Substâncias psicoativas (SPAs) usualmente são descritas como substâncias exógenas (produzidas fora do organismo) que, quando administradas, afetam prioritariamente o sistema nervoso central e produzem modificações emocionais, motoras e perceptivas. Por exemplo, ao aspirar cocaína, o usuário pode experimentar, entre outras coisas, euforia, prazer, aumento do estado de alerta e aceleração do pensamento (Boos et al., 2021). No Brasil, uma parcela significativa da população já experimentou alguma SPA ao longo da vida (Bastos et al., 2017; Ribeiro et al., 2022).
Quando um usuário apresenta dificuldades para interromper o consumo, apesar dos problemas derivados desse consumo (e.g., absenteísmo; ruptura familiar; patologias médicas etc., Diehl et al., 2019), a depender do referencial teórico, um profissional pode assumir que o indivíduo apresente Transtorno por Uso de Substâncias. Os Transtornos por Uso de Substâncias são descritos no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM 5-TR) como um grupo de psicopatologias que compartilham a característica da perda de controle sobre o consumo de determinada droga (portanto, Transtorno por Uso de Cocaína; Transtorno por Uso de Álcool etc.). Para receber o diagnóstico, o indivíduo precisa apresentar no mínimo dois dos 11 critérios em um período de 12 meses. Os critérios são divididos em quatro categorias: baixo controle (critérios 1-4); deterioração social (5-7); uso arriscado (8-9); e critérios farmacológicos (10-11) (APA, 2022).
Para quem não tem familiaridade com o tema, os critérios dos Transtornos por Uso de Substâncias ilustram como o quadro pode se apresentar. Com exceção de algumas drogas, os critérios são: 1. a substância é frequentemente consumida em maiores quantidades ou por um período mais longo do que o pretendido; 2. existe um desejo persistente ou esforços malsucedidos no sentido de reduzir ou controlar o uso; 3. muito tempo é gasto em atividades necessárias para a obtenção, na utilização ou na recuperação dos efeitos da substância; 4. fissura ou um forte desejo ou necessidade de usar; 5. uso recorrente, resultando no fracasso em desempenhar papéis importantes no trabalho, na escola ou em casa; 6. uso continuado, apesar de problemas sociais ou interpessoais persistentes ou recorrentes causados ou exacerbados por seus efeitos; 7. importantes atividades sociais, profissionais ou recreacionais são abandonadas ou reduzidas em virtude do uso; 8. uso recorrente em situações nas quais isso representa perigo para a integridade física; 9. o uso é mantido apesar da consciência de ter um problema físico ou psicológico persistente ou recorrente que tende a ser causado ou exacerbado; 10. tolerância, definida por qualquer um dos seguintes aspectos: a. necessidade de quantidades progressivamente maiores para alcançar a intoxicação ou o efeito desejado, e b. efeito acentuadamente menor com o uso continuado da mesma quantidade; e 11. abstinência, manifestada por qualquer um dos seguintes aspectos: a. síndrome de abstinência característica, e b. substância é consumida para aliviar ou evitar os sintomas de abstinência (APA, 2022).
Do ponto de vista da Análise do Comportamento, uma SPA é considerada um aspecto do ambiente que pode exercer diferentes funções de estímulos sobre o comportamento do usuário (Borloti et al., 2015; Miguel et al., 2015). Especificamente sobre o comportamento de consumir drogas, uma SPA pode ser considerada um reforçador positivo que produzido, fortalece o comportamento de consumir (Higgins et al., 2007). Por exemplo, um homem pode fumar maconha e ficar “chapado”. Uma substância também pode ser autoadministrada para remover ou atenuar, temporariamente, um estímulo aversivo (Davis & Miller, 1963). Por exemplo, uma mulher pode brigar com o marido e ir ao supermercado comprar cerveja para “esquecer”.
Todo consumo de drogas possui riscos envolvidos, contudo a maioria das pessoas que consomem drogas não apresentam prejuízos visíveis (Bastos et al., 2017; Ribeiro et al., 2022). Como um comportamento operante, o consumo de SPA também é sensível às consequências aversivas (Schuster, 1990/1994). Por exemplo, ao beber álcool no domingo e ter um mal desempenho profissional na segunda-feira, um trabalhador pode diminuir o consumo de álcool, não beber no domingo ou até mesmo parar de beber. Dito isso, seria esperado que todo usuário interrompesse, diminuísse ou modificasse o consumo quando as consequências aversivas ocorressem, contudo isso não é observado em todos os casos (Bastos et al., 2017; Ribeiro et al., 2022). Pelo contrário, um diagnóstico de Transtorno por Uso de Substância ocorre justamente porque as consequências aversivas não exercem controle sobre o comportamento de consumir (APA, 2022).
