Cotas para desenhos animados nacionais!

Há algum tempo, mais precisamente desde 2003, tem sido debatido um projeto de lei que busca estabelecer a obrigatoriedade da veiculação de desenhos animados nacionais nas emissoras de TV abertas e fechadas. Esse projeto, criado pelo deputado Vicentinho (PT-SP), propõe uma cota gradativa, que vai desde 10% no primeiro ano e chega a 50% dos desenhos animados veiculados após cinco anos de vigência da lei. Para saber mais sobre ela, acesse sua página no site da Câmara. Há também um debate em vídeo, com um trecho do programa VER TV, que traz a opinião de Ziraldo e Mauricio de Sousa sobre o assunto.
Atualmente, após mais de sete anos, o projeto ainda está “aguardando Parecer na Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI)”, de acordo com o site da Câmara dos Deputados. Ou seja, o projeto não foi votado ainda, pois depende de um parecer para que entre na pauta das discussões da casa.
Parando para fazer uma análise das prováveis consequências dessa lei, me coloco a favor de um incentivo dessa forma à produção de animações brasileiras e explico os porquês. Não se trata de uma forma discriminatória dos desenhos animados estrangeiros; pelo contrário, gosto muito do Bob Esponja, Dora Aventureira, animes, e por aí vai… os desenhos estrangeiros continuarão a ser veiculados.
Tenho algumas considerações para fazer sobre esse tema, numa visão analítico-comportamental. Em primeiro lugar, cabe lembrar que uma lei pode ser descrita como uma metacontingência (TODOROV, 2005), a qual envolve muitos comportamentos entrelaçados, dos quais deriva um produto agregado e consequências culturais. Sem me deter no conceito de metacontingência, devo dizer que essa lei, entendida como implementação de uma prática cultural, atinge diversas esferas culturais das nossas crianças e do nosso país, como as brincadeiras repetidas na infância, os modelos de repertório comportamental contidos no desenho e, por que não falar também, o âmbito econômico que essa questão perpassa.
No campo das práticas culturais, podemos citar a formação de animadores nacionais. Diga-se de passagem, bons animadores nacionais já são produzidos e exportados, basta ver o exemplo de Carlos Saldanha, que dirigiu o filme Rio. Mas, como falava, será possível produzir desenhos animados com personagens do nordeste, do norte, que reproduzirão nosso folclore, nossos costumes… Imagine isso de modelo para as nossas crianças! É a possibilidade de aprender o que aprendemos na escola, como nossa história, a partir da brincadeira, o que pode facilitar a apreensão do conhecimento. É claro, isso não significa se deter em um estereótipo do “matuto nordestino”, por exemplo, mas sim mostrar o que realmente faz parte da nossa vida, de nosso cotidiano.
Marcos Magalhães (2011), cineasta de animação e um dos diretores do anima mundi, cita o exemplo da França numa entrevista concedida ao blog reforma psiquiátrica: “A França vivia uma situação similar ao Brasil. Em uma cultura tão forte como a francesa, a sociedade estava preocupada com as crianças, que assistiam apenas a desenhos animados americanos e japoneses. A sociedade realizou um grande esforço para mudar o cenário, criando várias medidas de proteção, organização e incentivo ao cinema de animação. Hoje, a França é um dos grandes produtores mundiais de animação, e as crianças assistem a uma boa parte de animações francesas. De 12 anos para cá, a França virou potência, com produção de séries de TV, longa metragens, video-games”.
Outro ponto que merece atenção: o compromisso (ou falta de) com que a programação infantil é veiculada na televisão aberta. Não sei se vocês sabem, mas a Globo não exibirá mais desenhos animados em dias de semana daqui a algum tempo. Na gazetaonline, há uma matéria que detalha mais essa mudança. Além disso, diferente do que muitos pensam, crianças não assistem apenas desenhos animados, como podemos ver em pesquisas sobre a mídia televisiva. A realizada por Migliora (2006), por exemplo, mostra que a maioria das crianças brasileiras prefere assistir às telenovelas e seriados. Mesmo assim, a maioria das crianças não deixam de assistir aos desenhos, sendo que 58% das crianças da pesquisa supracitada afirmam “sempre assistir a desenhos animados”.
Podemos pensar, então, em quais modelos esses desenhos oferecem. Soluções mágicas para problemas e violência são itens comuns em alguns desenhos importados. Quando pergunto para as crianças que não têm televisão fechada “o que você assiste pela manhã na sua casa?”, a maioria das respostas é “a Globo, Ana Maria Braga, Ben 10”. E quando eu pergunto: “Você assiste a TV cultura?” (que é onde são veiculados muitos desenhos animados e programas infantis brasileiros, como o Cocoricó), elas costumam dizer “eu não, minha mãe ou os meus amigos dizem que é de bebezinho”. Temos que pensar sobre esses modelos comportamentais que os canais oferecem. Que espécie de prática cultural formada é essa? O Cocoricó tem modelos de resolução de problema riquíssimos que servem certamente para a segunda infância. Daí quando coloco Cocoricó ou turma da Mônica no DVD do consultório, raramente uma criança não gosta. Acho que isso derruba o argumento de que as produções brasileiras não acompanham a nova geração Y ou X, de crianças.
