Por que você deveria lutar contra o estigma do transtorno da personalidade borderline

Esse texto é ilustrado por uma imagem que fala sobre esperança, e não sobre sofrimento, desespero ou morte, como usualmente é feito. É importante lembrar: a vida que vale a pena pode doer muito… mas vale a pena.

Maio é o mês de conscientização sobre o transtorno da personalidade borderline (TPB), caracterizado por uma constelação de sintomas psicológicos graves e persistentes e alvo de uma enxurrada de desinformação e preconceito. Características comuns a pessoas com esse diagnóstico incluem alta labilidade emocional, instabilidade nas relações interpessoais, ideação suicida recorrente, impulsividade e sensação crônica de vazio (Lieb et al., 2004). A prevalência na população geral gira em torno de 1 a 3%; já em contextos clínicos ambulatoriais e hospitais psiquiátricos, as taxas chegam a 12% e 22%, respectivamente (Ellison et al., 2018). Altos índices de comportamentos autolesivos e tentativas de suicídio são encontrados entre indivíduos com TPB, que consumam mais suicídio quando comparados à população geral (Pompili et al., 2005). A etiologia do transtorno não se encontra estabelecida, embora haja indicativos de que uma forte influência genética, associada a maus tratos e exposição recorrentes a experiências adversas na infância, possa influenciar seu desenvolvimento e curso (Chapman, 2019).

Por ter sido por muito tempo considerado intratável, o TPB ainda é alvo de estigma e discriminação entre profissionais da saúde mental. A noção de estigma foi popularizada na literatura sociológica estadunidense por Goffman (1978), que resgatou a origem grega do termo, criado para designar sinais corporais que denotassem aspectos extraordinários ou morais da pessoa que os apresentava, para situá-lo enquanto um atributo indesejável, depreciativo e desacreditante, fruto de um processo de categorização com base nas referências culturais presentes em cada contexto. Pessoas que apresentam algum sinal ou característica que possa ser entendida como deletéria ou negativa passam, então, a serem identificadas como ruins, perigosas e indignas.

Existem quatro passos para a produção de estigma sobre um determinado grupo populacional. Inicialmente, as pessoas distinguem e rotulam as diferenças humanas, uma característica inata e socialmente reforçada, que cumpre importantes funções evolutivas. A seguir, entretanto, crenças culturais dominantes relacionam as pessoas rotuladas a características indesejáveis. Então, as pessoas rotuladas são dispostas em categorias, de modo a reificar e reforçar a separação entre “eles” e “nós”. Por fim, as pessoas rotuladas experienciam mudança de status, discriminação e exclusão, que levam a desfechos negativos como desmoralização, restrição das relações sociais e redução de ganhos financeiros (Lucas & Phelan, 2012).

O estigma pode ser dividido em três dimensões: uma explícita, que envolve experiências diretas de discriminação, como recusa de empregos, rejeição social e violência física; outra internalizada, referente ao quanto as pessoas alvo de estigma endossam crenças e sentimentos negativos relacionados a pertencer a um grupo estigmatizado; e uma última de antecipação, ou seja, a expectativa de sofrer preconceito e discriminação (Earnshaw & Chaudoir, 2009). Cada uma dessas dimensões apresenta consequências negativas e bem documentadas em inúmeras populações e grupos socialmente marginalizados, atingindo minorias sexuais e de gênero, raciais/étnicas, religiosas, e por aí vai. Pessoas com transtornos mentais não escapam desse processo. Em termos do TPB, a atribuição de rótulos e julgamentos como “manipuladores”, “resistentes” e “difíceis” a esses indivíduos não são incomuns e podem ter efeitos deletérios sobre o tratamento, contribuindo para abandonos prematuros e evitação de novas procuras por auxílio psicológico e psiquiátrico (Aviram, Brodsky, & Stanley, 2006).

Os desdobramentos do estigma são incontáveis e reverberam na pele de quem é afetado pela rotulação sistemática, feita justamente por quem deveria estar cuidando. Aqui precisamos localizar o papel de profissionais da Psicologia e Psiquiatria na lamentável (re)produção de violência contra uma população que é, sobretudo, descuidada. Estigma é sobre muitas coisas; entre elas, negligência toma facilmente a frente.

