Quando uma instituição que auxilia no manejo de pessoas em risco de suicídio recebe um caso de alto risco que recusa tratamento, ela se encontra em um dilema delicado. Em certas situações, opta-se pela internação involuntária, prezando pela segurança da pessoa. Entretanto, há questões legais e terapêuticas a serem consideradas. Com relação ao segundo ponto, por exemplo, nota-se que se torna mais difícil – e inviável em alguns casos – o estabelecimento de um bom vínculo terapêutico entre terapeuta e pessoa atendida, caso ela seja coagida a seguir o tratamento.
Em função desse dilema, Jerome Motto, em 1976, publicou um artigo referente a uma pesquisa que realizou com pessoas que estavam em alto risco para suicídio que recusaram tratamento. Em seu estudo, entre 1968 e 1974, 3006 pacientes de instituições psiquiátricas de São Francisco foram identificados como em alto risco para suicídio. O padrão era que tais pacientes recebessem alguma forma de tratamento – como sessões de psicoterapia individual com, pelo menos, um mês de duração –, embora pudessem recusá-lo. As pessoas que não aceitaram tal tratamento foram divididas randomicamente em dois grupos: o que receberia caring letters (grupo contato) e o que não as receberia (grupo não-contato).
Caring letter é uma intervenção para prevenção ao suicídio que consiste em formas de contatos entre uma instituição de prestação de serviço de saúde e uma pessoa atendida em risco para suicídio, na qual a instituição envia mensagens rotineiras para pacientes, expressando cuidado de uma forma breve. Ela pode assumir diversos formatos, como envio de cartas, cartões postais, e-mails, contatos telefônicos ou de forma presencial, na qual a pessoa em risco se dirige à instituição.
No artigo original, Motto mostra um exemplo de uma caring letter. Neste texto, optou-se por
utilizar uma tradução livre dela. Nota-se que o contato é breve, expressa
cuidado à pessoa e não possui um caráter demandante.
Caro(a) _________,
Faz um tempo desde que você
esteve no hospital e esperamos que tudo esteja caminhando para ti. Se desejar
nos deixar alguma mensagem, adoraríamos ouvir notícias de você.
Atenciosamente,
Isto posto, houve um cronograma de envio para as caring letters. Nos 4 primeiros meses, foram feitos contatos mensais. Do 5° ao 13° mês, contatos bimestrais. Do 14° ao 60° mês, contatos trimestrais. Deste modo, houveram, ao todo, 24 contatos em um período de 5 anos. Motto estimou que o efeito cumulativo dos contatos seria eficaz para a prevenção ao suicídio.
Abaixo, encontra-se o gráfico referente aos resultados da intervenção de Motto.
Nota-se que o grupo contato (o que recebeu as caring letters) apresentou a menor porcentagem de suicídios, quando comparado com os outros. De acordo com David Luxton e colaboradores (2014), entusiastas da intervenção, a pesquisa original de Motto mostra que o grupo contato apresentou declínio estatisticamente significativo na taxa de morte por suicídio, quando comparado com o grupo não-contato.
Uma interpretação possível para o efeito positivo de caring letters pode ser pela percepção de pessoas em risco para suicídio da instituição sentir que pacientes importam, favorecendo uma humanização da prestação de serviço. É comum ouvir críticas de pessoas em alto risco para suicídio referentes a experiências bastante aversivas nestas instituições, como banalização do sofrimento psicológico intenso e da queixa de suicídio. Caring letters navegam contra a correnteza neste aspecto.
Intervenções que visem prevenir o suicídio comumente são compreendidas como sofisticadas, delicadas e bastante complexas. No caso de caring letters, observa-se certa simplicidade delas e seu impacto. Evidente que o objetivo deste texto não é retirar o mérito de Motto da intervenção, e sim de explorar como estratégias relativamente simples podem ser eficazes. O artigo de Luxton e colaboradores (2014) está buscando testar o efeito de caring letters (via e-mails, neste caso) em veteranos de guerra estadunidenses.
O suicídio é um assunto delicado. Se você sente que precisa de algum auxílio, entre em contato com algum(a) profissional especializado(a) ou com o Centro de Valorização da Vida (CVV), através do número 188 ou através do site https://www.cvv.org.br/. Profissionais desta ONG estão disponíveis 24 horas para poder lhe ajudar.
Referências:
Luxton, D. D., Thomas, E. K., Chipps, J., Relova, R. M., Brown, D., McLay, R., … & Smolenski, D. J. (2014). Caring letters for suicide prevention: Implementation of a multi-site randomized clinical trial in the US military and veteran affairs healthcare systems. Contemporary clinical trials, 37(2), 252-260.
Motto, J. A. (1976). Suicide prevention for high‐risk persons who refuse treatment. Suicide and Life‐Threatening Behavior, 6(4), 223-230.