Ouro de Tolo: Acumulação Financeira e Perfeccionismo como falsos caminhos para uma vida significativa

“Eu devia estar sorrindo/ E orgulhoso/ Por ter finalmente vencido na vida/ Mas eu acho isso uma grande piada/ E um tanto quanto perigosa”

– Trecho de Ouro de Tolo, música de Raul Seixas, 1973

A clareza e o contato com Valores têm se mostrado componentes cruciais em várias das possibilidades de intervenção da psicologia clínica atual. Trata-se de um meio estratégico e ao mesmo tempo cientificamente humilde de facilitar processos sustentáveis e generativos de mudança comportamental (LeJeune & Luoma, 2019). Além disso, a mudança atual no foco dos desfechos clínicos, que deixa de priorizar simplesmente a “redução de sintomas”, exige novas abordagens para avaliar a efetividade das intervenções (Hayes, Hofmann & Wilson, 2020). A aproximação a uma vida flexível e orientada a Valores parece ser um bom “novo guia” para nossas intervenções.

Há de se considerar, porém, alguns percalços no trabalho clínico com Valores. Neste texto comentarei brevemente sobre dois deles: a busca por acumulação financeira e o perfeccionismo, além das suas prováveis relações com elementos próprios do nosso atual modelo de sociedade.

“Bolsa de Valores” por Marc-Antoine Mathieu (p. 16, 1993/2022).

Busca por Acumulação Financeira

A mercantilização é uma das características centrais no modo de produção capitalista. A partir desse processo, todos os recursos necessários para a vida e até mesmo a capacidade de trabalho de uma pessoa são transformados em mercadorias. O dinheiro, além de ser um reforçador condicionado generalizado que media o acesso a bens e serviços, é também uma mercadoria, funcionando como métrica do valor monetário simbólico atribuído a todas as coisas (Fernandes & Tibério, 2023; Skinner, 1986). Nesse contexto, expressões como “todo mundo tem seu valor” podem facilmente ser lidas como “todo mundo tem seu preço” por um interlocutor desavisado.

Se por um lado o alcance ao dinheiro possibilita uma dinâmica de vida minimamente confortável (com acesso a moradia, alimentação, saúde, lazer e educação), por outro, paradoxalmente, uma busca incessante pelo acumulo financeiro, como um fim em si mesmo, pode levar a vida extremamente vazia de qualquer propósito que não seja mercantil. Não é por acaso que diversos dos principais manuais de terapia que abordam Valores descrevem exemplos de como as pessoas podem perder o “contato com a vida” no momento que assumem “ganhar muito dinheiro” como topo da sua pirâmide de prioridades (ex.: LeJeune & Luoma, 2019; Villate, Villate & Hayes, 2015).

O consumismo, a obsolescência programada, a desigualdade e a exclusão social, todos esses são sintomas marcantes de um modelo de sociedade que postula que as coisas (e as pessoas) apenas têm valor mediante a sua capacidade de gerar lucro (Fisher, 2020; Sawaia, 2017; Conceição, Conceição & de Araújo, 2014). Inevitavelmente vamos nos deparar com esses processos quando atuamos na clínica: seja no amparo ao adolescente de classe média que sofre, ao se perceber diferente de seus colegas, por não ter o smartphone recém lançado; ou na atenção à trabalhadora “PJotizada” que vivencia um burnout depois de meses extrapolando todos os seus limites para cumprir as metas do trabalho.

Em síntese, diversas das facetas do adoecimento psicológico e da falta de clareza e desconexão de Valores estão amalgamadas às condições materiais e simbólicas de uma cultura na qual o valor monetário parece se sobrepor a qualquer outro Valor.

Perfeccionismo

Para além de uma superficial “busca pela perfeição”, o perfeccionismo mal adaptativo parece frequentemente estar associado a um rígido movimento de “esquiva da falha” (Ong & Twohing, 2022; Bieling, Israeli & Antony, 2004). Esse movimento, que é sustentado principalmente por reforçamento negativo, direciona as pessoas para um foco em resultado e desempenho (por exemplo, conquistas profissionais), em busca de um estado de segurança (por exemplo, “se eu fizer tudo certo, ninguém poderá me criticar”). Paralelamente a isso, pode surgir uma falta de sensibilidade/aceitação em relação aos limites próprios da experiência humana, o que tende a levar a idealizações e sobrecargas.

Como aponta o filósofo sul-coreano Byung Chul-han (2015), em sua análise sobre o fenômeno da Depressão no contexto social atual: “A lamúria do indivíduo depressivo de que nada é possível só se torna possível numa sociedade que crê que nada é impossível”. Assim, a busca incessante pela perfeição (através da esquiva da falha) e a frustração e ressentimento pela impossibilidade de alcançar os altos padrões e exigências de desempenho são faces opostas de um mesmo fenômeno. Este fenômeno está intimamente ligado a premissas hegemônicas da fase atual do capitalismo, como “basta querer para conquistar” e “se eu consegui, por que você não consegue?”.

O trabalho com Valores parece mobilizar elementos úteis na diluição dos efeitos do perfeccionismo mal adaptativo (Ong & Twohing, 2022), seja pelo “foco no processo” em detrimento de desempenho e resultado, ou pelo caráter não coercitivo, que implica em uma “livre escolha” de qualidades de ação e objetivos abrangentes de vida. No entanto, é importante notar que padrões relacionais amplamente derivados e altamente coerentes tendem a ser mais pervasivos e inflexíveis (Harte et al., 2021). Em outras palavras, uma pessoa com um longo histórico de perfeccionismo e/ou inserida em contextos que reforcem as relações implicadas nesse padrão provavelmente exigirá mais tempo e atenção para se beneficiar plenamente do trabalho com Valores.

