Erica Vila Real Montefusco, Psicóloga pela Universidade Federal do Ceará (2009), Pós-Graduada em Neuropsicologia pela Faculdade Christus (2011) – Fortaleza, CE
Paulo Estêvão da Silva Jales, Psicólogo pela Universidade Federal do Ceará (2011) – Fortaleza, CE
Prezados leitores,
Nosso primeiro post no blog Comporte-se teve como tema a avaliação e possibilidades de tratamento da Doença de Alzheimer. Durante a confecção daquele texto, enfrentamos o desafio de escrever sobre um assunto com uma vasta literatura neurocognitiva e conciliá-lo com o fértil campo da clínica analítico-comportamental que, por sua vez, possui um quantitativo de produções mais modesto sobre o assunto. Consideramos que conseguimos, minimamente, vencer este desafio.
No entanto, durante o processo de gestação da coluna, sentimos a necessidade de tratar vários assuntos sobre Neuropsicologia que estavam para além do escopo daquela temática: questões de ordem histórica, metodológica e também de nomenclatura. Por esta razão, iniciaremos hoje uma série de posts com o objetivo de dar um panorama geral sobre a Neuropsicologia , discursando sobre o seu surgimento, métodos, objetivos, vocabulário, unidades de análise e bases explicativas.
Nossa meta é contribuir para uma melhor compreensão desta grande área nomeada de Neuropsicologia e, com isso, lançar as bases para a discussão de assuntos mais densos dentro deste campo. Em paralelo, buscamos também promover a conciliação entre os discursos Neuropsicológico e Behaviorista os quais, conforme será possível observar, trilharam caminham diferentes e, em certos momentos, antagônicos.
Desejamos a você uma boa leitura.
Prelúdio: questões de vocabulário
A primeira barreira a ser vencida em um texto interdisciplinar é a linguagem. Podemos dizer que nossa forma de falar (e compreender) certas palavras é resultado de um complexo histórico de modelagem do comportamento verbal, cujos reforçadores são distribuídos por uma comunidade. Como a maioria das formas de controle, essa modelagem é sutil e, muitas vezes, não nos damos conta de que as terminologias em uma área possuem um determinado significado que não é compreendido por pessoas de outro campo. A linguagem representa o que é importante para uma determinada comunidade em um determinado momento, estando sujeita a mudança com o tempo e o local (Catania, 1999, faz uma discussão interessante sobre esse assunto no primeiro capítulo de seu livro Aprendizagem: comportamento, linguagem e cognição).
Um bom exemplo deste fenômeno é a palavra “Comportamento”. Para a maioria dos grupos, comportamento é equivalente à ação, sendo os vocábulos facilmente substituíveis em conversas do cotidiano. Já para aqueles com orientação behaviorista, comportamento é um termo técnico que possui um significado específico: é a relação entre um organismo que reponde e um ambiente emissor de estímulos (organismo e ambiente, resposta e estímulo são também termos técnicos neste contexto). Desta forma, comportamento e ação não são equivalentes dentro da comunidade de analistas do comportamento, e o uso de uma ou outra palavra numa frase mudará completamente o sentido do discurso.
Por essa razão, adotaremos o hábito de destacar as nomenclaturas técnicas da Análise do Comportamento (AC) com a cor azul e da Neuropsicologia (NP) com a cor verde. Também evidenciaremos quando palavras bem conhecidas da AC forem utilizadas com outro significado através da cor roxa. Quando julgamos necessário, faremos observações em notas ao final do texto. Durante nossa caminhada pelo campo da Neuropsicologia deveremos acumular uma boa quantidade de novos vocábulos, facilitando, assim, a comunicação entre estes dois campos de conhecimento.
Definindo a Neuropsicologia (NP)
Para Lezak (1995), a neuropsicologia encarrega-se de avaliar o comprometimento neurológico pela via do comportamento (nota 1). Mais especificamente, pode ser entendida como a análise dos distúrbios de comportamento que se seguem a alterações da atividade cerebral normal. Tais alterações podem estar relacionadas ao desenvolvimento anormal do sistema nervoso ou ser adquiridas por eventos ambientais como traumatismos, infecções, uso de substâncias, acidentes vasculares, síndromes demenciais, dentre outros fatores.
Numa perspectiva mais recente, Cosenza, Fuentes e Malloy-Diniz (2008) definem a Neuropsicologia como um campo do conhecimento que busca estabelecer as relações existentes entre o funcionamento do Sistema Nervoso Central (SNC) (nota 2), as funções cognitivas (nota 3) e o comportamento, em condições normais e patológicas.
Pautada na interdisciplinaridade, a neuropsicologia baseia-se em conhecimentos advindos da neurologia e da psicologia, e conta também com o suporte de outras áreas da ciência, como a neuroanatomia, a neurofisiologia, a psicofarmacologia, a biologia molecular e a embriologia.
Uma breve história sobre a compreensão do Cérebro
As investigações que versam sobre a relação entre cérebro e comportamento há muito são descritas. No Egito antigo, há cerca de 3000 anos, estudos já eram realizados, e foram descritos através do famoso Papiro Cirúrgico de Edwin Smith, o qual revela que os povos egípcios tinham grande conhecimento de neuroanatomia e do funcionamento cerebral, provavelmente devido aos rituais de mumificação realizados (Cosenza, Fuentes e Malloy-Diniz, 2008).
Entre os gregos, Hipócrates (460-379 AC) acreditava que o cérebro era a sede da mente (nota 4), o órgão que nos habilitava a pensar, ver e ouvir, e era também a sede da loucura e do delírio. Seus estudos foram fundamentais para a consolidação da hipótese cerebral, já que outros estudiosos acreditavam que o coração seria o responsável pelo controle dos processos mentais (Cosenza, Fuentes e Malloy-Diniz, 2008).
