Autismo: O planejamento da generalização

Durante toda a intervenção multidisciplinar no tratamento do Transtorno do Espectro do Autismo (TEA), a equipe deve se preocupar com a generalização das habilidades aprendidas em contextos terapêuticos para ambientes progressivamente menos estruturados e mais naturais. Afinal, o objetivo não é que a criança consiga se comunicar, socializar, brincar e executar atividades acadêmicas apenas nos consultórios de fonoaudiólogos, psicólogos e terapeutas ocupacionais. O foco principal da intervenção deve ser garantir a emissão de novas habilidades aprendidas nos contextos naturais da vida da criança, isto é, casa, escola, passeios com familiares e amigos, viagens, etc.

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No desenvolvimento típico não precisamos ter essa preocupação, a generalização é fácil e natural. Elas mostram na escola comportamentos que aprenderam em casa e chegam em casa com novidades que aprenderam na escola. Tenho visto isso diariamente em casa nos últimos meses. Minha filha, de 11 meses e meio, aprendeu a falar “Auau” para o Txutxucão, personagem do DVD Xuxa só para Baixinhos que é um cachorro. Sem mais nem menos, sem treino direto, sem nenhum estímulo, nos surpreendemos vendo ela dizer “Auau” quando o pai veste uma camisa com um cachorro estampado; ou quando encontramos um cachorro no elevador; ou quando ela ouve um latido vindo de outro apartamento. Os estímulos que evocam a resposta são completamente diferentes do estímulo com o qual a resposta foi treinada. O Txutxucão é um cachorro enorme, amarelo, peludo, com orelhas caídas e dança o tempo todo; o cachorro da camisa de meu marido é preto, parece um pastor alemão, ou seja, tem orelhas em pé e, obviamente, é um estímulo estático.

É claro que as habilidades de generalização e discriminação de estímulos vão sendo refinadas no decorrer do desenvolvimento… Minha pequena de quase 1 ano de idade está um pouco confusa dizendo “Auau” para gatos, ursos e leões que ela vê em livrinhos, afinal, todos tem pelos, 4 patas, orelhas e são mesmo muito parecidos. Mas com o tempo o desenvolvimento cognitivo se encarrega de corrigir e refinar essa discriminação, sem muito esforço e sem treino direto.

Além de generalizar entre estímulos tão diferentes, as crianças com desenvolvimento típico generalizam facilmente entre ambientes, ou seja, emitem respostas novas em ambientes diferentes daquele no qual a resposta foi treinada; e também entre pessoas, ou seja, emitem a resposta nova para outras pessoas além da pessoa que treinou aquela resposta.

Com autistas, entretanto, a generalização das habilidades aprendidas em contextos terapêuticos para outros contextos, estímulos e pessoas não é automaticamente garantida e nem fácil de ser alcançada. As crianças com TEA tendem a ficar sob controle restrito de estímulos, ou seja, respondem sob controle de partes do estímulo ou características irrelevantes deste. Com isso, elas têm dificuldade de emitir uma resposta aprendida com um determinado estímulo, num determinado local e com uma determinada pessoa, frente a outro estímulo, em outro local e com outra pessoa. Por exemplo, pode acontecer de a criança conseguir discriminar cores de peças de lego nas sessões de terapia individualizada; mas não conseguir discriminar cores de roupas quando a mãe pede para ela pegar a blusa azul em casa.

Tendo em vista essa dificuldade, é fundamental que a equipe de intervenção sistematicamente planeje a generalização. Para isso, precisamos trabalhar na terapia individualizada com o currículo que a escola vai oferecer, antecipando conteúdos e ensinando habilidades que a criança vai precisar na escola.

Outra estratégia que contribui para a generalização é a simulação na terapia de atividades que acontecerão na escola ou em outros contextos naturais, por exemplo: rodas de música, história, leitura, atividades com a família, interações sociais, etc. O plano é a terapia imitar contextos e situações naturais, inclusive oferecendo material similar ao de sala de aula, por exemplo: livros, papel e caneta, tinta, cola, calendário, etc.

Também faz parte do planejamento da generalização a passagem gradual do reforçamento arbitrário para reforçadores mais sociais e naturais, que são os que deverão manter a resposta em ambiente natural. Então, se na terapia a criança responde sob esquema de reforçamento artificial contínuo, isto é, após cada resposta ela ganha um brinquedo, um vídeo ou uma guloseima, o terapeuta deve planejar a retirada gradual deste reforçamento e a substituição por reforçadores naturais e sociais.

Para isso, o terapeuta deve sempre associar elogios e outros reforçadores sociais ao reforçadores artificiais usados, assim, os reforços sociais vão ganhando força na manutenção do responder. Também é importante garantir o caráter lúdico e motivador das próprias atividades, para que reforçadores naturais também gerem motivação e passem a controlar as respostas no futuro.

