Podemos rezar pela vítima do cólera, ou podemos lhe dar quinhentos miligramas de tetraciclina a cada doze horas. […] Podemos tentar a quase inútil terapia psicanalítica pela fala com o paciente esquizofrênico, ou podemos lhe dar trezentos a quinhentos miligramas de clazepina. Os tratamentos científicos são centenas ou milhares de vezes mais eficazes do que os alternativos. Renunciar à ciência significa abandonar muito mais do que o ar-condicionado, o toca-disco CD, os secadores de cabelo e os carros velozes (Sagan, 1996/2006, p. 25-26).
Podemos, enquanto psicólogos, lutar pela promoção do método científico em Psicologia, ou podemos, junto à Psicanálise, ser colocados no barco dos campos não-científicos e, portanto, pouco eficazes. Acredito em uma Psicologia vista não como um “recurso alternativo”, mas como um fazer científico complementar e independente cujo objeto de estudo é o comportamento.
Mas como é possível uma ciência do comportamento? Baum (2006):
Na ideia de que é possível uma ciência do comportamento está implícito que o comportamento, como qualquer objeto de estudo científico, é ordenado, pode ser explicado, pode ser previsto desde que se tenham os dados necessários e pode ser controlado desde que se tenham os meios necessários. Chama-se a isso determinismo, a noção de que o comportamento é determinado unicamente pela hereditariedade e o ambiente (p. 25, destaque meu).
Se assumimos que o comportamento é ordenado e que se apresenta com regularidade, não o temos como aleatório. Por exemplo, a regularidade da forma como nos interagimos com as pessoas permite falarmos de “traços de personalidade”. Se agíssemos tão distintamente a cada vez que encontrássemos alguém, seríamos tão imprevisíveis, e mesmo irreconhecíveis, que não nos caberia adjetivos como “afável”, “ríspido”, “introvertido” ou “responsável” — embora nos pudesse caber “imprevisível”. Com efeito, o padrão e a regularidade com que nos comportamos permite que as pessoas, mesmo leigas em Psicologia, categorize-nos em adjetivos (“extrovertido”, “sociável” mas “ansioso”, p. ex.), prevejam nossas ações em algum nível e possam deliberadamente nos influenciar (p. ex., convencendo-nos a ir ao cinema ou acalmando-nos em circunstâncias adversas). Pode-se dizer que a folk psychology (ou a Psicologia Popular) se fundamenta em uma ciência rudimentar.
Mas a ciência comportamental vai além. Se não aceitamos a aleatoriedade, logo podemos descobrir em que circunstâncias um tipo de comportamento ocorre — se é ao ter suas ideias objetadas, se é ao esperar pela ligação do(a) namorado(a), se é ao se submeter a uma entrevista de emprego ou se é ao ser abordado por um estranho. Podemos desvendar suas origens, bem como compreender as circunstâncias que o fazem persistir ao longo dos anos. Podemos, ainda, estimar a frequência, a intensidade e a duração desse comportamento, e a partir dessas medidas podemos arquitetar e aplicar intervenções e posteriormente avaliá-las. A propósito, boas intervenções requerem boas
análises do comportamento-alvo.
Termos e conceitos
Há tanto várias formas de se analisar um comportamento como várias formas de se intervir sobre ele. Skinner sustentou que o caminho para uma ciência do comportamento está no desenvolvimento de termos e conceitos que permitem explicações verdadeiramente científicas (Baum, 2006). Baseado em Mach (1960), Baum (2006) assevera que
a ciência cria conceitos que permitem a uma pessoa dizer à outra o que se relaciona com o que no mundo, e o que esperar se determinado evento acontecer — conceitos que permitem a previsão com base na experiência passada com esses eventos. Quando os cientistas criam termos como oxigênio, satélite e gene, cada palavra contém uma história completa de expectativas e previsões. Esses conceitos nos permitem falar economicamente dessas expectativas e previsões, sem necessidade de repetidamente darmos longas explicações (p. 39).
O termo “gene” — e derivados — costuma ser prático no contexto de uma explicação sobre semelhanças comportamentais — ou de personalidade — de gêmeos idênticos. Se dissermos “É genético!”, queremos dizer que suas disposições comportamentais são em grande medida herdadas e que, é claro, esses irmãos carregam os mesmos genes. Ademais, esse termo permite aos geneticistas dizer de e manipular, com base em expectativas preconcebidas, certos segmentos do
ADN. Temos, a partir disso, que o termo “gene” é econômico e, por facilitar a prática científica,
operacionalizável.
Nesse sentido, psicanalistas inventaram termos como libido, inconsciente e repressão; cognitivistas lançam mão de termos como desejo, crenças e esquemas; analistas do comportamento, reforço, extinção e operações estabelecedoras; humanistas, congruência, aceitação incondicional e empatia. Acontece que, quando se trata do fazer científico, certos termos e conceitos são mais ou menos aplicáveis, operacionalizáveis. Em geral, termos “bons” referem-se àqueles que são facilmente observados e/ou mensurados, bem como que diminuem a confusão ou a ambiguidade de uma hipótese ou modelo qualquer. Termos psicanalistas não satisfazem nenhum desses critérios. Termos behavioristas podem ser, em princípio, de difícil compreensão. Contudo, estes superam, por exemplo, os termos humanistas — que são elegantemente compreensíveis — no quesito “operacionalidade científica”. Talvez possamos dizer o mesmo dos termos cognitivistas.
