O conceito de audiência não punitiva sempre foi um tema que me despertou especial interesse. Na verdade, como terapeuta clínica atuante desde a graduação – e aí já se vão quase 14 anos – pensar em uma audiência não punitiva me levou a modificar uma série de comportamentos como terapeuta. Do mesmo modo, não só me fez estar mais sensível a mim como audiência não punitiva como me levou a refletir acerca da importância de considerar também o cliente enquanto minha audiência. Certamente isso de alguma maneira também modificou e controlou meus comportamentos dentro do consultório. Além disso, o próprio termo em si, de certa forma, traduz um comportamento altamente producente para os analistas do comportamento diante de algumas contingências: ser reforçador ou reforçar comportamentos daqueles que nos demandam de alguma maneira.
Ser reforçador é sim bem importante, mas é claro que atender clientes em consultório vai muito além disso. Primeiramente porque é exigida uma ampla classe de resposta do “ser terapeuta”. Depois porque a exposição às contingências envolvidas nos comportamentos de atender nos laça em direção ao grande e ao mesmo tempo prazeroso desafio de desenvolver e adquirir habilidades que serão determinantes para: acolhimento do nosso cliente, formação do vínculo, promoção de engajamento do cliente no processo terapêutico, elaboração de análises consistentes, entre outras questões. Quando falamos da modalidade de terapia de casal, essas habilidades ganham uma dimensão ainda maior e isso se dá porque são envolvidos aspectos de uma díade com os mais diversos contornos.
Christensen e Jacobson (2000, apud Otero & Ingberman, 2004) sugerem que o terapeuta precisa ter outras habilidades além das citadas anteriormente, como por exemplo, estar atento à linguagem do casal, desenvolver nos clientes uma maneira diferente de falar dos problemas e ensiná-los a descrever suas histórias. Ao que se refere ao seu papel enquanto terapeuta de casal, é de extrema relevância que o terapeuta não julgue de maneira alguma os membros que compõem a díade, que não emita regras, juízo de valor e que não faça comparações entre os pares ou entre os membros de um casal. São esses últimos comportamentos descritos que diferenciam a relação terapêutica das relações do dia-a-dia.
Ouvir sem julgar e respeitar relatos são comportamentos que, quando emitidos em contexto clínico, irão favorecer muito a construção de uma relação terapêutica consistente. Skinner (1953/2000) discorre que a constituição do terapeuta como uma “audiência não punitiva” é uma das características essenciais para que uma relação terapêutica seja satisfatória.
Na prática, falar em “audiência não punitiva” não é referência a uma total ausência de intervenções que poderiam ser aversivas para o cliente se realizadas, mas sim, a um reforçamento não contingente às suas respostas específicas, respondendo o terapeuta apenas ao cliente e a sua presença no consultório (Del Prette & Almeida, 2010). Del Prette e Almeida (2010) pontuam que, em condições assim, podem ser usados termos que traduzem a ideia de “aceitação incondicional” e “promoção de ambiente acolhedor”.
Outro ponto que as autoras enfatizam é que falar sobre “audiência não punitiva” é falar também do uso de reforçamento para respostas que precisam ser modeladas pelo terapeuta. Isso pode ocorrer em função de alguns comportamentos não terem sido ensinados pela comunidade verbal do cliente, ou até mesmo porque este foi punido por essa mesma comunidade, tornado a emissão dessas respostas durante a sessão uma exposição inicialmente aversiva.
Um exemplo disso são casais que trazem relato de traição. Muitas vezes relatar episódios de casos extraconjugais em alguns ambientes, como contexto familiar ou igreja, foi consequenciado com críticas e isolamento social. Experiências assim podem levar o casal a não querer mais falar sobre esse conflito. O terapeuta trazer motes que levem o casal a relatar mais sobre o problema pode ser aversivo na sessão em um primeiro momento, mas, em um segundo, pode aumentar as chances de ajudar o casal a enxergar o conflito por outra perspectiva e diminuir seu sofrimento, modelando o casal a falar de situações delicadas de uma maneira mais madura e útil para eles.
