
Tully é um filme muito interessante que fala sobre maternidade, sobrecarga e saúde mental materna. Caso você ainda não tenha assistido o filme, recomendo assisti-lo e voltar aqui depois para ler o texto.
O filme conta a história de Marlo, uma mãe de três filhos, uma menina, um menino aparentemente com Transtorno do Espectro Autista (TEA) e um bebê a caminho. Marlo não aparenta ser uma mãe de novela, maquiada, cabelos alinhados e unhas feitas, pelo contrário ela representa uma mãe do dia a dia, com olheiras, aparência de cansada e roupas amassadas e manchadas. Ela se divide em cuidar dos filhos e da casa, demonstrando mal conseguir cuidar de si mesma. Afastada do trabalho por conta da licença maternidade, continua trabalhando em casa, seja buscando recursos para lidar com as crises do filho, prepará-los e levá-los para a escola, lidar com professores e por aí vai, tudo isso com um barrigão de 9 meses.
Escolher e assumir a parentalidade não é fácil, seja para o homem ou para a mulher. No entanto, é possível observar que a balança muito provavelmente pesará mais para as mulheres. Mulheres aprendem desde a tenra infância a cuidar de outras pessoas, um bom exemplo disso são as brincadeiras de casinha e de bonecas1. Do ponto de vista histórico, ao olharmos como a maternidade foi se construindo na sociedade, parece que houve uma força tarefa empenhada em atribuir à mulher toda responsabilidade de cuidados, casa e filhos. Diversas influências — médico-obstétricas, filosóficas, sociais, culturais, econômicas e religiosas reforçaram a ideia de que o lar, os afazeres domésticos e a maternidade pertencem exclusivamente ao universo feminino 2. Atualmente, além das responsabilidades domésticas, muitas mulheres enfrentam jornadas de trabalho profissional — muitas vezes mal remuneradas — acumulando funções e conciliando os papeis de trabalhadora e mãe, o que configura uma dupla jornada.3
Se mulheres trabalham mais, consequentemente se cansam mais. E quem está olhando para o cansaço das mulheres? No filme, de certo modo, Marlo parece invisível para seu marido e pai dos seus filhos, Drew. Curiosamente, quem parece estar um pouco mais atento a Marlo é o seu irmão, com mais condições financeiras ele oferece pagar os serviços de uma babá noturna para que Marlo possa ter uma noite de sono um pouco mais tranquila. Na conversa entre eles, seu irmão diz que “não quer o que houve da última vez”, deixando subentendido que algo sério aconteceu com Marlo na sua segunda gestação.
Quando olhamos para a vida da mulher, o período perinatal é o momento de vida que mais oferece risco à sua saúde mental. De acordo com Schiavo (2016), cerca de 36% das gestantes apresentam ansiedade. Este período acarreta mudanças emocionais, físicas, sociais, hormonais e cerebrais que impactam significativamente a mulher 4 5. Ter o privilégio de um tratamento psicológico que cuide dessas demandas em torno do planejamento familiar, gestação, parto e puerpério, não é de acesso a todos hoje em dia e Marlo e sua família não tem condições de arcar com a terapia do filho – buscando em vídeos soluções para ajudá-lo – quem dirá a dela.
— “Você não pode sair assim”
— “Eu saio assim todo dia, você é que não vê”.
Marlo dá à luz uma menina, Mia, e passa a noite acordada, trocando fralda, amamentando e tentando colocar sua bebê para dormir, com o choro da criança como melodia de fundo. Ela fica sozinha, sem companhia e sem apoio. Durante o dia, é notável o seu cansaço a ponto de dormir no sofá da sala enquanto os seus filhos brincam ao seu lado. Parafraseando um episódio de Sessão de Terapia (05×01)6 com a personagem Manu, uma mulher também com uma bebê pequena em casa, ela descreve momentos como esse, como o dia da marmota dentro do dia da marmota.
Vivendo o ápice do puerpério, Marlo decide aceitar a proposta do irmão e ligar para a babá. A babá se chama Tully, é jovem, divertida e atenciosa. Marlo estranha o jeito da moça e compartilha seu incômodo com o marido no quarto de cima, enquanto ele joga videogame. Surpreendentemente, chama-se a atenção para o marido que em nenhum momento se propõe a descer para conhecer a babá e checar a pessoa que passará a noite cuidando da sua filha. Ele parece insensível aos cuidados de Mia, bem como ao próprio desconforto de sua esposa. Mas se ensina os cuidados às mulheres, o que se ensina aos homens? Neste contexto, os ensinam a se ausentar e prover o sustento da família7. O marido de Marlo faz viagens a trabalho e passa pouco tempo em casa, contudo ainda que esteja ausente fisicamente, quando chega em casa, aceita as poucas palavras de sua esposa com passividade. Não questiona e não se atenta às sutilezas dos comportamentos de Marlo, e escolhe passar mais tempo jogando videogame, ausentando-se emocionalmente também.