No século XIX, Franz Joseph Gall (1758-1828) foi um dos primeiros a considerar o cérebro como a sede das atividades mentais. De acordo com sua teoria, a Frenologia, a conformação do cérebro e suas diversas protuberâncias tinha relação com a capacidade mental, e cada uma delas controlava órgãos específicos do corpo. Gall admitia a especialização de áreas diferentes do cérebro, que segundo ele atuavam de forma independente, cabendo ao córtex cerebral as funções mais elevadas. Ele também imaginava que havia uma correlação da forma do cérebro com qualidades emocionais e comportamentais, conforme as irregularidades da superfície do crânio (Gazzaniga, 2006). Nessa época, as teorias que afirmavam existir uma relação entre determinadas áreas do encéfalo com atividades específicas ficaram conhecidas como teorias localizacionistas.
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Figura 1: O encéfalo
Fonte: http://www.auladeanatomia.com/neurologia/snervoso.htm
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Em seguida aos estudos de Gall, o fisiologista francês Pierre Jean Marie Flourens (1794-1867) rejeitou a ideia de que processos específicos estariam restritos a determinadas áreas do encéfalo. Com base em estudos realizados com cérebros de pássaros, ele constatou que
“[…] lesões em áreas particulares do cérebro não causavam certos déficits duradouros de comportamento. Não importava onde se fizesse a lesão, o pássaro sempre se recuperava. Ele desenvolveu a noção de que todo o cérebro participa do comportamento, uma visão conhecida posteriormente como campo agregado” (Gazzaniga, 2006, p. 21).
Ainda no século XIX, o localizacionismo voltou a ganhar destaque com os estudos de Paul Broca (1824-1880) e Carl Wernicke (1848-1904). Broca estudou pacientes que foram acometidos por lesões nos lobos frontais do hemisfério cerebral esquerdo, e constatou que estes apresentavam um comprometimento na produção da fala, apesar de preservarem a capacidade de compreender o que lhes era dito. Wernicke, por sua vez, descreveu pacientes que tinham lesões no córtex temporal do hemisfério cerebral esquerdo. Eles apresentavam dificuldade na compreensão da linguagem, apesar de conseguirem falar quase normalmente (Gazzaniga, 2006).
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Figura 2 – Área de Broca e Área de Wernicke
Fonte: http://netnature.wordpress.com
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Em meio à oposição localizacionismo-unitarismo, Alexander Romanovich Luria (1902-1977), neuropsicólogo russo, desenvolveu a chamada teoria do sistema funcional. Com base nesses estudos, ele reformula o conceito de função (nota 5), e afirma que as funções são exercidas por sistemas que visam à execução de uma determinada tarefa.
Ainda com relação ao que abordamos acima, consideramos importante ressaltar que, para Luria, é possível distinguir no cérebro três grandes sistemas funcionais: O primeiro é responsável pela vigília e pelo tônus cortical. O segundo, localizado em áreas do córtex cerebral posteriores ao sulco central (Figura 3), é responsável por receber e processar estímulos oriundos tanto do meio externo quanto do meio interno e o terceiro, por sua vez, é responsável por verificar e supervisionar a atividade mental. As zonas cerebrais atual em conjunto, mesmo estando situadas em áreas cerebrais diferentes. (Cosenza, Fuentes e Malloy-Diniz, 2008).
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Figura 3: Sulco central e sulco lateral
Fonte: http://www.auladeanatomia.com/neurologia/snervoso.htm
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Superando o dualismo localizacionista X unitarista, o modelo de sistema funcional alterou a forma como o encéfalo era compreendido, e se tornou muito importante para o estudo da neuropsicologia. Serviu de base para a criação de testes neuropsicológicos, como a Bateria Luria-Nebraska, e influencia pesquisas em neuropsicologia, tendo consequências em especial em com relação à prática da avaliação neuropsicológica e da reabilitação cognitiva.
Notas
Nota 1: Em todo o presente texto o termo “Comportamento” será utilizado como sinônimo de açãoagir, não sendo completamente equivalente a Comportamento para a AC.
Nota 2: O Sistema Nervos Central (SNC) compreende o encéfalo e a medula espinhal.
Nota 3: Funções cognitivas referem-se a processos através dos quais o individuo toma conhecimento do mundo que o cerca. As principais funções cognitivas são: percepção, atenção, memória, linguagem e funções executivas.
Nota 4: Em NP os termos “mente” e “ mental” são abundantes, uma coisa a qual nós, analistas de comportamento, não estamos acostumados. Para o momento, podemos compreender mente como um fenômeno mediador entre os acontecimentos materiais (estímulos) e as ações dos organismos (respostas). É, por vezes, sinônimo de cognição.
Nota 5: Mais uma vez, Função tem um significado diferente do usual em AC. Para a NP, função se refere a conjuntos de neurônios relacionados a uma dada tarefa.
Referências
CATANIA, A. Charles. Aprendizagem : comportamento, linguagem e cognição. 4.ed. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1999.
GAZZANIGA, M. S.; MANGUN, G.R.; IVRY, R.B.; Neurociência Cognitiva: A Biologia Da Mente. Artmed, 2006.
Lezak, M (1995) Neuropsychological Assessment, New York: Oxford University Press.
FUENTES, D.; MALLOY-DINIZ, L.F.; CAMARGO, C.H.P. & COSENZA, R.M. Neuropsicologia: teoria e prática. São Paulo: ArtMed, 2008.
http://www.auladeanatomia.com/neurologia/snervoso.htm
http://netnature.wordpress.com
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