Para o idoso, o declínio da memória declarativa pode anunciar o início de um acometimento demencial. Para qualquer pessoa, a frequência de certas classes de resposta em contextos específicos pode dizer das variáveis que o controlam, das funções que assumem esses comportamentos e da privação de uma pessoa em relação ao produto dessas funções. Memória declarativa, da Psicologia Cognitiva, e classe comportamental, contexto, função e privação, da Análise do Comportamento, são termos que resumem uma cadeia de expectativas — são atalhos conceituais cujas observações ou medidas permitem que prevejamos e controlemos certos fenômenos. Caso a hipótese seja confirmada, o idoso com doença de Alzheimer poderá se submeter aos tratamentos farmacológicos e de reabilitação disponíveis. Para a reabilitação, esquemas de reforçamento poderão ser utilizados para que esse idoso aprenda a utilizar dispositivos mnemônicos compensatórios e/ou a fortalecer respostas que tendem a se extinguir em razão da progressão dessa doença. Como resultado, termos econômicos e cientificamente operacionalizáveis facilitam o trabalho do profissional e permitem que este ofereça o melhor serviço para seu cliente — e esse é um ponto em que ciência rima com ética.
Métodos e evidências
Voltemos ao caso dos gêmeos idênticos. Contrapondo a hipótese da genética, poderíamos dizer que aquelas semelhanças se dão pela ordem dos planetas na ocasião do nascimento desses irmãos, sendo a explicação astrológica, portanto, uma alternativa à primeira. Contudo, os signos ou quaisquer descrições astrais meticulosas não explicam por que gêmeos idênticos são, no âmbito comportamental, mais semelhantes do que gêmeos fraternos (que não compartilham 100, mas apenas 50% dos seus genes). Ao fornecer termos econômicos (Áries, Libra e Capricórnio, p. ex.) baseados na ordem dos planetas e relacionados a certas expectativas, a Astrologia, em se tratando de previsão, falha ao ser submetida a observações sistemáticas.
Sagan (1996/2006), a respeito da ciência e da pseudociência, ressalta:
A pseudociência difere da ciência errônea. A ciência prospera com seus erros, eliminando-os um a um. Conclusões falsas são tiradas todo o tempo, mas elas constituem tentativas. As hipóteses são formuladas de modo a poderem ser refutadas. Uma sequência de hipóteses alternativas é confrontada com os experimentos e a observação. […] Alguns sentimentos de propriedade individual são certamente ofendidos quando uma hipótese científica não é aprovada, mas essas refutações são reconhecidas como centrais para o empreendimento científico. […] A pseudociência é exatamente o oposto. As hipóteses são formuladas de modo a se tornar invulneráveis a qualquer experimento que ofereça uma perspectiva de refutação, para que em princípio não possam ser invalidadas. Os profissionais são defensivos e cautelosos. Faz-se oposição ao escrutínio cético (p. 39).
Felizmente, certas premissas da Astrologia, um exemplo de pseudociência, podem ser contrastadas com — e são esmagadas por — previsões da Psicologia Diferencial e da Genética Comportamental. O método científico é de longe a melhor forma de obtermos conhecimento a respeito de como o mundo funciona, e o comportamento humano, não sendo um fenômeno sobrenatural ou aleatório, é um objeto passível de ser cientificamente compreendido.
Não que as abordagens não-científicas da Psicologia sejam pseudociências. No entanto, não raro encontramos psicólogos dizendo de eventos anedóticos que confirmariam indubitavelmente algumas de suas premissas prediletas. Se estamos falando de ciência, observações isoladas e assistemáticas não têm muito valor — a não ser para a formulação de hipóteses que serão posteriormente testadas. Pior ainda é sentir que uma proporção considerável desses profissionais, que não compreenderem o método científico, toma partido de uma posição anticientífica — algo como admitir que os fenômenos comportamentais, públicos ou privados, não podem ser explicados, previstos ou controlados. Se isso for verdade, somos desonestos sempre que admitimos um novo cliente. Se não é possível uma ciência comportamental, não podemos oferecer um tratamento digno às pessoas — não podemos ser éticos. Como não queremos que pessoas que sofrem de esquizofrenia, de TDAH, de TOC ou de transtornos do humor sejam tão-somente medicadas, precisamos nos instruir acerca do método científico(1) e nos esforçar para erigir uma Psicologia baseada em evidências.(2) O caminho será longo e custoso, mas as recompensas decerto valerão a jornada.
Notas e referências bibliográficas:
(1) Sugestões de blogs que discutem ciência e/ou filosofia:
(2) Sobre Psicologia baseada em evidências, ver: http://behavioristlady.blogspot.com/2011/07/psicologia-baseada-em-evidencias.html
Baum, W. (2006). Compreender o behaviorismo: comportamento, cultura e evolução. Artmed: Porto Alegre.
Mach, E. (1960). The Science of mechanics: a critical historical account of its development. La Salle (Illinois). Em: Baum, W. (2006). Compreender o behaviorismo: comportamento, cultura e evolução. Artmed: Porto Alegre.
Sagan, C. (1996/2006). O mundo assombrado pelos demônios: a ciência vista como uma vela no escuro. São Paulo: Companhia das Letras.
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