— “Não dá pra arrumar as partes, sem tratar o todo”
— “É, ninguém cuida do meu todo, há um bom tempo”
A entrada de Tully no cenário familiar parece tornar as coisas melhores. Ao acordar, Marlo se depara com a casa limpa, cupcakes prontos, se sente disposta e descansada para enfrentar mais um dia. Tully não ouve, ela escuta, ela pergunta, ela se interessa, apoia e incentiva. Para alguém que não é vista, um olhar curioso sobre si se torna muito poderoso, e Marlo aparenta estar a espera desse encontro no cair da noite. Com a maternidade vem muitas privações e adversidades8, aquela amiga que estava ali presente, de uma hora para outra, não está mais tão disponível assim, aquele familiar que dizia “conta comigo pra quando precisar”, está muito ocupado para qualquer coisa. A maternidade pode ser solitária, na verdade colocam ela para ser assim, mas não precisa e nem deve ser desse jeito. A presença de uma rede de apoio, seja um familiar, um amigo, ou um profissional, pode ser muito benéfico e servir de fator protetivo para a saúde mental materna e para a relação mãe-bebê.9
“Eu vim para tomar conta de você”
Em uma dessas conversas noturnas, Tully, de forma curiosa, questiona Marlo sobre a vida sexual do casal. Marlo confessa que, ao anoitecer, é impossível simplesmente desligar o papel de mãe e se transformar em uma mulher que busca pelo prazer. Ela relembra um tempo mais distante, em que vivia outros relacionamentos e parecia ser outra pessoa — como se, ao assumir os papeis de esposa e mãe, tivesse deixado de lado outras partes de si mesma. Após o nascimento de um bebê, a sexualidade muitas vezes deixa de ser prioridade. O período de resguardo, especialmente em casos de parto cesárea, a privação de sono, dores nos seios causadas pela amamentação, e o desconforto com o próprio corpo — que pode abalar profundamente a autoestima — são fatores comuns que interferem no desejo e na intimidade do casal. Essa transição para a parentalidade, cheia de mudanças físicas e emocionais, pode impactar significativamente a convivência e o vínculo conjugal.10
Certa noite, Tully convida Marlo para irem à cidade curtirem juntas e depois de muita festa e alguns drinks, Tully conta para Marlo que precisará interromper o atendimento, o que causa recusa de Marlo. Ela questiona com raiva e tristeza o porquê do seu afastamento, mas Tully parece firme com sua decisão. Na volta pra casa, faz o percurso com sono e alcoolizada, sofre um sério acidente de carro e é hospitalizada. No hospital, a psiquiatra fala com Drew e diz que está suspeitando que ela esteja sofrendo de cansaço extremo e privação de sono. Drew parece confuso e diz não entender o que está acontecendo, dado que ela parecia bem e contava com a ajuda da babá noturna. A psiquiatra fazia perguntas que deixaram Drew desconfortável.
“— Acho que houve alguns momentos atípicos. Eu nunca esperaria que ela dirigisse bêbada assim ou que saísse sem avisar deixando as crianças sozinhas.
— Você não estava em casa?
— Estava. Tem razão, eu estava em casa.
— E a babá noturna?
— Não. Não sei onde ela estava. Não sei muito sobre ela. Eu posso voltar? (se referindo ao leito de Marlo).”
Na recepção, ao perguntarem o nome de solteira de sua esposa, ele responde “Tully”, e embarcamos num replay de momentos nos quais era Marlo sozinha em todos eles. Tully foi uma tentativa de lidar com um puerpério difícil. Na conversa com a psiquiatra, Drew informa que aparentemente Marlo sofreu de depressão profunda no nascimento do segundo filho, porém não sabemos se foi diagnosticado por um profissional treinado ou se ele observou uma série de sintomas compatíveis com a depressão puerperal. Embora o filme não explicite o diagnóstico de Marlo, a presença de sintomas como alucinações visuais e auditivas aponta para um possível quadro de psicose pós-parto — condição rara, porém grave, que requer intervenção imediata. De acordo com Cordás e Fernandes (2023), mulheres com histórico psiquiátrico prévio, especialmente de esquizofrenia ou transtornos do humor, apresentam risco aumentado para esse tipo de episódio no período puerperal.
De modo mais sutil, nota-se, inclusive, que Marlo fala sobre suicídio em dois momentos disfarçando em tom de brincadeira. Nesta primeira cena, estava com a família e seu marido, o único adulto, que quando escuta, muda de assunto por conta das crianças e não retoma o assunto novamente. Marlo não estava bem. Embora o quadro de diagnóstico seja sim importante e nos permite conversar com outros profissionais e observar as topografias características de um quadro clínico11, enquanto analistas do comportamento interessados na função dos comportamentos, precisamos nos perguntar: Por que Marlo precisou cindir com a realidade para dar conta de vivê-la? O que em sua vida estava tão aversivo a ponto esgotá-la física e emocionalmente e colocar sua vida em risco?
“— Só vim para fazer você passar pela zona de perigo.
— […] Obrigada por me manter viva.
— “Igualmente.”
