LGBT é um termo guarda-chuva para designar as comunidades de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros, ou seja, pessoas cujas orientações sexuais e/ou identidades de gênero encontram-se dissidentes dos modelos socialmente predominantes (para uma síntese de termos e conceitos, cf. glossário elaborado por Galli e Catelan [1]). Os efeitos da exposição ao preconceito e à violência nessa população encontram-se bem documentados na literatura científica. Indivíduos LGBT apresentam maior risco de desenvolver sintomas de depressão [2], ansiedade [3] e uso excessivo de substâncias [4]. Os indicadores de ideação suicida e tentativas de suicídio são elevados, especialmente entre pessoas transgênero, podendo chegar a 43% [5]. Homens gays e bissexuais apresentam maior risco para HIV e outras infecções sexualmente transmissíveis [6], vulnerabilidade ainda mais acentuada em mulheres trans [7]. Há ainda agravos referentes à rejeição familiar [8], dificuldades de ingresso e permanência no mercado de trabalho [9] e evasão escolar [10], entre inúmeros outros desfechos negativos que os estudos têm denominado estresse de minoria, que são experiências únicas de estresse e sofrimento enfrentadas por indivíduos LGBT associadas ao preconceito [11].
A pandemia do novo coronavírus, que começou a flagelar o mundo no começo de 2020, distribui seus efeitos deletérios entre toda a população, de maneira geral. Mas essa distribuição não é equânime e uniforme. Uma pesquisa realizada pela UFMG e a Unicamp com mais de 10 mil indivíduos LGBT (cf. https://www.votelgbt.org/pesquisas) indicou que 10% deles apontaram grandes preocupações com o convívio familiar durante o período de isolamento. Também foi reportado o aumento de problemas de saúde mental, bem como dificuldades financeiras (21,6% informaram estar desempregados, enquanto o indicador mais recente na população geral é de 12,2%). Para muitos deles, ter a circulação restrita implica a intensificação da experiência de ausência de apoio familiar, a limitação do convívio com amizades, redes de apoio saudáveis e parcerias afetivas/sexuais, bem como cuidados ainda maiores para manter o status da sua orientação sexual/identidade gênero ocultos (o famoso “sair do armário”). Especificamente em relação à população transgênero, o período de isolamento significa muitas vezes postergar planos de realização de procedimentos de afirmação de gênero (e.g., terapia hormonal e cirurgias), ampliação de crises de disforia de gênero (e.g., desconforto e mal-estar com o próprio corpo), aumento da probabilidade de sofrer violência física intrafamiliar e impossibilidade de exercício profissional (e.g., para aquelas mulheres trans que são trabalhadoras sexuais).
E o que fazer em relação a isso tudo quando estamos tratando um indivíduo LGBT em psicoterapia? A Terapia Comportamental Dialética (DBT), abordagem criada por Linehan [12] para tratar pessoas com intenso sofrimento emocional, pode nos oferecer instrumentos valiosos para ajudar indivíduos LGBT nesse cenário difícil. As habilidades de mindfulness propostas como o núcleo central da DBT proporcionam uma conexão com o momento presente, por mais doloroso que seja, sem negar ou refutar a realidade, tampouco se apegando a ela. O trabalho com estas ferramentas auxilia a reduzir comportamentos automatizados e impulsivos e permite, entre outros aspectos, tomar decisões mais efetivas em conflitos familiares decorrentes da discriminação, reduzir a frequência e intensidade do preconceito internalizado (cognições autodepreciativas sobre o próprio gênero/sexualidade) e “dar um passo de cada vez” (e.g., no caso de uma mulher trans, garantir segurança financeira para as necessidades básicas neste momento para, então, voltar a economizar para conseguir colocar implantes de silicone).
