
Quando atendemos casos que envolvem risco de vida, é fundamental buscarmos recursos que orientem o manejo clínico de forma ética, sensível e baseada em evidências. Neste texto, abordaremos uma compreensão amplamente difundida sobre o comportamento suicida: a de que ele é um subproduto de um transtorno psiquiátrico. Embora essa concepção tenha relevância epidemiológica, discutiremos aqui suas limitações para a prática clínica.
Um dado geralmente trazido para respaldar essa perspectiva é o de que 90% das pessoas que tiraram a própria vida possuíam pelo menos um transtorno psiquiátrico. Ou, de maneira mais imprudente, é divulgado que “90% dos casos de suicídio poderiam ser evitados”1. Tal informação não leva em conta o impacto que pode ser produzido em pessoas enlutadas pelo suicídio, que já sofrem elevados níveis de culpa2. A Associação Brasileira de Psiquiatra publicou um guia intitulado “Suicídio: informando para prevenir”3, no qual trata do tema e dá diretrizes de manejo para casos de baixo, médio e alto riscos. Embora seja direcionada a médicos, tem sido amplamente consultada por profissionais de outras áreas da saúde.
A cartilha traz uma ênfase grande na associação entre transtornos psiquiátricos – às vezes referidos como “doenças mentais” na cartilha – e comportamento suicida. Por exemplo, na página 32, afirma-se que “a maior parte dos suicidas tinha uma doença mental que não fora tratada”. Já na 41, entre as orientações para casos de baixo risco, sugere-se o “tratamento do possível transtorno psiquiátrico”. Nos casos de risco moderado e alto, o raciocínio subjacente parece ser o mesmo: ao tratar o transtorno mental, espera-se que o comportamento suicida desapareça. Essa expectativa implícita, no entanto, não encontra respaldo consistente na literatura científica recente.
No imaginário social, há uma tradicional relação entre depressão e suicídio, e essa crença é bastante reproduzida por profissionais da área da saúde. Em uma metanálise sobre tratamentos de psicoterapia para adultos com depressão, foi constatado que o manejo deste transtorno de humor, embora eficaz para lidar com a depressão e com a desesperança, não produziu mudanças estatisticamente significativas em ideações suicidas e no risco de suicídio4. Isso é de suma importância para compreendermos que a expectativa de que o risco de suicídio diminua conforme o tratamento de um transtorno psiquiátrico progride é perigosa, podendo fazer com que tenhamos um ponto-cego relevante no tratamento. A metanálise de Tarrier e colaboradores5 corrobora este argumento, como é visto neste trecho:
“O tratamento é efetivo quando foca diretamente em reduzir algum aspecto do comportamento suicida, e deixa de sê-lo quando foca em outros sintomas (como depressão ou sofrimento), com a expectativa de que o comportamento suicida diminuirá como efeito secundário” (p. 100, tradução livre).
Isto posto, quando compreendemos o comportamento suicida como um produto gerado dentro de um transtorno psiquiátrico, consiste em refletirmos sobre a existência dele dentro de quadros muito distintos, como Transtorno de humor, Transtorno por uso de substância psicoativa, Transtorno de personalidade, Esquizofrenia, dentre outros3. Diante disso, como quadros tão diferentes podem gerar um comportamento similar? Essa heterogeneidade sugere que o comportamento suicida não pode ser completamente explicado pela presença de um transtorno específico — e, portanto, merece atenção própria.
Uma alternativa promissora é de tratarmos o comportamento suicida diretamente. Alguns exemplos de intervenções que fazem isso são: Terapia Cognitivo-Comportamental Breve para Prevenção ao Suicídio (TCC-B)6, Plano de Segurança7, Collaborative Assesment of Suicide Management (CAMS)8 e Terapia Comportamental Dialética (DBT)9. Nestes, o comportamento suicida é alvo de análise e intervenção diretas, através da compreensão de quais contextos ele ocorre e de quais estratégias podem ser utilizadas, tanto no aspecto intra quanto interpessoal, para seu manejo.
A compreensão do suicídio como um subproduto de um transtorno psiquiátrico possui baixo poder preditivo e não parece auxiliar no entendimento dos motivos que levam alguém a pensar e a tentar tirar a própria vida10. Em contraste, olhar para o comportamento suicida a partir dos contextos em que ocorre — identificando antecedentes, consequências e os repertórios, tanto disponíveis quanto ausentes, da pessoa atendida — nos oferece caminhos mais eficazes para o manejo dessa demanda clínica.
Referências
1 https://www.saude.df.gov.br/web/guest/w/segundo-oms-90-dos-casos-de-suicidio-poderiam-ser-evitados, acesso em 08 de Abril de 2025.
2 Santos, L. B. dos, Bertelli, G. & Ricardo, N. H. W. (2024). “Eu me sinto culpado”: compreensão, avaliação e intervenção em casos de luto por suicídio. In L. B. dos Santos & G. Bertelli (Orgs.), Posvenção: O olhar e o cuidado ao luto por suicídio (pp. 137-149). Lucto.
3 Associação Brasileira de Psiquiatria. (2014). Disponível em: https://cdn-flip3d.sflip.com.br/temp_site/issue-0e4a2c65bdaddd66a53422d93daebe68.pdf, acesso em 09 de Abril de 2025.
4 Cuijpers, P., De Beurs, D. P., Van Spijker, B. A., Berking, M., Andersson, G., & Kerkhof, A. J. (2013). The effects of psychotherapy for adult depression on suicidality and hopelessness: a systematic review and meta-analysis. Journal of affective disorders, 144(3), 183-190.
5 Tarrier, N., Taylor, K., & Gooding, P. (2008). Cognitive-behavioral interventions to reduce suicide behavior: A systematic review and meta-analysis. Behavior Modification, 32, 77–108.
6 Bryan, C. J., & Rudd, M. D. (2018). Brief cognitive-behavioral therapy for suicide prevention. The Guilford Press.
7 Jobes, D. A. (2023). Managing suicidal risk: A collaborative approach. Guilford Publications.
8 Stanley, B., & Brown, G. K. (2012). Safety planning intervention: a brief intervention to mitigate suicide risk. Cognitive and behavioral practice, 19(2), 256-264.
9 Linehan, M. (1993). Cognitive-behavioral treatment of borderline personality disorder. Guilford press.
10 O’Connor, R. C., & Nock, M. K. (2014). The psychology of suicidal behaviour. The Lancet Psychiatry, 1(1), 73-85.