No final do filme, vemos a despedida entre Marlo e Tully e uma conversa sincera entre Marlo e Drew. Ele reconhece que não fez nada que pudesse ajudar e a última cena os mostram dividindo a tarefa de cozinhar juntos. Infelizmente o filme acaba enquanto ainda há curiosidade e perguntas sobre a história: Como está sendo emocionalmente para Marlo lidar com o pós acidente e a ausência de Tully?; Ela está sob acompanhamento psicológico e psiquiátrico?; Drew continua disposto a compartilhar com Marlo, tarefas, dores, alegrias e uma vida juntos?
O mês de maio, “maio furta-cor”12, é o mês dedicado à conscientização e promoção da saúde mental materna. A discussão e reflexões abordadas neste texto, visa aproximar profissionais da saúde mental e público interessados neste tema. Embora nem todos os leitores ou leitoras aqui sejam mães ou pais, muito provavelmente conhecem ou irão conhecer mulheres que se tornarão mães. Trazer visibilidade para um assunto tão importante busca contribuir no cuidado das mães. Muitas mulheres sofrem neste período e não conseguem encontrar apoio e acolhimento. De acordo com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), no Brasil, uma em cada quatro mães em situação de vulnerabilidade econômica apresenta sintomas depressivos no primeiro ou segundo ano pós-parto ou em ambos.
O filme Tully é uma representação cinematográfica de uma realidade específica. Ele apresenta uma mulher branca, em um relacionamento heterossexual, de classe média. Outros recortes sociais também são igualmente importantes e precisam ser abordados, pesquisados e representados. Por fim, mães estão adoecendo a todo momento por falta de escuta e apoio — não apenas emocional, mas também prático. Mães precisam de proteção e cuidados, especialmente em relação à sua saúde mental. A saúde mental materna é um tema urgente!
REFERÊNCIAS
1 Zanello, Valeska. Prateleira do amor: sobre mulheres, homens e relações. 1.ed. – Curitiba: Appris, 2022
2 Maldonado, M. T. (2017). Psicologia da gravidez: gestando pessoas para uma sociedade melhor. Ideias e Letras
3 Think Olga. (2023). Esgotadas: o empobrecimento, a sobrecarga de cuidado e o sofrimento psíquico das mulheres. Lab Think Olga. https://lab.thinkolga.com/esgotadas/
4 Hoekzema, E., Barba-Müller, E., Pozzobon, C., Picado, M., Lucco, F., García-García, D., Soliva, J. C., Tobeña, A., Desco, M., Crone, E. A., Ballesteros, A., Carmona, S., & Vilarroya, O. (2017). Pregnancy leads to long-lasting changes in human brain structure. Nature neuroscience, 20(2), 287–296. https://doi.org/10.1038/nn.4458
5 Piccinini, C. A., Lopes, R. S., Gomes, A. G., & Nardi, T. E. (2008). Gestação e a constituição da maternidade. Psicologia em Estudo, 13(1), 63–72. https://doi.org/10.1590/S1413-73722008000100008
6 Mello, S. (Diretor). (2021, 4 de junho). Manu – Sessão 1 (Temporada 5, Episódio 1) [Série de TV]. Em Sessão de Terapia. Globoplay. https://globoplay.globo.com/v/9525934/
7 Rotundo, E. A. (1985). American fatherhood: A historical perspective. American Behavioral Scientist, 29(1), 7–23. https://doi.org/10.1177/000276485029001003
8 Rocha, C. N. da, Linares, I. M. P. ., & Weiss, J. V. P. (2023). Entendimento da perinatalidade a partir do modelo de seleção por consequências. Perspectivas Em Análise Do Comportamento, 003–018. https://doi.org/10.18761/PACasdj44a6
9 World health organisation (2016) WHO recommendations on antenatal care for a positive pregnancy experience: Summary from https://www.who.int/publications/i/item/9789241549912
10 Doss, B. D., & Rhoades, G. K. (2017). The transition to parenthood: impact on couples’ romantic relationships. Current opinion in psychology, 13, 25–28. https://doi.org/10.1016/j.copsyc.2016.04.003
11 Banaco, R. A., Zamignani, D. R., & Meyer, S. B. (2010). Função do comportamento e do DSM: Terapeutas analítico-comportamentais discutem a psicopatologia. In E. Z. Tourinho & S. V. Luna (Orgs.), Análise do comportamento: Investigações históricas, conceituais e aplicadas (pp. 175–192).
12 Maio Furta-Cor. (n.d.). Campanha Saúde Mental Materna. https://www.maiofurtacor.com.br/
Cordás, T. A., & Fernandes, C. E. (2023). Como lidar com a depressão pós-parto: Guia prático para pacientes, familiares e profissionais da saúde (1ª ed.). Hogrefe.
PNUD. Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/143246-uma-em-quatro-maes-brasileiras-vivendo-na-pobreza-enfrenta-depressao-pos-parto
Reitman, J. (Diretor). (2018). Tully [Filme]. Bron Studios; Denver and Delilah Productions; Right of Way Films. Disponível em Amazon Prime Video.
Schiavo, R.A. Desenvolvimento infantil: associação com estresse, ansiedade e depressão materna da gestação ao primeiro ano de vida. Tese de Doutorado – Botucatu, 2016