Encontrar o limite para seu próprio conhecimento e concepções parece ser uma habilidade de grande importância para qualquer trabalho intelectual. O “só sei que nada sei” de Sócrates é muito mais famoso e veiculado do que sua real aplicação na estruturação de um pensamento quando estudamos sobre determinado assunto, seja na Psicologia ou em qualquer outra ciência. Arrisquei começar por aqui com um velho clichê filosófico, mas é por uma boa causa. Trata-se de tentar escrever um pouco acerca de uma proposta de posicionamento sobre o texto skinneriano mas é certo que serviria bem a outros.
Encontra-se aqui uma sugestão de modo de leitura. E este modo tem como aspecto principal certa despersonalização do texto: olhar para a obra independente do autor. Isso, não com o sentido de tentar buscar uma neutralidade utópica ao texto[1], mas sim de enfraquecer um pouco o argumento de autoridade costumeiramente presente quando é lido o texto de um fundador de linha de pensamento. É claro que textos clássicos, ou mesmo de grandes pesquisadores sempre merecem uma boa dose de confiança, mas exagerar nisso é contraproducente. Por que? Pela falta da análise integral do(s) argumento(s) implicado(s) nas afirmações destes textos.
Ao estudar um autor, neste caso Skinner, é comum referirmos ao texto como uma fonte de respostas a determinadas perguntas. Mas aí reside uma boa confusão, ou pelo menos algum desvio interpretativo. Skinner já havia nos dito[2], ao criticar o mentalismo, que o problema dessa abordagem é que acalma a curiosidade e paralisa a pesquisa. Mas o posicionamento skinneriano acerca do mentalismo[3] não é importante por agora. O problema aqui é quando promovemos esse tipo de paralisação com repetidas buscas por respostas na obra do autor.
Aqueles que se filiam a uma ou outra abordagem acabam resumindo o problema “a qual teoria da primeira metade do século XX vão aderir”[4], e, devidamente sindicalizados a um tipo de pensamento, recorrem aos textos fundamentais para encontrar as respostas para as dúvidas que aparecerem. E isto, mesmo considerando que o tipo de produção intelectual e científica de Skinner ofereça muito mais perguntas que respostas[4], este autor defendendo também a primazia das questões, desde que orientadas pelo pensamento científico, como profícua. Assim, considerando a Análise do Comportamento, é particularmente contraditório buscar respostas na obra skinneriana ao invés de orientações para que perguntas formular.
Outro complicador da busca por respostas nos textos de um autor é uma ascensão intelectual cronologicamente forçada. Uma interpretação de que o autor teria caminhado em uma trajetória uniforme na direção do que fosse correto. Neste sentido, algo que tenha sido dito em 1990 seria o ápice da lucidez e abrangência interpretativa versus uma provável imaturidade nos idos de 1935, por exemplo. Com isso é também necessário bastante cuidado. É evidente que um autor passa por um desenvolvimento, abandona e adota posicionamentos e tende a amadurecer e completar sua teoria ao longo de seu tempo de vida. Contudo, a simples cronologia dos conceitos não é suficiente para supor relações de contradição, contestação, ou evolução teórica. Ao estudar uma obra, cada parte relaciona-se ao todo e é sempre necessário ter uma razão científica ou filosófica para incluir uma determinada passagem ou raciocínio em alguma produção. O argumento deve então ser analisado, mais do que quem disse ou quando foi dito, salvo em casos de historiografia científica, é claro[5]. Um exemplo interessante é o das formulações iniciais acerca do “tipo II” de reflexo, posteriormente chamado de comportamento operante[6]. É patente que não se trata mais de considerar o comportamento operante como um tipo de reflexo, nos termos que estamos habituados. Essa caracterização inicial tem, decerto, data e ocasião e já foi abandonada. Mas o possível passo seguinte, de julgar essa primeira aparição conceitual como “superada”, sendo considerado apenas o aspecto cronológico, é dado então sobre um vão argumentativo. Qual a razão do abandono? Foi abandonado? O que foi mantido e o que está diferente? Por que há aspectos diferentes e por que há aspectos similares nas definições anteriores e subseqüentes? E uma das questões mais comumente esquecidas: será que não erramos mais adiante e deveríamos retomar algum aspecto anterior agora perdido?
Estas últimas questões são, evidentemente, provocações e não caberiam em um artigo científico particular que estude, por exemplo, adequação de variáveis em alfabetização . Mas nada nos impede de tentar tangenciá-las em nossos estudos a fim de formular um posicionamento mais crítico em relação a um autor ou obra de nosso interesse. E o posicionamento crítico é parte de um raciocínio produtivo. Afinal, quem senão o próprio estudioso da área para encontrar as falhas, os lapsos e as lacunas conceituais de sua ciência de um modo perspicaz e fecundo?
E a essa altura você pode estar se questionando o que o tal do “Só sei que nada sei” tem a ver com tudo isso. Ora, faz parte da criação do pensamento científico (tentar) desvencilhar-se de posicionamentos rígidos, de respostas pré-determinadas. É necessário saber dosar equilibradamente a certeza de princípios demonstrados e o confrontamento com estes mesmos princípios. Afinal, é possível conceber que a instabilidade e a dúvida, mais que a continuidade e a certeza, possam agir como motor da mudança de pensamento e do encontro de novas descobertas em relação ao mundo:
“A condição de coerência, por força da qual se exige que as hipóteses novas se ajustem a teorias aceitas, é desarrazoada, pois preserva a teoria mais antiga e não a melhor. Hipóteses que contradizem teorias bem assentadas proporcionam-nos evidência impossível de obter por outra forma. A proliferação de teorias é benéfica para a ciência, ao passo que a uniformidade lhe debilita o poder crítico”[7]
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- O autor desta coluna tem consciência do tamanho do problema em que está entrando e por isso pede a indulgência do leitor. O posicionamento aqui não é ingênuo o suficiente para acreditar que a história pessoal do autor, sua época, o mundo em que ele vivia no momento da publicação não fazem diferença na construção de seu conhecimento. Contudo, este certamente é um tema longo e de tratamento mais difícil do que a oportunidade permite, sendo assunto para o futuro.
- Skinner, B. F. (1974). About Behaviorism. New York: Alfred A. Knopf.
- Que certamente é um grupo muito mais heterogêneo, fecundo e importante do que Skinner queria admitir. Mas, de novo, não é essa a questão nesse momento.
- De Rose, J. C. (1999). O que é um Skinneriano? Uma reflexão sobre mestres, discípulos e influência intelectual. Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva. 1 (1). 67-74.
- Existem várias maneiras de analisar uma obra, compreender certo posicionamento intelectual. Recomendo aqui a leitura de um artigo que define muito bem uma dessas maneiras: Abib, J. A. D. (1996) Epistemologia, transdisciplinaridade e método. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 12 (3), 219-229.
- Skinner, B. F. (1935). Two types of conditioned reflex and a pseudo type. Journal of General Psychology, 12, 66-77.
- Feyerabend, P. (1977) Contra o Método.(O. S. Mota & L. Hegenberg, Trads.) F. Alves, Rio de Janeiro. (trabalho original publicado em 1975).
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