Trabalhar as habilidades de regulação emocional permite que a pessoa entenda e reconheça seus estados emocionais e perceba quais fatores podem deixá-la mais suscetível a experimentá-los de maneira mais intensa. A partir daí, aprende-se a separar os fatos das interpretações que temos sobre eles, o que ajuda, por exemplo, a identificar precisamente quando se está passando por uma situação de discriminação e, especialmente, avaliar a efetividade de agir sob efeito das emoções. A análise de qual atitude tomar é contextual e depende sempre das circunstâncias. Enquanto há vezes em que vale a pena seguir o impulso de uma emoção (e.g., mandar uma mensagem carinhosa para o namorado quando sente saudade), às vezes o mais seguro será agir ao contrário do que a emoção impulsiona a pessoa a fazer (e.g., afastar-se do pai quando ele faz um insulto homofóbico que provoca raiva, evitando retaliações agressivas), enquanto em outros momentos será preciso solucionar o problema que disparou a reação emocional para que ela diminua de intensidade (e.g., conversar com a família sobre como é frustrante ouvir “piadas” preconceituosas todos os dias no jantar). Para manter o equilíbrio emocional, é pertinente trabalhar a importância dos cuidados com o corpo, sono, alimentação e uso de substâncias (e.g., indivíduos que moram sozinhos podem consumir mais álcool para manejar o desconforto da solidão e/ou ausência de contato sexual). Ainda, construir, diariamente, pequenos gestos e atividades de autocuidado é útil para acessar emoções mais positivas a curto e longo prazo (e.g., experiências de alegria podem aumentar falando mais frequentemente com amigas/os no WhatsApp ou videochamadas).
A relação de indivíduos LGBT com suas famílias em muitos casos é conflituosa, seja pela necessidade de esconder sua orientação sexual/identidade de gênero para não sofrer rejeição, seja pela experiência recorrente de invalidação, incompreensão e agressões (físicas e verbais) quando a sexualidade e o gênero já são publicamente conhecidos. As habilidades de efetividade interpessoal oferecem recursos para avaliar quais são as prioridades no contato social e como se portar diante de cada situação. Isso permite desenvolver mais assertividade na comunicação, de modo a aumentar as chances de obter o que se deseja em cada interação (e.g., uma pessoa trans que está sendo tratada com seu nome de nascimento pode expressar como se sente mal com isso, pedir que a chamem pelo nome que escolheu para si e apontar os efeitos positivos que essa mudança terá na convivência e nos sentimentos dela pela família). Essas habilidades também possibilitam aprender a se defender e impor limites diante de situações de preconceito, sempre avaliando a possibilidade e o grau de intensidade do comportamento a depender das circunstâncias (e.g., autonomia financeira, segurança, risco de expulsão de casa etc.).
Um dos efeitos mais marcantes da pandemia na população geral é o desencadeamento de crises psicológicas de curto prazo que podem gerar descontrole emocional e, em muitos casos, comportamentos de risco à vida. Na população LGBT, isso pode ser ainda mais intenso. As habilidades de tolerância ao mal-estar ensinam a manejar essas situações sem piorar o momento. Por exemplo, um homem trans que perdeu o emprego, teve que interromper o tratamento hormonal e experimentou uma crise disfórica após voltar a menstruar pode segurar um cubo de gelo em cada mão até derreter, tomar um banho gelado ou fazer respirações lentas e compassadas, de modo a atenuar e interromper a sensação de crise. Ainda, uma menina lésbica que ficou muito mal quando falou que sente saudade da namorada e os pais minimizaram seu sentimento pode ser ensinada a registrar e usar diversas maneiras de se distrair, se acalmar, melhorar o momento e aliviar o sofrimento (e.g., ligar para a namorada, conversar com grupo de amigas/os no WhatsApp, assistir à sua série favorita, ouvir uma música relaxante, sentir o cheiro de um perfume do qual goste etc.).
