Uma forma bastante pertinente de compreender a ansiedade social é em termos de um continuum ou de um espectro. A ideia de considerar alguns fenômenos comportamentais – especialmente no campo da psicopatologia – como sendo parte de um espectro não é novidade. O exemplo mais conhecido é o autismo, que costuma ser referido como “espectro do autismo”. Outros exemplos incluem o espectro do transtorno obsessivo compulsivo (TOC) e o espectro da esquizofrenia (APA, 2014). Será que esse raciocínio pode ser aplicado adequadamente aos casos de ansiedade social? Quais as implicações deste entendimento para a prática clínica comportamental?
Para Butler (1999), a ansiedade social é um termo que descreve o medo, nervosismo e apreensão que a maioria das pessoas sente em situações de exposição social. Sendo uma experiência comum da espécie humana, provavelmente com valor de sobrevivência, pressupõe-se que o seu aparecimento é inevitável diante de situações sociais avaliativas, como falar em público para um grupo de desconhecidos ou interagir com pessoas novas em geral.
Partindo desta caracterização geral, percebe-se uma semelhança significativa com outros padrões comportamentais, cujos termos são diferentes, a saber: timidez, fobia social/transtorno de ansiedade social e transtorno de personalidade evitativa. Tanto o sujeito descrito como tímido, fóbico social ou com personalidade evitativa sentem ansiedade e preocupação quando são expostos à avaliação dos outros. O que varia, predominantemente, é o grau em que a ansiedade e a preocupação é experimentada, embora cada condição apresente diferenças em termos de prejuízo no funcionamento social e ocupacional e nos padrões de evitação (APA, 2014).
Ora, se o que varia (predominantemente) é o grau da experiência de ansiedade/preocupação, é necessário utilizarmos termos diferentes para descrevê-la?
Embora os manuais diagnósticos apresentem algumas diferenças que poderiam ser consideradas qualitativas entre estes quadros, o argumento mais aceito é o de que, em última análise, a ansiedade social não possui diferenças qualitativas em relação à timidez, fobia social ou o transtorno de personalidade evitativa, de modo que é mais útil pensa-la em termos de um continuum de gravidade (Heiser, Turner, Beidel & Roberson-Nay, 2009).
Assim, um tímido, por exemplo, apresentaria menos ansiedade e evitação em uma situação social do que um fóbico social que, por sua vez, apresentaria menos ansiedade e evitação do que um indivíduo com transtorno de personalidade evitativa, sendo esta a condição mais grave.
Nesse sentido, o que se tem são nomes diferentes para o mesmo fenômeno. De acordo com este modelo, temos a ansiedade social “normal” em um extremo do continuum e o transtorno de ansiedade social/personalidade evitativa no outro, revelando diferenças basicamente quantitativas, ou seja, diferenças no nível de intensidade dos sintomas, nível de sofrimento, evitações, prejuízos maiores ou menores, etc. (Van Velzen, Emmelkamp & Scholing, 2000).
Pensar a ansiedade social desta forma – como um continuum de gravidade – parece compatível com o modelo analítico-comportamental, uma vez que a preocupação central da análise do comportamento é com a função do comportamento e não com sua topografia. Ou seja, independentemente do termo que utilizarmos para descrever um padrão comportamental, estamos interessados nas consequências que este padrão produz e nos contextos em que ele ocorre. Isso é compreender o fenômeno em termos de contingências de reforço.
Além da clara semelhança topográfica entre estes padrões, certamente há semelhanças funcionais relevantes. Podemos considerar que se tratam de equivalentes funcionais. Ou seja, os comportamentos de cautela, evitação de interação social, pouco contato visual, etc., podem possuir, basicamente, a função de esquiva de críticas e julgamentos dos outros, logo, mantidos por reforço negativo (Gouvêa & Natalino, 2018).
Para fins de intervenção clínica, nomear estes padrões de formas diferentes pode confundir o terapeuta na hora de realizar um diagnóstico, gerar comorbidades desnecessárias (por exemplo, um cliente com fobia social e transtorno de personalidade evitativa) e gerar confusão nas próprias intervenções. Ora, se eu tenho padrões semelhantes tanto em termos topográficos quanto funcionais, posso direcionar minha intervenção em um sentido comum, considerando, evidentemente, a particularidade de cada cliente.
Concluindo, ainda que alguns pesquisadores defendam a existência de diferenças qualitativas entre alguns destes padrões, a hipótese do continuum parece a mais apropriada, uma vez que os processos comportamentais envolvidos parecem ser análogos. Estas supostas diferenças qualitativas – onde a timidez seria um padrão mais amplo e heterogêneo do que a fobia social, por exemplo – ainda não estão muito claras na literatura e na observação clínica, reforçando a hipótese do continuum.
Uma vez que diferenças qualitativas relevantes sejam encontradas, pode-se repensar este modelo. Para isso, precisamos de mais pesquisas sistemáticas sobre o assunto. Não se trata de simplificar o fenômeno que, por sinal, é extremamente complexo, mas sim de detectar e intervir nas variáveis funcionalmente relevantes, sobretudo no contexto clínico.
Referências
APA (2014). DSM-V: Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais. Porto Alegre: Artmed.
Butler, G. (1999). Overcoming social anxiety and shyness: A self-help guide using cognitive behavioral techniques. London: W69ER.
Heiser, M. A., Turner, S. M., Beidel, D. C., & Roberson-Nay, R. (2009). Differentiating social phobia from shyness. Journal of Anxiety Disorders, vol. 23 (4), pp. 469-476.
Gouvêa, P. J. S. C., & Natalino, P. C. (2018). Ansiedade social como fenômeno clínico: um enfoque analítico-comportamental. Em A. K. C. R, de-Farias, F. N. Fonseca & L. B. Nery (Orgs.), Teoria e formulação de casos em análise comportamental clínica. Porto Alegre: Artmed.
Van Velzen, C. J. M., Emmelkamp, P. M. G., & Scholing, A. (2000). Generalized social phobia versus avoidant personality disorder: diferences in psychopathology, personality traits, and social and ocupational functioning. Journal of Anxiety Disorders, vol. 14 (4), pp. 395-411.