogam, o que não é ruim. É justamente assim que as coisas avançam em se tratando de ciência. Com essas trocas de informação, variações e seleções entre o que realmente representa contribuição e o que se torna obsoleto ao longo dos anos ocorrem naturalmente. São processos que ocorrem não apenas em psicologia, mas também em diversas outras áreas.
Como exemplo de incompatibilidade, cito um caso recente em que a mãe de um menino autista de sete anos buscou tratamento psicológico de abordagem analítico-comportamental após encaminhamento do psiquiatra da criança. A mãe, psicóloga e afeita à psicanálise, já havia buscado tratamento psicanalítico para o filho, e este, desde os quatro anos, vinha tendo atendimentos semanais de orientação psicanalítica. Após consultar a psicanalista sobre a busca de um tratamento concomitante ao seu, mas de orientação analítico-comportamental, a mãe obteve seu consentimento, desde que houvesse diálogo entre os profissionais. Os pais então compareceram à instituição em que a criança freqüentava acompanhamento em sala-recurso e relataram o desejo de iniciar tratamento psicológico analítico-comportamental, porém sem interromper o tratamento psicanalítico em andamento. O psicólogo analista do comportamento, por sua vez, consentiu que fosse iniciado o tratamento, com a garantia dos pais de que havia concordância da profissional psicanalista.
A criança, já havia alguns meses, vinha exibindo freqüentemente comportamentos considerados inapropriados no ambiente escolar, como quebrar vidros das janelas da sala de aula, virar a mesa da professora, agredir colegas, quebrar e rasgar materiais, entre outros. O psicólogo, após ouvir relatos dos pais e interagir com a criança em consultório, iniciou a elaboração de análises funcionais dos comportamentos-problema. Fez visitas à escola da criança, onde conversou com sua professora e com a coordenadora pedagógica e pôde observar em ambiente natural a exibição contextualizada de comportamentos, antecedentes e conseqüências.
Após análises funcionais, foi formulada a hipótese de que alguns comportamentos estavam sendo mantidos por fugas, ou seja, eram mantidos por reforçamento negativo. Por exemplo, nas ocasiões em que quebrou janelas, o pessoal da escola imediatamente telefonou aos pais para que buscassem a criança, o que rapidamente fizeram. Isso ocorreu também como conseqüência imediata nas ocasiões em que a criança repetidamente virou a mesa da professora. Após rasgar repetidamente materiais de atividades, era retirado da sala em que estava com os colegas e recebia atenção individualizada da pedagoga em outra sala. As conseqüências dos comportamentos inapropriados estavam aumentando a probabilidade de que a criança voltasse a emiti-los, embora isso não fosse ainda claro para as educadoras e para os pais.
A criança, ao exibir comportamentos inapropriados, era fonte de estimulação aversiva para as educadoras. Isso, inclusive, parece ser o motivo do uso do adjetivo “inapropriado” para se referir a esses comportamentos. Qualquer comportamento das educadoras que tivesse como conseqüência a eliminação, mesmo que momentânea, dessa fonte de aversivos era reforçada. Ou seja, os pais reforçavam os telefonemas das educadoras ao imediatamente buscarem o filho sempre que estas telefonassem e dissessem “hoje ele está muito nervoso”. As educadoras, por sua vez, reforçavam comportamentos inapropriados da criança ao permitirem, como conseqüências, fugas do ambiente escolar ou da sala de aula.
O psicólogo deu orientações às educadoras para que não permitissem que conseqüências de fuga sucedessem a exibição pela criança de comportamentos inapropriados. As educadoras foram alertadas de que essa medida seria provavelmente acompanhada por um aumento inicial das respostas que se pretendiam diminuir, chegando-se a um ápice e posterior diminuição efetiva, caracterizando, assim, um processo de extinção operante. Foram orientadas também a combinar com a criança períodos de descanso ao longo do dia, que seriam sempre conseqüentes à exibição de comportamentos socialmente aceitáveis ou colaborativos, como, por exemplo, um pedido verbal – ”quero descansar” ou a conclusão de atividades. Foram também orientadas a identificar e utilizar nas situações de aprendizagem materiais temáticos do interesse da criança. Nessa tarefa, foram auxiliadas pelo psicólogo, que obteve informações com os pais a respeito desses materiais.
As educadoras, no entanto, poucos dias após essas orientações, disseram que a psicanalista da criança havia dito exatamente o contrário. Que era para que a deixassem mais livre e não exigissem muito dela em atividades.
Psicólogo e psicanalista se encontraram e conversaram sobre o caso. Ela explicou o embasamento de sua proposta de orientação à escola. Disse que não havia o lugar do Outro para a criança e que, se fosse demandado menos dele, ele buscaria contato com o Outro e se estabeleceriam assim relações simbólicas fundamentais. O psicólogo, por sua vez, explicou também o embasamento das orientações que havia dado à escola, ressaltando que, caso perseverassem situações de reforço contingentes a comportamentos inapropriados, alguns destes agressivos, a criança provavelmente se tornaria um adolescente muito difícil de se lidar, uma vez que bloquear ou redirecionar respostas agressivas de uma criança de sete anos é menos problemático do que fazê-lo com um adolescente ou um adulto.
Ao fim do diálogo nesse dia, após quase duas horas de trocas incessantes de informações, houve um acordo de que seriam seguidas as orientações embasadas nas análises funcionais realizadas pelo psicólogo analista do comportamento. Nesse diálogo, a cordialidade foi fundamental para que se pudessem identificar as prioridades no caso.
Certamente é possível o diálogo entre psicanalistas e analistas do comportamento, embora, muitas vezes, incompatibilidades de planos, procedimentos e propostas de intervenção tornem necessário que se discutam possibilidades e que se façam escolhas. Em um plano histórico de evolução cultural, diversas e difusas seleções resultantes de escolhas entre variadas possibilidades clínicas apontarão os caminhos a serem trilhados por profissionais na elaboração, utilização adequada e aprimoramento de intervenções e procedimentos que se mostrem coerentemente eficazes no tratamento psicológico oferecido a pessoas com transtornos do espectro do autismo e seus familiares.