Ninguém gostaria de estar passando pelas dores provocadas por essa grande crise humanitária. Da mesma maneira, é lamentável que a população LGBT seja exposta reiteradamente a tantas agressões e iniquidades, agravadas pelo período de isolamento físico decorrente da pandemia. A DBT nos ensina que as crises, embora intensas e devastadoras, são temporárias, e que o primeiro passo para mudar a realidade (dentro do que é possível) é aceitá-la. Neste momento, uma das principais tarefas de terapeutas que trabalham com indivíduos LGBT é 1) promover o amparo, validação e acolhimento que muitas vezes não são encontrados no núcleo familiar e ensinar estratégias para 2) viver o momento presente, 3) lidar com emoções intensas, 4) manejar relações interpessoais difíceis, 5) estimular os vínculos sociais positivos vigentes (ou ajudar a criá-los) e 6) diminuir o desconforto das crises. Apesar do preconceito e da incompreensão, é possível construir uma vida que vale a pena ser vivida conforme seus próprios critérios, interesses e valores.
Referências
[1] Galli, G., & Catelan, R. F. (2017). Entre equívocos e disputas: conceitos sobre gênero e sexualidade em constante transformação. Instituto Humanitas, ed. 507. Disponível em: http://www.ihuonline.unisinos.br/artigo/6915-entre-equivocos-e-disputas-conceitos-sobre-genero-e-sexualidade-em-constante-transformacao
[2] Ross, L. E., Salway, T., Tarasoff, L. A., MacKay, J. M., Hawkins, B. W., & Fehr, C. P. (2018). Prevalence of depression and anxiety among bisexual people compared to gay, lesbian, and heterosexual individuals: A systematic review and meta-analysis. The Journal of Sex Research, 55(4-5), 435-456.
[3] Francisco, L. C. F. D. L., Barros, A. C., Pacheco, M. D. S., Nardi, A. E., & Alves, V. D. M. (2020). Anxiety in sexual and gender minorities: an integrative review. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, 69(1), 48-56.
[4] Slater, M. E., Godette, D., Huang, B., Ruan, W. J., & Kerridge, B. T. (2017). Sexual orientation-based discrimination, excessive alcohol use, and substance use disorders among sexual minority adults. LGBT health, 4(5), 337-344.
[5] Chinazzo. I. R., Lobato. M. I. R., Nardi, H. C., Koller, S. H., Saadeh, A., & Costa, A. B. Impacto do estresse de minoria em sintomas depressivos, ideação suicida e tentativa de suicídio em pessoas trans. Ciência & Saúde Coletiva.
[6] Kerr, L., Kendall, C., Guimarães, M. D. C., Mota, R. S., Veras, M. A., Dourado, I., … & Knauth, D. (2018). HIV prevalence among men who have sex with men in Brazil: results of the 2nd national survey using respondent-driven sampling. Medicine, 97(1 Suppl).
[7] Costa, A. B., Fontanari, A. M. V., Jacinto, M. M., da Silva, D. C., Lorencetti, E. K., da Rosa Filho, H. T., … & Lobato, M. I. R. (2015). Population-based HIV prevalence and associated factors in male-to-female transsexuals from Southern Brazil. Archives of Sexual Behavior, 44(2), 521-524.
[8] Klein, A., & Golub, S. A. (2016). Family rejection as a predictor of suicide attempts and substance misuse among transgender and gender nonconforming adults. LGBT health, 3(3), 193-199.
[9] Costa, A. B., Brum, G. M., Zoltowski, A. P. C., Dutra-Thomé, L., Lobato, M. I. R., Nardi, H. C., & Koller, S. H. (2020). Experiences of discrimination and inclusion of Brazilian transgender people in the labor market. Revista Psicologia Organizações e Trabalho, 20(2), 1040-1046.
[10] Sansone, D. (2019). LGBT students: New evidence on demographics and educational outcomes. Economics of Education Review, 73, 101933.
[11] Meyer, I. H. (2003). Prejudice, social stress, and mental health in lesbian, gay, and bisexual populations: conceptual issues and research evidence. Psychological bulletin, 129(5), 674.
[12] Linehan, M. (2010). Terapia cognitivo-comportamental para transtorno da personalidade borderline. Porto Alegre: Artmed.