Não consigo enxergar cuidado em expressões como “aquela border furiosa”, “borderzinho tinhoso” e “esse aí não se ajuda, só se autossabota”, que já escutei em sala de aula, com direito a gargalhadas da plateia. Aliás, poderia escrever um texto inteiro sobre esse conceito fajuto de autossabotagem, uma das piores balelas que a Psicologia já ajudou a inventar (aqui tem um post sobre isso). Também não enxergo cuidado no uso indiscriminado da palavra “manipulação”. O quanto você – seja numa relação terapêutica, familiar ou de amizade – não está contribuindo, sem perceber, para manter comportamentos que julga como “manipuladores”?

Experiências de vida que são ridicularizadas e reduzidas a estereótipos de “pacientes de livro”. Pessoas com TPB não cabem em estereótipos que fazem escárnio dessa condição clínica, debochando, minimizando e caricaturizando. Tudo coberto com uma benevolência prepotente. Acho, aliás, que essa é uma das coisas que mais tem me tirado do sério em relação a esse assunto. “Eu amo atender pacientes borderline“. Em geral, esse tipo de comentário vem acompanhado de todo tipo de interpretação questionável sobre como faltam limites a essas pessoas. É papel do “psicotira”, o sagrado guardião dos limites, impô-los, obviamente. Afinal, “tudo é pouco” para pessoas com TPB. Nunca estão satisfeitas, essas mal-agradecidas; já não faço o suficiente atendendo-as quando ninguém mais quer pegar esses casos insuportáveis? Olha como sou bonzinho e sensível.

É preciso denunciar e escancarar julgamentos e discriminações veladas sob o rótulo equivocado de cuidado. Fico me perguntando o que pacientes diriam se lessem o que é escrito e dito sobre eles entre redes sociais, congressos, supervisões clínicas e comentários profissionais informais. É urgente que sejam abordados de maneira explícita, nos cursos de graduação e educação continuada, os prejuízos decorrentes do estigma atrelado a essa população. Talvez seja pertinente lembrar que todo o mundo, em maior ou menor grau, sente dor. Afinal, somos seres humanos. Só que muitas vezes, o julgamento social a respeito dessa dor a transforma em sofrimento. Será que a dor intensa já não é suficiente?

Não esqueçamos que, antes de terem um CID ou código do DSM-5, pessoas com TPB são portadoras de humanidade. É preciso lembrar que uma pessoa não se resume ou é definida por um diagnóstico e que manuais epidemiológicos e estatísticos descrevem populações, e não indivíduos. Além disso, reconhecer a vulnerabilidade pervasiva característica de pessoas com esse transtorno é diferente de fragilizá-las. Elas não precisam de condescendência pseudoterapêutica; já estão suficientemente preocupadas em manterem-se vivas numa sociedade profundamente invalidante.

As redes profissionais de saúde mental não escapam disso, criando muitas vezes um terreno infernal para colegas terapeutas que tem um diagnóstico pessoal de TPB. Esse é um tema relevante e pouco explorado. Um número expressivo de terapeutas guarda a sete chaves esse segredo, apresentando com recorrência medo de exposição indevida do diagnóstico, sentimentos de vergonha e culpa de quem se é e receio de julgamentos e perdas de oportunidades profissionais. Você, terapeuta com TPB que talvez esteja lendo esse texto, tem tanta dignidade e capacidade profissional quanto as outras pessoas. Sua vulnerabilidade pessoal pode ser uma ferramenta preciosa para se conectar e ajudar outras pessoas que sofrem intensamente a terem uma vida valiosa.

Terapeutas que trabalham com a população borderline precisam se engajar ativamente na luta contra o estigma, observar os próprios julgamentos e fazer ação oposta ao medo de posicionar-se quando presenciam colegas fazendo comentários antiéticos, pejorativos e inapropriados. Profissionais que atendem a essa população precisam sustentar suas intervenções a partir do paradigma da prática baseada em evidências: 1) consultar o que existe de melhor na literatura científica, 2) desenvolver perícia técnica e 3) individualizar o tratamento a partir das características, cultura e preferência de cada pessoa. Será que é ético oferecer a alguém tratamentos que não funcionam só porque somos apaixonados por uma teoria? Capacitação profissional sistemática é essencial para evitar os possíveis efeitos iatrogênicos de condutas clínicas sem respaldo científico. Com qualificação do trabalho psicológico, é possível auxiliar indivíduos com TPB a construírem uma vida que vale a pena ser vivida. A despeito dos incêndios provocados pelo estigma e a discriminação, é possível ajudar as pessoas a florescerem.

