Compreendendo a Desfusão Cognitiva

(Esse artigo é uma continuação do anterior. Sugiro ler esse texto antes de continuar)

A Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT), em sua teoria, apresenta o modelo de Flexibilidade Psicológica, que é organizado em seis processos. Os processos não são protocolos ou etapas da terapia. Na verdade, eles estariam interligados entre si, relacionados uns aos outros. Ao trabalhar com um, é bem provável que estejas trabalhando com outros. Um desses processos se chama Desfusão Cognitiva. O nome desse processo advém do contrário, a Fusão Cognitiva. Essa última, por sua vez, está relacionada aos contextos da linguagem: dar razão, avaliação, controle e, principalmente, literalidade.

Fusão Cognitiva (FC) é estar fundido, fixado, preso aos eventos privados, considerando-os verdadeiros ou reais. Quanto maior a FC, mais incapaz a pessoa será de diferenciar esses eventos privados das contingências ambientais (Luoma, Hayes & Walser, 2007). Ou seja, pensar ou sentir literalmente é o que está acontecendo no ambiente fora de mim. Considerando a evolução das espécies e a famosa seleção natural, se temos facilidade de estarmos fundidos cognitivamente, é porque isso funciona e é útil para nossa adaptação e sobrevivência. Não há dúvidas disso. Afinal, chegamos onde estamos muito pela habilidade que temos de, entre outras, classificar, prever, explicar, comparar, preocupar e julgar. Proteção e adaptação parecem ser as funções da cognição.

O problema é que a linguagem se desenvolve a partir de relações que são arbitrariamente definidas e derivadas (não necessariamente provindas) da experiência vivida. Ou seja, é possível que a cognição nos proteja de algo que já aconteceu, nunca aconteceu, não esteja acontecendo agora ou nem se sabe se vai acontecer. Hayes já disse que “quando tomamos o pensamento literalmente, estamos à mercê de toda a experiência da vida” (Hayes & Smith, 2005). Então o problema não é ter fusão cognitiva (ela é muito útil), mas não conseguir discriminar quando a fusão está sendo útil ou não para dirigir a vida ao que vale a pena.

Desfusão Cognitiva (DC) nada mais é do que procurar mudar as funções dos eventos privados (pensamentos, emoções, lembranças, etc.), principalmente quando lutamos contra eles (“não quero pensar nisso”, “não quero sentir isso”). Visa mudar a forma como nos relacionamos e interagimos com nossos pensamentos. É observar os pensamentos e não observar a partir deles (Luoma, Hayes & Walser, 2007).

Você já viu filme 3D no cinema? Metaforicamente, a DC seria como uma sessão de um filme de cinema em 3D. O filme em si, na verdade é em 2D (largura e altura). O 3D (profundidade) é possível porque se grava com dóculos 3Duas câmeras, uma ao lado da outra, como se fosse nossa visão. O óculos usado para ver em 3D permite passar certas cores em uma lente e outras na outra lente e isso nos dá a noção de profundidade, de
perspectiva. Voltando a DC: temos diversos comportamentos governados por regras. Alguns desses são muito úteis para nos aproximar do que é importante para nós; outros são mantidos por consequências aversivas. DC é tomar uma perspectiva desses pensamentos/regras. É “usar um óculos” para ter uma noção de “profundidade” dessas regras, assim como se tem essa mesma noção das cenas de um filme em 3D.

O cuidado que temos que ter é que as práticas de DC não existem para eliminar ou controlar o sofrimento associado aos eventos privados (até porque, como vimos no texto anterior, isso só mantem o sofrimento). Na verdade, praticar a DC é aprender a estar no momento presente, de forma mais ampla, gentil e flexível possível. E é aí que exercícios de mindfulness colaboram para a prática da DC. Uma prática possível é de, durante o exercício, propor que a pessoa se imagine sentado em um cinema e que cada pensamento, emoção, lembrança que seja desagradável ou sofrida, e que a pessoa tenha vivido ou esteja vivendo, seja “jogado” na tela do cinema, com se fosse um filme. Ou ainda imaginar-se em um parque, próximo de um riacho, com folhas passando pela água, seguindo seu curso, e que em cada folha conste o pensamento ou emoção que esteja associado ao sofrimento.

Também é possível praticar a rotulação dos pensamentos, isto é, pontuar que o pensamento é um pensamento. Treina-se esse distanciamento do pensamento através da diferença entre “Sou um fracasso” e “Estou tendo um pensamento de que sou um fracasso”. O interessante é que as relações e significados do “Fracasso” permanecem na experiência do sujeito. Mas o treino leva à diminuição da literalidade dessas relações e faz com que o sofrimento associado à literalidade também diminua.

Outra forma de treinar a habilidade de considerar o pensamento como ele realmente é (apenas pensamento) é colocando o pensamento associado ao sofrimento em um contexto diferente do esperado. Por exemplo: cantar o pensamento “minha vida não vale nada” como se fosse parabéns a você ou o hino do seu time de futebol. É algo que foge do contexto. O interessante é notar o que acontece com as emoções quando as mesmas palavras são colocadas em outro contexto (música): tendem a mudar também. A ideia é mostrar que o sofrimento associado as palavras do pensamento perde a função quando as mesmas palavras são colocadas em outro contexto. Ou seja, o pensamento é apenas palavras que arbitrariamente foi relacionado àquela emoção desagradável. O pensamento em si não diz o que a pessoa é, fez ou faz. Muitos outros exercícios podem ser feitos ou criados com o objetivo de auxiliar a pessoa a notar que ela não é seus pensamentos ou emoções (na verdade, é muito mais do que isso). Use a sua criatividade como terapeuta para desenvolvê-los.

Há uma tendência a fazer DC com pensamentos e emoções relacionadas ao sofrimento, pois a literalidade desses eventos privados pode levar à esquiva da experiência, o que, por reforço negativo, mantém o comportamento de lutar contra esse próprio sofrimento, desenvolvendo a inflexibilidade psicológica. Somente a desfusão cognitiva não faz com que a pessoa se aproxime de uma vida valiosa. Também não é um botão que liga e desliga: “agora estou desfundido e estarei desfundido sempre”. Na verdade, passamos a maior parte do dia na Fusão Cognitiva (e isso é ok). Desfusão é um treino discriminativo que nos auxilia a ter maior disposição ao contato com o momento presente, no aqui agora, sem julgamento e em maior contato com as contingências, favorecendo a aceitação da experiência vivida.

 

Referências:
Luoma, J. B., Hayes, S. C., & Walser, R. D. (2007). Learning ACT: an acceptance & commitment therapy skills-training manual for therapists. New Harbinger Publications.

 

Hayes, S. C., & Smith, S. (2005). Get out of your mind and into your life: the new acceptance and commitment therapy. New Harbinger Publications.

 

5 14 votes
Classificação do artigo

Escrito por Igor da Rosa Finger

Psicólogo (PUCRS). Doutor em Psicologia (PUCRS). Mestre em Psicologia, com ênfase em Psicologia Clínica (PUCRS). Colaborador do Grupo de Pesquisa Avaliação e Atendimento em Psicoterapia Cognitiva e Comportamental (PUCRS). Treinamento intensivo em Terapia Comportamental Dialética (Behavioral Tech/2016). Professor de disciplinas em diversos cursos de formação e especialização brasileiros. Diretor da Vincular. Membro da ACBS.

Conheça a cartilha para combater o suicídio

Dilemas dialéticos como consequência dos ambientes invalidantes: Competência Aparente x Passividade Ativa