Vivemos em uma sociedade muito avançada tecnologicamente e as facilidades que compõe nosso dia-a-dia são incontáveis. Contraditoriamente, ao mesmo tempo, convivemos com estigmas e estereótipos que envolvem a deficiência, construídos em tempos remotos e que prevalecem marcados por muitos preconceitos.
Estes estigmas e rótulos foram construídos socialmente desde a antigüidade, em que as crianças deficientes eram abandonadas ao relento (Aranha, 1995; Casarin, 1999; Pessoti, 1984; Schwartzman, 1999 citado por Silva & Dessen, 2001). Esta atitude estava relacionada com os ideais morais da sociedade da época, em que a eugenia e a perfeição do indivíduo eram extremamente valorizadas. Na época, segundo Pessotti, crianças deficientes físicas ou mentais eram consideradas sub-humanas, e isso validava sua eliminação ou abandono.
Na Idade Média, a deficiência era entendida como um fenômeno metafísico e espiritual devido à influência da Igreja, então era considerada uma questão “divina” ou “demoníaca” e esta concepção, de certa forma, conduzia o modo de tratamento das pessoas deficientes. Porém, com a influência da doutrina cristã, os deficientes começaram a ser vistos como possuindo uma alma e, portanto, eram filhos de Deus. Desta forma, não eram mais abandonados, mas, sim, acolhidos por instituições de caridade (Silva & Dessen, 2001).
No final do século XV, houve a revolução burguesa e, com ela, uma mudança na compreensão de homem e de sociedade, o que proporcionou também uma mudança na concepção de deficiência. Esta passou a ter uma conotação mais direta com o sistema econômico que se propunha, e relacionava-se a indivíduos não produtivos economicamente. Além disso, com o avanço da medicina, houve uma prevalência da visão organicista sobre a deficiência, sendo esta vista como um problema médico e não mais, apenas, como uma questão espiritual (Silva & Dessen, 2001).
A síndrome de Down é a alteração cromossômica que constitui uma das principais causas da deficiência mental de origem pré-natal. Caracteriza-se por um erro na distribuição cromossômica durante a divisão celular após a fertilização do óvulo pelo espermatozóide. Ela pode se apresentar de três formas: trissomia 21, mosaico e translocação. Na primeira, que representa cerca de 95% dos casos, há 3 cromossomos 21, ao invés dos 2 habituais, e o indivíduo apresenta 47 cromossomos em todas as células, com um cromossomo extra. Na segunda, há uma mistura de células tanto normais quanto trissômicas. Na terceira, acontece uma fusão de 2 cromossomos, na maioria das vezes o 21 e o 15, resultando em um total de 46 cromossomos. No que se refere às características fenotípicas mais comuns desta síndrome, pode-se citar a braquicefalia, caracterizada por um diâmetro fronto-occipital muito pequeno, fissuras palpebrais com inclinação superior (os “olhinhos puxados”), pregas epicântais, base nasal achatada, pescoço curto, língua protusa e hipotonia muscular. (Angélico & Del Prette, 2001)
As crianças com síndrome de Down apresentam características físicas semelhantes, porém isso não engloba um padrão de desenvolvimento e de comportamento. Na literatura podemos encontrar fontes a respeito disso que indicam que síndromes com base genética, como a síndrome de Down, estão associadas com manifestações comportamentais específicas. Kaplan, Sadock e Grebb (1997) citado por Angélico (2004) apontam que na síndrome de Down, a função da linguagem é relativamente fraca, enquanto a sociabilidade e aptidões sociais, como cooperação interpessoal e adequação à convenções sociais são relativamente fortes, e várias fontes expressam que os indivíduos com Síndrome de Down são dóceis, alegres, bem humorados e cooperativos (Glat & Kadlec 1984; Kaplan, Sadock & Grebb, 1997 citado por Angélico, 2004).
Por outro lado, como discute Angélico e Del Prette (2011), uma revisão feita por Pereira-Silva e Dessen (2002) apontou dados na literatura de subgrupos de indivíduos com síndrome de Down que se apresentam agressivos, agitados e difíceis de manejar. Também foram levantadas características como birrentas, calmas, agitadas e irritadas para crianças pré-escolares com síndrome de Down. Outras como desatenção, teimosia e desobediência foram apontadas como problemas de comportamento comuns em indivíduos com síndrome de Down em estudos de Cuskelly & Dadds, 1992, Dykens, Shah, Sagun, Beck, & King, 2002. Já na adolescência, segundo estudos de autores como Soresi e Nota (2000), indivíduos com síndrome de Down frequentemente experimentam dificuldades em estabelecer e manter relações com amigos na escola, bem como com figuras de autoridade (Angélico & Del Prette, 2001).