A sobra sonora de um disco voador

Em 1973, Raul Seixas lançou “Ouro de Tolo” que viria a se tornar um dos seus primeiros sucessos musicais. Nessa composição autobiográfica, ele narrou o fato de ter alcançado algum sucesso profissional e financeiro (morar em um bairro bacana, ter um carro do ano), ao mesmo tempo que parecia triste e frustrado. A despeito do senso de que deveria agradecer por tudo que conquistou, ele sentia que nada daquilo era tão extraordinário assim, que existiriam outras coisas realmente valiosas a se alcançar e que ficar acomodado poderia ser uma armadilha. Num contexto mais amplo, essa música é um recorte do auge da ditadura militar brasileira, marcada por um milagre econômico de fachada, uma classe média anestesiada, um grande investimento em propagandas ufanistas e incontáveis atos de violência e autoritarismo (Reis, 2014).

Muitas coisas mudaram de lá para cá (ou nem tanto), mas a música de Raul ainda parece bastante atual. Já acompanhei muitos “Rauls” em terapia e, vez por outra, também sou um deles. Desejo que essas reflexões sejam úteis. Parafraseando a música, que nós não nos contentemos apenas a sentar no trono de um consultório com a boca escancarada cheia de dentes esperando o cliente chegar. Que possamos criar contextos onde as experiências da vida possam estar associadas a Valores para além do valor monetário.

Referências

Bieling, P. J., Israeli, A. L., & Antony, M. M. (2004). Is perfectionism good, bad, or both? Examining models of the perfectionism construct. Personality and individual differences, 36(6), 1373-1385.

Conceição, J. T. P., Conceição, M. M., & de Araújo, P. S. L. (2014). Obsolescência programada–tecnologia a serviço do capital. INOVAE-Journal of Engineering, Architecture and Technology Innovation (ISSN 2357-7797), 2(1), 90-105.

Fernandes D. M., & Tibério S. F. (2023). Socialismo e Comportamentalismo: contribuições de uma teoria social para uma teoria psicológica. In: Análise do Comportamento: Dimensões políticas. São Paulo: Instituto Par.

Fisher, M. (2020). Realismo capitalista: é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo?. Autonomia Literária.

Han, B. C. (2015). Sociedade do cansaço. Editora Vozes Limitada.

Harte, C., Barnes-Holmes, D., Barnes-Holmes, Y., & McEnteggart, C. (2021). Exploring the impact of coherence (through the presence versus absence of feedback) and levels of derivation on persistent rule-following. Learning & Behavior, 49, 222-239.

Hayes, S. C., Hofmann, S. G., & Wilson, D. S. (2020). Clinical psychology is an applied evolutionary science. Clinical Psychology Review, 81, 101892.

LeJeune, J., & Luoma, J. B. (2019). Values in therapy: A clinician’s guide to helping clients explore values, increase psychological flexibility, and live a more meaningful life. New Harbinger Publications.

Mathieu, M. (2022). Julius Corentin Acquefacques, prisioneiro dos sonhos: O processo. Comix Zone.

Ong, C. W., & Twohig, M. P. (2022). The Anxious Perfectionist: How to Manage Perfectionism-Driven Anxiety Using Acceptance and Commitment Therapy. New Harbinger Publications.

Reis, D. A. (2014). Ditadura e democracia no Brasil (Vol. 1). Rio de Janeiro: Zahar.

Sawaia, B. (2017). As artimanhas da exclusão: análise psicossocial e ética da desigualdade social. Editora Vozes.

Seixas, R. (1973). Ouro de Tolo [Gravação de áudio]. Krig-ha, Bandolo!. Philips Records.

Skinner, B. F. (1986). What is wrong with daily life in the western world?. American psychologist, 41(5), 568.

Villatte, M., Villatte, J. L., & Hayes, S. C. (2015). Mastering the clinical conversation: Language as intervention. Guilford Publications.

5 7 votes
Classificação do artigo
João Martins de Araújo Júnior

Escrito por João Martins de Araújo Júnior

Sou nordestino, psicólogo (CRP13/7477) e mestre em Neurociência Cognitiva e Comportamento (UFPB). Possuo formação em Mindfulness (Mente Aberta/Unifesp), Psicoterapia Baseada em Evidências (InPBE) e Terapias Comportamentais Contextuais (Atitude Cursos, ACT na prática clínica, Praxis CET, Ceconte, CEFI), em especial na Terapia de Aceitação e Compromisso e nas aplicações clínicas da RFT. Atuo como psicólogo e supervisor clínico em consultório privado. Sou Membro Geral da diretoria do capítulo brasileiro da ACBS no biênio 2024-2025 e representante do Grupo de Interesses Especiais em ACT (SIG ACT Brasil) no biênio 2023-2024, onde contribuo com diversos projetos para a difusão da ACT e da Ciência Comportamental Contextual no Brasil. Tenho particular interesse na Terapia Baseada em Processos e em discussões clínicas que envolvam temas sociais e políticos.

Relação terapêutica importa? O que há de mais novo por aí?

O que não fazer quando seu cliente adulto te conta que sofreu abuso sexual quando era criança ou adolescente