Uma estratégia muito utilizada na terapia ABA para retirar gradualmente a dependência de reforçadores artificiais e manter o controle apenas sob reforçamento social e natural, é a Economia de Fichas. Depois de algum tempo reforçando-se todas as tentativas com acesso ao objeto de interesse (CRF – Reforçamento contínuo), passa-se a reforçar cada resposta com uma ficha (pode ser números ou personagens de interesse da criança impressos). Quando a criança acumular, por exemplo, 3 fichas, ela troca as fichas pelo reforçador final (objeto de interesse). A quantidade de fichas pode ir aumentando gradualmente, visando afastar o reforçador artificial.

Lovaas (1987) afirmou que uma intervenção comportamental eficaz precisa ocorrer por 40h semanais durante 2 anos ou mais. Quando falamos em 40h semanais de terapia ABA, não queremos dizer, obviamente, que a criança terá que ficar 8h por dia na mesa de atividades com o terapeuta comportamental. Estas 8h diárias consistem em, mais ou menos, 2h de terapia ABA individualizada por dia; 4h de inclusão escolar com professores e AT (acompanhante terapêutico) orientados por um analista do comportamento; e mais 2h de aplicação de procedimentos comportamentais pelos pais e cuidadores em casa, também sob orientação do analista do comportamento. Este esquema de intervenção, que acontece com diferentes aplicadores e em diferentes contextos, contribui para a generalização das habilidades aprendidas em terapia para outros contextos, afinal, todos os membros da equipe são orientados pelo analista do comportamento a estimular da mesma forma e todos se mantém em contato constante para que a intervenção seja coesa.

A escola tem um papel importante na generalização, afinal ela consiste em um dos principais ambientes naturais de aprendizado e socialização das crianças. Por isso, é importante planejar mudanças tanto no material, quanto no ambiente físico e em toda estimulação apresentada na escola para que a criança a ser incluída consiga responder conforme o esperado. Além disso, deve-se usar na escola procedimentos de ensino e de controle comportamental semelhantes aos utilizados na terapia individualizada e na intervenção em casa, por exemplo: quadro de rotina, pistas visuais para acompanhar as aulas, quebra das atividades em tarefas menores, apostilas adaptadas, etc.

O Acompanhante Terapêutico (AT) tem um papel fundamental no processo de generalização, é ele quem irá promover a generalização dos comportamentos aprendidos na terapia individualizada para o ambiente de sala de aula. Essa ajuda deve ir sendo retirada gradualmente, à medida que a criança for ficando mais independente.

Cabe ao analista do comportamento integrar toda essa equipe de profissionais e familiares, reunindo-os periodicamente para dar orientações que visam a generalização das habilidades aprendidas em terapia; investigar novas demandas de atuação; e traçar metas em comum para que todos atuem de forma coesa.

“Dentro do escopo da Análise do Comportamento, a intervenção comportamental com crianças autistas pode ser sequenciada em passos pré-definidos, que norteiam o trabalho do terapeuta engajado com um fazer científico, sem perder de vista as possibilidades de cada criança e os ganhos últimos que se deseja alcançar. Isso significa viabilizar os progressos comportamentais em um ritmo compatível com o repertório de entrada de cada criança, até os estágios mais avançados de seu desenvolvimento. (…) Ao mesmo tempo, explicita uma tecnologia possível de ser transmitida para pessoas do meio social da criança, por exemplo os pais, capacitando-os a se tornarem eles próprios agentes participantes e comprometidos com o processo de mudança de seus filhos.” (Bagaiolo e Guilhardi, 2002).

Referências Bibliográficas:

Bagaiolo, L. & Guilhardi, C. (2002). Autismo e preocupações educacionais: Um estudo de caso a partir de uma perspectiva comportamental compromissada com a Análise Experimental do Comportamento. In: Guilhardi, H. J., Madi, M.B. P., Queiroz, P. P., Scoz, M. C. (Org.) Sobre Comportamento e Cognição. 1ª Ed. Santo André: ESETEC, v. 10, p. 67-82.

Lovaas, O. I. (1987). Behavioral treatment and normal educational and intellectual functioning in young autistic children. Journal of Consulting and Clinical Psychology, 55, 3–9.

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Escrito por Juliana Fialho

Graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo no ano de 2006. Mestre em Psicologia Experimental: Análise do Comportamento pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Dissertação defendida em maio de 2009). Trabalha como psicóloga na Gradual (Grupo de Intervenção Comportamental), onde lida principalmente com crianças e adolescentes com desenvolvimento atípico. Tem experiência em Análise do Comportamento Aplicada. Já desenvolveu pesquisas de Iniciação Científica, Conclusão de Curso e Mestrado nos seguintes temas: desenvolvimento atípico, avaliação de repertório inicial, intervenção comportamental, comunicação funcional e alternativa e variabilidade comportamental.

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