*Neste texto, a linguagem é entendida enquanto um operante, o Responder Relacional Arbitrariamente Aplicável (RRAA).
Nenhuma ideia surge do nada ou do vácuo (afinal, somos behavioristas e não partimos desse pressuposto). Dessa forma, quero compartilhar as influências que me levaram a escrever este texto.
Uma das principais referências foi o texto “A Science of Behavior Still in Progress: The Implications of Rule-Governed Behavior and Derived Stimulus Relations for Beyond Freedom and Dignity”, de Colin Harte e Dermot Barnes-Holmes (2021). De forma resumida, o texto discute a proposta de Skinner em “Beyond Freedom and Dignity” (1971) de utilizar de contingências de reforçamento positivo para reduzir o controle punitivo e coercitivo na sociedade, com o fim de promover a base de “uma vida feliz”. No entanto, os autores (com os dados atuais) enfatizam o impacto da linguagem (entendida como RRAA), na produção de sofrimento psicológico, mesmo frente a contingências de reforçamento positivo. Dessa forma, a linguagem (isto é, RRAA) deve ser considerada no arranjo cultural.
Através da linguagem (RRAA), é possível nos “distanciarmos” das contingências de reforçamento que vigoram. Essa habilidade é capaz de alterar, para nós seres humanos verbalmente competentes, processos mais básicos de aprendizagem como o condicionamento respondente e operante (no final, deixo referências experimentais). Pense, por exemplo, na seguinte situação: seu chefe lhe concede uma semana de folga inesperada. Seu corpo estava sinalizando essa necessidade! E com isso, (imagino que para muitos) te deixaria com um sentimento de felicidade. Mas logo você percebe que essa semana terá um fim e que tudo voltará ao normal depois. O que foi notado pode gerar frustação, e em alguns casos, até anular o prazer de estar de folga. Ou seja, a linguagem (RRAA), uma vez adquirida (o que pode ser adquira desde muito cedo – também deixo na lista de referências), é parte da nossa experiência, isto é, está presente na nossa interação ambiental sempre (em termos técnicos, é parte da contingência).
Na Análise do Comportamento, é comum vermos essa situação descrita em termos de “comportamento governado por regras”. Na literatura, principalmente voltada para formulação de casos clínicos, há um debate frequente sobre “comportamento governado por regras” versus “comportamento controlado pelas contingências”, além de termos como “contingências diretas” e “contingências indiretas”. Isso sugere que ora estamos sob controle de regras (contingências indiretas), ora sob o controle do “ambiente que vigora” (contingências diretas). Mas será que essa distinção não nos aproxima de um dualismo, em vez de um monismo?
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Uma curiosidade: no livro Behavior Analysis and Learning de W. David Pierce and Carl D. Cheney (6ª edição, 2017), no capítulo 5 (Esquemas de Reforçamento, páginas 150-152), é citado experimentos conduzidos na década de 80 (e.g., Lowe et al., 1983) que buscaram observar os padrões de respostas gerados em pesquisas com animais não-humanos (ex., ratos) em sujeitos humanos. O resultado: os dados são diferentes! Sujeitos humanos, a partir de um determinado momento do seu desenvolvimento, geram diferentes padrões de responder em esquemas de reforçamento, em comparação a ratos.
O seguinte comentário é apresentado no livro:
“O comportamento verbal pode, (…), alterar os efeitos de outras variáveis, como os esquemas de reforçamento. Ao contrário dos animais, a maioria dos seres humanos é capaz de descrever para si mesmos, com precisão ou não, os eventos ambientais e a maneira como esses eventos os afetam; tais descrições podem influenciar significativamente o restante de seu comportamento.” (Lowe et al., 1983, p. 162; tradução nossa)
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Voltando ao que foi dito acima, vejamos. Se assumirmos que há momentos que nosso comportamento está sob controle de regras (contingências indiretas), e em outros, sob controle de contingências diretas, estamos sugerindo que há dois locus de controle distintos e até mesmo excludentes – um onde a linguagem (RRAA) opera e o outro onde ela não opera (veja Harte et al., 2020; Zapparoli et al., 2021 para uma análise de regras). É como se a gente batesse em um interruptor para ora ligar e para ora desligar a linguagem. Infelizmente (ou felizmente – veja Hayes & Sanford, 2014), como já dito acima, uma vez que a linguagem (RRAA) é adquirida ela fará parte das mais simples contingências, como por exemplo, se alimentar.
