Considerações sobre imagem corporal feminina e inflexibilidade psicológica em uma sociedade machista

Escrito por Ana Patrícia Cavalheiro e Julia Moreira

A imagem corporal (IC) é construída não somente pela representação física; também, perpassa por ela afeto, pensamentos, julgamentos, comportamentos e percepções que são construídas dentro de uma cultura, possuindo a visão do outro sobre esse indivíduo e a minha própria percepção daquilo que o outro vê. 

“Bailey (2003) vai além e articula os conceitos de autoimagem, autoconceito e identidade; definindo, portanto, a autoimagem como uma percepção subjetiva de si que inclui a imagem do próprio corpo e suas impressões acerca de sua personalidade e capacidades. A autora ainda argumenta que a autoimagem seria a imagem mental de uma pessoa com sua aparência física e integração de suas experiências, desejos e sentimentos. Seria possível aqui o surgimento de valores como beleza, satisfação, atratividade” (Elias et al, 2023, p.169). 

 De uma perspectiva comportamental, a IC pode ser compreendida pela definição de unidade funcional, que enreda as variáveis dos três níveis de seleção – filogenéticas, ontogenéticas e culturais. A imagem corporal é aos poucos construída por meio do que é falado socialmente sobre corpos e aparência, e as características físicas desvalorizadas pela comunidade verbal adquirem função aversiva, enquanto as características valorizadas tornam-se reforçadoras. Essa aprendizagem sobre si e sobre a imagem corporal se inicia na infância, quando o indivíduo vai entrando em contato com seu contexto e sendo direcionado sobre suas emoções, sentimentos, pensamentos, criando percepções e conceitos ligados a sua imagem corporal. Assim, desde criança a pessoa passa a seguir regras sociais e estabelecer autorregras sobre sua aparência, contribuindo para o surgimento de insatisfação e julgamentos negativos sobre o próprio corpo.  (Elias et al, 2023; Fonseca & Nery, 2018). 

Sabemos que as regras sociais moldam os comportamentos de todos os indivíduos; porém, existem diversas regras que ditam comportamentos apenas para o “feminino”, desde como mulheres devem se comportar até como deve ser nossa aparência, nossos corpos, a maneira de nos vestirmos, entre outros. Em uma sociedade patriarcal, as regras controlam os comportamentos das mulheres e o acesso a reforçadores. Conforme apontam Nicolodi e Hunziker (2021), “as contingências patriarcais são tão ‘naturalizadas’ e disseminadas na nossa cultura a ponto de controlarem os comportamentos de mulheres no sentido de manter o desequilíbrio vigente. Assim, no longo prazo, elas também contribuem para que seus repertórios comportamentais permaneçam restritos e, consequentemente, sofram prejuízos.” (p.172)

Poderíamos mencionar diversos tipos de regras sociais que interferem no comportamento das mulheres, que contribuem para a manutenção da desigualdade de gênero e a perpetuação de violências. Apenas no contexto específico da imagem corporal, é possível citar várias regras existentes relacionadas ao padrão de beleza, que passou por mudanças ao longo dos séculos e varia entre as culturas (como exemplo, culturas ocidental e oriental), mas que continua se mantendo e agindo como pressão social que gera sofrimento. Quanto mais a mulher sentir que não se encaixa neste “padrão” do que é ser uma mulher bela e desejada, maior a probabilidade de sentir inadequação, insegurança, e estará mais vulnerável a desenvolver transtornos alimentares e outros impactos em sua saúde mental. 

De acordo com o relatório The Real State of Beauty: a Global Report, de 2024, pesquisa realizada pela marca Dove em 20 países, 61% das mulheres acreditam que mulheres que são consideradas bonitas têm mais acesso à melhores oportunidades durante a vida. Entre as brasileiras, o número aumenta; 71% das mulheres concordam com essa afirmativa.  

Assim, levando em consideração o fator cultural como um dos determinantes na criação da imagem corporal, podemos relacionar as práticas de machismo como um fator de risco para desenvolvimento de IC com distorções ou pré-dispostas a transtornos alimentares, atingindo mulheres, mulheres negras, PCD’s e pessoas da comunidade LGBTQIAPN+. O estudo de Bittencourt (2013) apud Souza (2023), mostra que estudantes pardas estão satisfeitas com sua aparência, mas apresentam conflitos com características que não são condizentes com as valorizadas na sociedade. Ainda dentro disso, estudantes amarelas e/ou indígenas têm maiores chances de desenvolverem transtorno alimentar e de ficarem insatisfeitas com suas imagens corporais. 

Nessa formação da imagem corporal existe uma ditadura pelas características: branca – magreza – sucesso, que vai criando uma relação de que apenas essas características são importantes ou veneradas dentro da sociedade. A partir disso, pessoas que não se encaixam dentro dessas características vão criando uma sensação de rejeição e buscam, às vezes de maneira incessante, alcançar esse padrão imposto. 

Essas relações dêiticas que vão se estabelecendo favorecem o desenvolvimento de inflexibilidade psicológica, conceito que pode ser compreendido pela Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT) como a dominância do conteúdo verbal em relação ao contato com as experiências, compreendendo seis aspectos: fusão cognitiva, falta de clareza dos valores, predominância do passado ou futuro, esquiva experiencial, self conceitual e inação (Saban, 2015). Com essa falta de contato direto com as contingências, “o repertório comportamental passa, então, a ser dominado por tentativas de controle das experiências internas, deixando poucos recursos para operar sobre as contingências e conduzindo a uma forma rígida e inflexível de viver” (Valentim, 2014).