Referências

Chapman, A. L. (2019). Borderline personality disorder and emotion dysregulation. Development and Psychopathology, 31(3), 1143-1156.

Earnshaw, V. A., & Chaudoir, S. R. (2009). From conceptualizing to measuring HIV stigma: A review of HIV stigma mechanism measures. AIDS and Behavior, 13(9), 1160-1177.

Ellison, W. D., Rosenstein, L. K., Morgan, T. A., & Zimmerman, M. (2018). Community and clinical epidemiology of borderline personality disorder. Psychiatric Clinics of North America.

Goffman, E. (1978). Estigma: Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada (2a ed.). Rio de Janeiro: Zahar.

Kramer, U., Charbon, P., Despland, J. N., & Kolly, S. (2017). “Good enough” training in clinical practice for BPD?. Swiss Archives of Neurology, Psychiatry and Psychotherapy, 168(8).

Lieb, K., Zanarini, M. C., Schmahl, C., Linehan, M. M., & Bohus, M. (2004). Borderline personality disorder. The Lancet, 364(9432), 453–461.

Lucas, J. W., & Phelan, J. C. (2012). Stigma and status: The interrelation of two theoretical perspectives. Social Psychology Quarterly, 75(4), 310-333.

Pompili, M., Girardi, P., Ruberto, A., & Tatarelli, R. (2005). Suicide in borderline personality disorder: A meta-analysis. Nordic Journal of Psychiatry, 59(5), 319–324.

Putrino, N., Casari, L., Mesurado, B., & Etchevers, M. (2020). Psychotherapists’ emotional and physiological reactions toward patients with either borderline personality disorder or depression. Psychotherapy Research, 30(7), 912-919.

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Escrito por Ramiro Figueiredo Catelan

Doutor em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Mestre em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Especialista em Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) pelo Centro de Estudos da Família e do Indivíduo (CEFI). Psicólogo graduado pela PUCRS (CRP 07/26017). Terapeuta certificado e membro do grupo de doutores da Federação Brasileira de Terapias Cognitivas (FBTC). Tem Treinamento Intensivo em Terapia Comportamental Dialética (DBT) pelo Behavioral Tech/The Linehan Institute (EUA). Tem Formação em Psicoterapia Baseada em Evidências pelo Instituto de Psicologia Baseada em Evidências (InPBE). Tem Formação em Terapia Cognitiva Sexual (TCS - Prof. Dra. Aline Sardinha). Sócio-proprietário da Sínteses - Psicologia, Psiquiatria e Ensino, onde atua como psicoterapeuta, supervisor clínico, professor e coordenador da Formação em Terapia Afirmativa para Minorias Sexuais e de Gênero: Modelos Cognitivos e Contextuais, primeira formação clínica no Brasil voltada para a população LGBT. Pesquisador colaborador do Laboratório de Pânico e Respiração do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde atualmente está estruturando o Núcleo de Pesquisa em Devaneio Excessivo e Desregulação Emocional (NUPDE). Integrante do International Consortium for Maladaptive Daydreaming Research (ICMDR). Diretor de Diversidade, Equidade e Inclusão da International Society for Maladaptive Daydreaming (ISMD). Integrante da World Professional Association for Transgender Health (WPATH). Membro do Núcleo de Estudos e Consultoria em Terapia Comportamental Dialética (NEC-DBT). Professor convidado em diversas instituições de especialização, formação e educação continuada. Tem experiência de atendimento clínico direcionado especialmente a pessoas com transtorno da personalidade borderline, transtorno da personalidade obsessivo-compulsiva, desregulação emocional pervasiva, comportamento suicida e transtornos de humor refratários, além de minorias sexuais e de gênero. Tem interesse de pesquisa em fatores associados ao devaneio excessivo, adição a fantasias e estados de absorção dissociativa. Está envolvido em colaborações internacionais de investigação com grupos da University of Haifa (Israel), Ben-Gurion University of the Negev (Israel), University of Connecticut (EUA) e Canterbury Christ Church University (Inglaterra). É defensor contumaz da Prática Baseada em Evidências e contrário a qualquer tipo de negacionismo científico (dentro e fora da academia).

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