Del Prette e Almeida (2010) descrevem que também seria uma “audiência não punitiva” o terapeuta colocar em extinção ou punir respostas socialmente inadequadas e que precisam ter sua frequência reduzida, para que o cliente possa entrar em contato com novas contingências. Certamente, muitas dessas repostas, estando presentes no repertório comportamental dos clientes, ocorrem porque foram reforçadas por sua comunidade verbal e, por isso, um procedimento assim pode ser punitivo também. A questão é que, em longo prazo, o cliente poderá aumentar suas chances de entrar em contato com consequências reforçadoras que ampliariam, por exemplo, sua qualidade de vínculo e seu próprio bem-estar.
Vamos imaginar que durante o atendimento o terapeuta observa um hábito do marido de desqualificar, por meio de comportamentos verbais (ironias, palavrões e sarcasmos) e não verbais (ele coloca o dedo no ouvido para não escutar a esposa, faz sinais grosseiros), o discurso da esposa. Esta descreve que, em ambientes sociais com seu grupo de amigos, todos caem na risada quando ele se comporta dessa maneira. Se o terapeuta se comportar de outra forma, que não dando risadas, e até mesmo instruir o marido a interromper esses repertórios na sessão, talvez essa possa ser uma atitude punitiva. Entretanto, se por generalização o marido parar de fazer isso em outros ambientes e como consequência for reforçado com carinhos da sua esposa, esse carinho sendo mais reforçador do que as risadas dos amigos, pode colocar em extinção os comportamentos que eram alvos de problemas e ampliar possibilidades de trocas genuínas de afeto.
Outro aspecto importante do terapeuta como audiência não punitiva reside no fato dessa condição contribuir para uma possível diminuição da frequência dos comportamentos verbais manipulativos com função de esquiva, que ocorrem muitas vezes como alternativas verbais encontradas pelo marido ou pela esposa na tentativa de não entrarem em contato com uma possível punição. Lembro-me de um casal o qual acompanhei e de que, no início do processo terapêutico, era comum o marido voltar atrás em suas afirmativas nas vezes em que ocorriam discordâncias claras de sua esposa sobre o assunto. Ele deixava de manter sua opinião com receio de ampliar as divergências já existentes entre eles. Com o decorrer da terapia, além de todas as intervenções feitas e tendo o terapeuta como um modelo e como audiência não punitiva, as mudanças no comportamento da esposa foram sensíveis. Ela se apresentava mais receptiva às opiniões que divergiam das suas e demonstrava sua discordância de uma maneira nada aversiva para o marido.
Questões que envolvem punição e condições aversivas fazendo parte de contingências históricas da vida de clientes são vistas com frequência no consultório. Com casais a situação é a mesma e acrescentar a audiência não punitiva na importância para a mudança terapêutica é determinante quando desejamos que os membros de uma díade não editem seus relatos com receio de serem punidos, além de torná-lo mais preparado para lidar com as demandas da vida a dois que representa um obstáculo para ganhos terapêuticos.
Referências:
Del Prete, G. & Almeida, T. A. C. (2010). O uso de técnicas na clínica analítco-comportamental. Em A. K. C. R. de-Farias (Org). Análise Comportamental Clínica (pp. 147-159). Porto Alegre. Artmed
Otero, V. R. L. & Ingberman, Y. K. (2004). Terapia Comportamental de casais: Da teoria a prática. Em M. Z. Brandão (Org.), Sobre o Comportamento e Cognição: Vol. 13. Contingências e metacontingências: Contextos socioverbais e comportamento do terapeuta (pp. 363-373). Santo André: ESETec.
Skinner, B. F. (1953/2000). Ciência e Comportamento Humano (J. C. Todorov, & R. Azzi, Trads.). São Paulo: Martins Fontes.