De acordo com Sandoz e DuFrene (2013), a inflexibilidade da imagem corporal consiste em atenção restrita a certos aspectos da aparência; pensamentos e sentimentos dolorosos constantes sobre o próprio corpo; e esforços para encontrar alívio evitando pensamentos e sentimentos relacionados ao corpo. Neste contexto, portanto, a inflexibilidade psicológica se apresenta principalmente por meio destes padrões de comportamento, diretamente relacionados com os aspectos de esquiva experiencial e fusão cognitiva. 

Essa inflexibilidade é reforçada por discursos relacionados à beleza, como: “é possível ser bela se você quiser”, “o corpo do verão só depende de você”, “é fácil ser magra, só fazer dieta e academia” e outras tantas frases que reforçam o padrão imposto. Diante disso, é fácil para a população em risco desenvolver sentimentos de culpa/ressentimento e se fundir a esses discursos, não conseguindo pôr em perspectiva o que é valioso para si e o que pode estar sendo imposto pela sociedade patriarcal. 

A atuação das terapias contextuais ocorre no sentido da identificação das variáveis de controle que se relacionam funcionalmente com os comportamentos apresentados e que os caracterizam, indo muito além de apenas a topografia daquele comportamento (Souza, 2023). No caso da Terapia de Aceitação e Compromisso, ela pode atuar na flexibilidade ao lidar com regras, diminuindo o controle de estímulos que possam estar atrelados a não mudança. A Terapia Focada na Compaixão (TFC) e o uso de intervenções relacionadas à autocompaixão também podem ser utilizadas no atendimento de pacientes com queixas de insatisfação com a imagem corporal, com o objetivo de desenvolver uma relação gentil e autocompassiva. 

Assim, o processo psicoterapêutico pode ser um espaço para promover o desenvolvimento da flexibilidade psicológica com a IC, que é composta por um conjunto de habilidades que devem ser praticadas constantemente (Sandoz & DuFrene, 2013). A flexibilidade da imagem corporal estará atrelada a aceitação dos pensamentos, práticas de mindfulness e a desfusão cognitiva. Esses três tópicos serão a base para o trabalho dentro da clínica, buscando desenvolver uma abertura à experiência e ao desconforto trazido por ela, e seguindo em sentido à ações que estejam alinhadas aos valores da paciente e menos sob controle de regras sociais e imposições da cultura machista em que está inserida. O(a) terapeuta deve, inclusive, estar atento(a) à essas variáveis culturais ao atender mulheres com demandas relacionadas à imagem corporal, para não correr o risco de invalidar o sofrimento vivido por elas e reproduzir alguma violência já sofrida pela paciente fora do setting terapêutico.

Referências 

Bailey, J. (2003). Self-image, self-concept, and self-identity revisited. Journal of the National Medical Association, 95(5), 383-386. https://www.researchgate.net/publication/10719023_Self-image_self-concept_and_self-identity_revisited

Dove, 2024. The Real State of Beauty: A Global Report.

Elias, L., de Souza, A., & Castelo Branco, P. (2023). O conceito de Imagem Corporal como produto de relações sócio-verbais: cultura, self e corpo. Revista Brasileira de Análise do Comportamento, 19(2). doi:http://dx.doi.org/10.18542/rebac.v19i2.15664

Fonseca, F, & Nery, L (2018). Formulação comportamental ou diagnóstico comportamental: um passo a passo. In A. Farias., F. Fonseca & L. Nery (Orgs.). Teoria e formulação de casos em análise comportamental clínica. (pp. 55-98). Porto Alegre: Artmed.

Nicolodi, L.G., Hunziker, M. H. L. (2021). O patriarcado sob a ótica analítico-comportamental: considerações iniciais. Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva. 17(2) DOI:10.18542/rebac.v17i2.11012

Saban, M. T. (2015). Introdução a Terapia de Aceitação e Compromisso. Belo Horizonte, Editora Artesã.

Sandoz, E. K., DuFrene, T. (2013). Living with your body and other things you hate: how to let go of your struggle with body image using Acceptance and Commitment Therapy. New Harbinger Publications.

Souza, A, S. (2023) Intervenção analítico-comportamental de curta duração online para um grupo de mulheres insatisfeitas com a imagem corporal: pesquisa – ação. Tese de mestrado. Universidade Federal da Bahia. https://repositorio.ufba.br/handle/ri/38871

Valentim, M. (2014, 21 de julho). O Conceito de Inflexibilidade Psicológica na Terapia de Aceitação e Compromisso. Portal Comporte-se Psicologia e AC

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Escrito por SIG Mulheres na ACBS

Coluna do Grupo de Interesse Especial (SIG) em Mulheres na ACBS Br. Espaço para discussão de variáveis de gênero nas terapias comportamentais contextuais. Projeto organizado por Isla Cezzani, Julia Moreira, Aline Cristina da Silva, Amanda Rosa, Ana Patricia Cavalheiro, Bruna Petinatti, Camila Lourenço, Carolina da Silva, Juliana Melo

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