Comportamentos de qualquer indivíduo, sendo ele criança ou adulto, com ou sem síndrome de Down são mantidos ou extintos pelos ambientes em que estão inseridos. Se comportamentos de carinho forem reforçados pelos membros de sua família, através de atenção e elogios por exemplo, eles ocorrerão em uma freqüência relativamente alta neste ambiente, e podem se generalizar para outros contextos. Da mesma forma, se comportamentos agressivos são permitidos e reforçados em um ambiente educacional, como no caso de educadores oferecendo atenção contingente a estes comportamentos, a sua freqüência será relativamente alta e se tornarão funcionais neste determinado contexto. Assim, alguns estereótipos que envolvem as crianças com síndrome de Down, como por exemplo serem dóceis e carinhosas, caem por terra (Pereira, 2007).
As características comportamentais levantadas nos estudos são o que se define como habilidades sociais. Segundo Angélico (2004), os autores Del Prette e Del Prette (2001), definem que o termo está relacionado à existência de diferentes classes de comportamentos sociais do indivíduo para lidar de maneira adequada com as demandas das situações interpessoais, e que abrange o aspecto descritivo dos comportamentos verbais e não verbais apresentados pelo indivíduo nestas situações. Assim, é possível considerarmos que a sociabilidade, facilitada pelo temperamento dócil, e aptidões sociais não são características comportamentais próprias da síndrome de Down. A suposta docilidade, cooperação interpessoal ou comportamentos agressivos que os indivíduos com Síndrome de Down apresentariam, conforme as referencias encontradas na literatura, poderiam ser consideradas como respostas moldadas por específicas contingências de aprendizagem e do meio. Em outras palavras, não há dúvidas que as habilidades sociais são aprendidas e, assim, as demandas para sua aquisição e desempenho variam em função do estágio de desenvolvimento do indivíduo, e é resultado das contingências as quais é exposto (Angélico, 2004).
Entretanto, como apontado anteriormente, uma das características da Síndrome de Down é a deficiência intelectual, e esta característica deve ser levada em consideração em análises que envolvam relacionamentos interpessoais. Como afirma Inesta (1917) citado por Angélico (2004), indivíduos com deficiência intelectual apresentam diferenças muito particulares em sua resposta aos estímulos e reforçadores sociais. Isto pode se originar em uma história prévia de reforçamento que tenha sido inadequada, bem como na existência de contingências que dificultem a socialização, o que pode atrapalhar ou até mesmo impedir o desenvolvimento deste repertório.
Se voltarmos ao início do texto, podemos lembrar que a cultura em que estamos inseridos é marcada por um forte aspecto segregador e recheada de estereótipos. Pensando na cultura como terceiro nível de seleção, fica bastante claro porque indivíduos com Síndrome de Down, ou com outros tipos de deficiência convivem com barreiras que atrapalham ou impedem o desenvolvimento de repertórios de habilidades sociais. Ainda são comuns, infelizmente, famílias que mantém filhos deficientes em casa por acreditarem que não serão capazes de se desenvolver socialmente. Muitas vezes, se não os mantém em casa, optam por colocarem-nos em escolas especiais, em que convivem apenas com outras pessoas com deficiência. Assim, acabam realmente não inseridos em ambientes os quais poderiam desenvolver o repertório de habilidades sociais.
Portanto, acabamos em um ciclo, que funciona da seguinte forma: os estereótipos e preconceitos construídos socialmente dão origem às “barreiras” as quais nos referimos, que por sua vez acabam por reforçar os mesmos estereótipos e preconceitos. Em outras palavras, aquela família inserida na cultura que dita que indivíduos deficientes não são capazes de desenvolver-se socialmente e acredita nisso, insere estes indivíduos em ambientes em que não tem estímulos aos quais podem responder e desenvolver este repertório específico. Isto, por sua vez, acaba por reforçar os preconceitos e estereótipos que ditam que os indivíduos deficientes não são capazes de desenvolver-se socialmente. É interessante lembrar que este ciclo acontece dentro da mesma cultura marcada por grandes avanços tecnológicos, o que nos leva a pensar o quanto ainda precisamos evoluir em outros aspectos.
Referências
Angélico, A. P. & Del Prette, A. (2011). Avaliação do repertório de habilidades sociais em adolescentes com Síndrome de Down. Psicologia: Reflexão e Crítica 24 (2).
Angélico, A. P. (2004). Habilidades sociais de adolescentes com Síndrome de Down. Dissertação de mestrado, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, São Paulo, Brasil.
Pereira, M. S. (2007). Semelhanças e diferenças entre crianças com Síndrome de Down incluídas e crianças com desenvolvimento típico. Dissertação de mestrado, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, São Paulo, Brasil.
Silva, N. L. P & Dessen, M. A. (2001). Deficiência Mental e Família: Implicações para o desenvolvimento da criança. Psicologia: Teoria e Pesquisa 17 (2).