A aprovação da lei também seria um grande incentivo nacional aos animadores brasileiros. Sem a lei por outro lado, os canais abertos em geral e as redes de canais fechados, não vão simplesmente deixar de pensar a curto prazo, notando uma diminuição inicial no lucro. Olha só, mais alguns dados: no Diskovery Kids (canal para crianças da TV fechada) são exibidos dois desenhos animados produzidos no Brasil: Peixonauta e Meu Amigãozão. Lindos, por sinal. Peixonauta foi a primeira série de animação produzida inteiramente no Brasil, em associação com o Discovery Kids. Veja bem de onde vem o incentivo… Agora vocês me perguntam: por que não são produzidos mais desenhos animados brasileiros? Porque é caro, porque não há incentivo para criação, porque não há formação de mercado, o que poderia ser pensado a partir dessa lei. Nós não temos ainda a prática cultural! Falta o incentivo nacional! O Mauricio de Souza, por exemplo, produz animações do Chico Bento para países de fora, como a China, mas produz pouco para cá, por questões mercadológicas. É óbvio que o Bob Esponja, desenho veiculado e comprado em vários países, deve ser muito mais barato que a turma da Mônica, não por questões técnicas, mas por questões de mercado.
Nesse ponto, precisamos falar de outros conceitos analítico-comportamentais. O de sensibilidade ao reforço e o de autocontrole. Skinner (1953) afirma que o autocontrole ocorre quando “uma resposta, a controladora, afeta variáveis de maneira a mudar a probabilidade da outra, a controlada”. Isso geralmente envolve um reforçador ou punidor a curto prazo e outro a longo prazo. O investimento em desenhos animados nacionais a curto prazo provavelmente geraria muitos custos para empresas que agregam canais fechados ou para os canais abertos. Mas um investimento pesado na produção brasileira geraria a longo prazo reforçadores últimos de estima, econômicos e sociais.
O maior problema é que o comportamento operante é sensível a reforçadores imediatos. Abib (2010) refere-se a isso como “sensibilidade hedônica às consequências imediatas do comportamento” (p. 288). O autor ainda afirma que é árdua a construção de uma prática de sensibilidade ao “não acontecimento”. Ou seja, como essas instâncias governamentais, políticas e, sobretudo, econômicas, podem ser sensíveis às consequências de longo prazo, “abrindo mão”, de certa forma de reforçadores generalizados em curto prazo (isto é, dinheiro, dinheiro muito!)? Para mudar essa realidade é necessário o comportamento de autocontrole, como o estabelecimento de regulamentos, similar a esse das cotas. O problema é que as instituições políticas e as instituições econômicas estão entrelaçadas e, por isso, falar de autocontrole quando envolve economia é complicado. O autocontrole, aliás, é uma prática não tão comum nas políticas brasileiras, ao meu ver. No entanto, podemos estabelecer um contracontrole, nós, “que votamos e compramos”. Peçamos então um incentivo à produção de desenhos animados nacionais – educadores, mães, analistas do comportamento ou interessados!
* Para maiores informações sobre o conceito de metacontingência, consultar o texto da colunista Elayne Nogueira “metacontingências em campo”, nesse mesmo blog.
Agradeço a contribuição da minha amiga e colunista Elayne Nogueira e do meu marido Reno Rocha na construção desse texto!
Indicações de leituras e referências:
ABIB, J. A. D. Sensibilidade, felicidade e cultura. Temas em Psicologia. Volume 18. 2010.
MIGLIORA, R. R. V. P; LEITE, C. Crianças e televisão: o que elas pensam sobre o que aprendem com a tevê. Revista Brasileira de Educação, v. 11, p. 497-510, 2006.
SKINNER, B. F. Ciência e comportamento humano. Tradução: TODOROV, J.C. 11. Ed. São Paulo, Martins Fontes, 1953; 2003.
TODOROV, J. C. A constituição como metacontingência. Em: TODOROV, J. C; MARTONE, R. C; MOREIRA, M. B (org). Metacontingências: comportamento, cultura e sociedade. 1. Ed. Santo André, SP: ESETec Editores Associados, 2005.

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Escrito por Natalie Brito

Mora em natal - RN e é Psicóloga no Instituto Federal do Rio Grande do Norte. Mestre em psicologia pela UFC. Ministrou disciplinas de Análise do Comportamento na Faculdade Leão Sampaio durante 3 anos. Escreve sobre psicologia escolar e desenvolvimento humano.

Profissional de Psicologia e Psiquiatria: Anuncie Conosco

História da Análise do Comportamento no Brasil