O conceito de “Contingência” evoluiu ao longo da história da Análise do Comportamento. No sentindo geral, refere-se a qualquer relação de dependência entre eventos ambientais (Skinner, 1953; 1969). Inicialmente, o termo descrevia apenas justaposições temporais e/ou espaciais (ex. pareamento de estímulos), mas passou a abranger relações entre ambiente e comportamento (ex. relação resposta-consequência) e até relações entre estímulos antecedentes (ex. relações estímulo-estímulo, ver Sidman, 1986). Assim, o conceito de contingência acabou tornando-se mais sofisticado ao longo do tempo, incorporando uma maior complexidade de relação entre eventos. Como destaca a Professora Deisy das Graças de Souza (2000, p. 126): “o que parece ter evoluído substancialmente é o comportamento dos analistas do comportamento. A análise de contingências é, certamente, muito mais sofisticada hoje do que foi no passado” (veja de Souza, 2000 para um enfoque histórico do conceito de contingência).
Portanto, como a análise de contingências poderia ser descrita hoje (fevereiro/2025)? Isto é, de maneiras que as “contingências” não sejam divididas em diretas versus indiretas? Em uma versão atualizada da Teoria das Molduras Relacionais (Relational Frame Theory – RFT; Barnes-Holmes & Harte, 2022) a unidade funcional de análise proposta é o ROE-M: Relacionar, Orientar, Evocar, em um determinado contexto Motivacional.
Unidade de Análise ROE-M
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A unidade de análise ROE-M nos permitiria analisar a totalidade da contingência que vigora em humanos verbalmente competentes (isto é, que apresentam a linguagem – RRAA). Essa unidade de análise oferece um caminho para integrar a influência da linguagem de forma mais consistente dentro da nossa filosofia monista. Para um próximo texto, a unidade de análise ROE-M será explorada.
*Agradeço ao Professor João Henrique de Almeida pela revisão cuidadosa e pelas valiosas contribuições a este texto.
Referências
Barnes‐Holmes, D., & Harte, C. (2022). Relational frame theory 20 years on: The Odysseus voyage and beyond. Journal of the Experimental Analysis of Behavior, 117(2), 240-266.
de Souza, D. D. G. (2000). O conceito de contingência: um enfoque histórico. Temas em Psicologia, 8(2), 125-136.
Harte, C., & Barnes-Holmes, D. (2021). A science of behaviour still in progress: The implications of rule-governed behaviour and derived stimulus relations for ‘Beyond Freedom and Dignity’. Operants.
Harte, C., Barnes-Holmes, D., Barnes-Holmes, Y., & Kissi, A. (2020). The study of rule-governed behavior and derived stimulus relations: Bridging the gap. Perspectives on Behavior Science, 43, 361-385.
Hayes, S. C., & Sanford, B. T. (2014). Cooperation came first: Evolution and human cognition. Journal of the Experimental Analysis of Behavior, 101(1), 112-129.
Pierce, W. D., & Cheney, C. D. (2017). Behavior Analysis and Learning: A Biobehavioral Approach, Sixth Edition (6th ed.). Routledge.
Sidman, M. (1986). Funtional analysis of emergent verbal classes. Em: T. Thompson and M.D.Zeiler (Orgs.), Analysis and integration of behavioral units (pp. 213-245). Lawrence Erlbaum, Hillsdale, N.Y.
Skinner, B. F. (1953). Science and Human Behavior. Macmillan.
Skinner, B. F. (1969). Contingencies of reinforcement: A theoretical analysis. Appleton-Century-Crofts.
Skinner, B. F. (1971). Beyond freedom and dignity. Knopf/Random House.
Zapparoli, H. R., Marin, R., & Harte, C. (2021). Rule-governed behavior: An ongoing RFT-based operant analysis. Perspectivas em Análise do Comportamento, 12(1), 197-213.
Referências: RRAA alterando processos clássicos de aprendizagem
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Dougher, M. J., Augustson, E., Markham, M. R., Greenway, D. E., & Wulfert, E. (1994). The transfer of respondent eliciting and extinction functions through stimulus equivalence classes. Journal of the Experimental Analysis of Behavior, 62(3), 331-351.
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Perez, W. F., de Azevedo, S. P., Gomes, C. T., & Vichi, C. (2021). Equivalence relations and the contextual control of multiple derived stimulus functions. Journal of the Experimental Analysis of Behavior, 115(1), 405-420.
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Referências: Aquisição do RRAA na infância
Kirsten, E. B., & Stewart, I. (2022). Assessing the development of relational framing in young children. The Psychological Record, 72(2), 221-246.
Lipkens, R., Hayes, S. C., & Hayes, L. J. (1993). Longitudinal study of the development of derived relations in an infant. Journal of Experimental Child Psychology, 56(2), 201-239.
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Sivaraman, M., Barnes‐Holmes, D., & Roeyers, H. (2021). Nonsimultaneous stimulus presentations and their role in listener naming. Journal of the Experimental Analysis of Behavior, 116(3), 300-313.