Uma explicação possível seria que certos usuários possuem déficits e excessos comportamentais que tornam o consumo da droga relevante, apesar das consequências aversivas resultantes do consumo (Aranha & Oshiro, 2025). Por exemplo, um cliente que possui uma história de punição social e desenvolveu comportamentos referentes à ansiedade social (Iêgo & Ribeiro, 2024). Uma pessoa que apresenta ansiedade social possui menor acesso a reforçadores positivos por conta do distanciamento do ambiente social. O consumo de SPA torna acessível os reforçadores positivos farmacológicos e reforçadores positivos sociais (a droga diminui a sensibilidade aos estímulos aversivos sociais que eliciam ansiedade e permite o acesso às interações sociais). Quando o consumo aumenta em frequência e produz consequências aversivas, o indivíduo pode tentar interrompê-lo. Contudo, se os déficits no repertório social se mantiverem, provavelmente ele continuará em um ambiente com menor densidade de reforçadores positivos e manterá o contato com estímulos aversivos, aumentando a probabilidade de retornar ao padrão anterior de uso de drogas. A SPA manteria o acesso a reforçadores que não teria de outra maneira e o consumo se manteria, apesar das consequências aversivas que produz.
Para saber mais sobre o tema da perda de controle sobre o consume de drogas, recomenda-se a leitura do importante artigo “Dependência de drogas” das professoras Garcia-Mijares e Silva (2004).
Referências
American Psychatric Association. (2022). Diagnostic and statistical manual of mental disorders (5th ed., text revision). Washington: APA. https://doi.org/10.1176/appi.books.9780890425787
Aranha, A. S., & Oshiro, C. K. B. (2025). A possibility of understanding substance use disorders from a behavior analysis perspective: Contributions to clinical and psychosocial interventions. In R. A. Reichert, A. L. M. Andrade, & D. De Micheli (Eds.), Neuropsychology and substance use disorders: Assessement and treatment. Cham: Springer. https://doi.org/10.1007/978-3-031-82614-6_30
Bastos, F. I. P. M., Vasconcellos, M. T. L., De Boni, R. B., Reis, N. B., & Coutinho, C. F.S. (Orgs.) (2017). III Levantamento nacional sobre o uso de drogas pela população brasileira. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz. Recuperado de: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/34614
Boos, F. Z., Cunha, N. B., & Silvestrin, R. B. (2021). Psicofarmacologia das drogas de abuso. In F. M. Lopes, A. L. M. Andrade, R. A. Reichert, B. P. Pinheiro, E. A. Silva, & D. De Micheli (Orgs.), Psicoterapias e abuso de drogas: Uma análise a partir de diferentes perspectivas teórico-metodológicas (pp. 17-39). Curitiba: Editora CRV. https://doi.org/10.24824/978652511044.8.17-40
Borloti, E., Haydu, V. B., & Machado, A. R. (2015). Crack: Análise comportamental e exemplos das funções da dependência. Acta Comportamentalia, 23(3), 323-338.
Davis, J. D., & Miller, N. E. (1963). Fear and pain: Their effect on self-injection ofamobarbital sodium by rats. Science, 141(3587), 1286–1287. https://doi.org/10.1126/science.141.3587.1286
Diehl, A., Cordeiro, D. C., & Laranjeira, R. (Orgs.) (2019). Dependência química: Prevenção, tratamento e políticas públicas (2a ed.). Porto Alegre: Artmed
Miguel, A. D. Q. C., Yamauchi, R., Simões, V., da Silva, C. J., & Laranjeira, R. R. (2015). From theory to treatment: Understanding addiction from an operant behavioral perspective. Journal of Modern Education Review, 5(8), 778-787. https://doi.org/10.15341/jmer(2155-7993)/08.05.2015/006
Garcia-Mijares, M., & Silva, M. T. A. (2006). Dependência de drogas. Psicologia USP, 17(4), 213-240. https://doi.org/10.1590/S0103-65642006000400012
Higgins, S. T., Heil, S. H., & Sigmon, S. C. (2007). A behavioral approach to the treatment of substance use disorders. In P. Sturmey (Ed.), Functional analysis in clinical treatment (pp. 261-282). Burlington: Elsevier. https://doi.org/10.1016/B978-012372544–8/50015-X
Iêgo, S., & Ribeiro, M. J. F. X. (2024). Interpretação analítico-comportamental para o transtorno de ansiedade social e proposta de critérios funcionais para diagnóstico. Perspectivas em Análise do Comportamento, 15(2), 254–273. https://doi.org/10.18761/pac.as7ay9a
Ribeiro, C., Guerreiro, C., & Ferreira, L. (2022). Sinopse estatístico 2020: Substâncias ilícitas. SICAD. Recuperado de:https://www.sicad.pt/PT/EstatisticaInvestigacao/Documents/2022/SinopseEstatistica20_substanciasIlicitas_PT.pdf
Schuster, C. (1994). O comportamento da busca de drogas: Suas implicações para as teoriasde dependência de drogas (R. E. Starosta, Trad.). In G. Edwards, & M. Lader (Orgs.), A natureza da dependência das drogas (pp. 206-231). Porto Alegre: Artes Médicas. (Obra original publicada em 1990).