A Linguagem* como Parte da Contingência: a unidade de análise ROE-M (Parte 2)

*Neste texto, a linguagem é entendida enquanto um operante, o Responder Relacional Arbitrariamente Aplicável (RRAA).

Para ler a Parte 1 acesse: https://comportese.com/2025/02/24/a-linguagem-como-parte-da-contingencia-a-unidade-de-analise-roe-m-parte-1/

Em uma versão atualizada da Teoria das Molduras Relacionais (RFT), a unidade de análise ROE-M (Relacionar, Orientar e Evocar em determinados Contextos Motivacionais) descreve a contingência que prevalece em seres humanos verbalmente competentes. Como vimos anteriormente, ela é representada da seguinte maneira:

Unidade de Análise ROE-M

Esquematização retirada da apresentação de Dermot Barnes-Holmes, na ABAI 50th Annual Convention, Philadelphia (2024).

Relacionar refere-se à capacidade humana de estabelecer diversas relações arbitrárias entre eventos do mundo. Orientar diz respeito à medida em que certos eventos “atraem nossa atenção”. Evocar refere-se à forma como um evento é percebido como apetitivo, aversivo ou neutro, o que pode desencadear respostas de “aproximação” ou “evitação”. Por fim, Condições Motivadoras se referem a qualquer situação que altere a dinâmica de relacionar, orientar e evocar.

Comecemos com exemplos “básicos” para, em seguida, avançarmos para exemplos “mais complexos”.

(Exemplo 1)

Imagine um pai com sua criança pequena. Esse pai, assim como outros responsáveis pela criança, está sempre nomeando as coisas do mundo para ela. Ao ver um objeto branco e retangular, usado para desenhar, ele diz: “Olha, é a folha!”. Ao ver uma fruta vermelha e redonda, ele diz: “Olha, é a maçã!”, e assim por diante. Além disso, ele pode pedir: “Traz a maçã!”, “Traz a folha!”. Ou seja, há uma rica interação de nomeação dos objetos (objeto → nome) e solicitação pelos objetos mencionados (nome → objeto).

Perceba que o Relacionar está presente quando o pai relaciona determinados objetos a um nome específico, com base em convenções culturais. Também está presente quando ele solicita o objeto dito (por exemplo, “Traz a maçã”). No entanto, há mais coisas acontecendo nessa interação! Nessa mesma situação, Orientar e Evocar também desempenham papéis dinâmicos, ao lado do Relacionar.

Quando a criança ouve os sons “Olha” e “Traz”, ela não fica no “mesmo lugar”. Ela direciona o olhar para o objeto que o pai está apontando ou olhando. E ao ouvir “Traz”, ela é capaz de buscar o objeto, mas não qualquer objeto! Diante de “Traz a maçã”, ela se orienta e se aproxima de objetos redondos e vermelhos. Já ao ouvir “Traz a folha”, ela se orienta e se aproxima de objetos retangulares, finos e brancos. Note que o Relacionar está sempre presente nesse processo.

Além disso, o impacto desse ROE seria afetado por condições motivadoras. Em uma situação de fome (privação de alimento), ao ouvir “maçã”, a criança certamente se apressaria para procurá-la, e os objetos redondos vermelhos chamariam ainda mais sua atenção. Mesmo em uma situação onde a criança não estivesse com fome (saciada), mas estivesse brincando, por exemplo, com um Power Ranger, que só venceria o vilão ao comer uma maçã, isso certamente a apressaria a procurar o objeto redondo vermelho. Perceba novamente como nossas respostas ao mundo são dinâmicas, envolvem o Relacionar, Orientar e Evocar, e são influenciadas por condições motivadoras (ROE-M).

Agora, vamos a um outro exemplo, com um pouco mais de complexidade na interação ambiental.

(Exemplo 2)

Imagine agora que o pai e sua criança estão na “casa da vovó”. Nessa casa, há um animal pequeno, de quatro patas, com cauda, orelhas e bigodes grandes, que sempre faz o som “Miau!” e adora ficar no tapete da sala. A criança, como uma boa exploradora do mundo, quer se aproximar do animal e ver como ele é de perto. Ao chegar perto do animal, a criança tem uma interação prazerosa, passa a mão nele e sente sensações que provavelmente nunca havia sentido antes. O animal, por sua vez, se esfrega nela, produzindo mais sensações na criança. Ou seja, uma interação apetitiva.

Quando o pai chega, ele provavelmente dirá: “É o gato!”, na tentativa de nomear o animal para a criança. Aqui, o Relacionar acontece. O pai arbitrariamente relaciona um animal pequeno, de quatro patas, com cauda, orelhas e bigodes grandes que faz “Miau!” a um nome: “Gato”. Logo depois, o gato, provavelmente cansado da interação (isso acontece!), se move para um outro cômodo, por exemplo, o quintal. A criança, ao perceber que o gato não está mais ali, começa a dizer algo como “Cadê o gato?” e se levanta para procurar. Ela se orienta para encontrar um animal pequeno, de quatro patas (e vocês já sabem como o gato é descrito). Como a criança ainda não sabe que o gato foi para o quintal, o pai a ajuda a procurar e leva a criança até o quintal, onde ela encontra o gato novamente, aproximando-se e agarrando-se nele para retomar a interação apetitiva.

Agora, imagine que essa mesma criança está caminhando com seu pai pela vizinhança. Ela avista, antes do pai, um animal pequeno, de quatro patas (…) do outro lado da rua. A criança sai correndo e grita “gato, gato, gato!” na tentativa de se aproximar e agarrá-lo. No entanto, ao chegar perto, ela leva um arranhão no braço e começa a chorar, gritando pelo pai. Perceba que, naquele momento, para a criança, não há uma distinção clara entre o “gato da vovó” e o “gato do vizinho”, embora os dois sejam diferentes agora em termos de experiências e contextos.

Vamos imaginar que, após todas essas interações, a criança acorda em uma manhã de sábado. Os pais estão se preparando para levá-la à “casa da vovó”, como de costume. A criança, junto com os pais, prepara sua mochila, sua troca de roupa, pega brinquedos e sua roupa de banho, tudo isso sinalizando que logo verá a vovó. Nesse momento, o pai diz: “Você quer ver o gato?”. A criança, provavelmente, ficará ainda mais animada, sorrindo e sinalizando que sim!

“o gato da vovó”

Porém, imagine que agora o pai está se preparando para levar a criança para caminhar pela rua da vizinhança. Ele coloca os tênis nela, uma roupa regata e protetor solar no rosto, tudo isso indicando que sairão para a rua. Se, nesse momento, o pai disser: “Você quer ver o gato?”, a reação da criança provavelmente será muito diferente. Ela poderá chorar, correr e tentar se esquivar para não sair para a rua.

Perceba que, nessas duas condições diferentes, a palavra “gato” gerou comportamentos distintos para a mesma criança: de aproximar-se (quando tudo indicava que era o “gato da vovó”) e de esquivar-se (quando tudo indicava que era o “gato do vizinho”). Ao longo dessas interações, a comunidade verbal da criança (ou seja, seus pais) começará a diferenciar “Este é o gato da vovó” de “Este é o gato do vizinho”. E então a criança começará a utilizar “Cadê o gato da vovó?” para muito provavelmente se aproximar dele, e “Cadê o gato do vizinho?” para provavelmente evitar ele. Ou seja, podemos observar um aumento na complexidade do Relacionar, com a introdução de novos elementos (vovó x vizinho), o que altera toda a dinâmica do Orientar e do Evocar, em determinados contextos motivacionais.

Para finalizarmos, um exemplo para demonstrar que o ROE-M “não tem um ponto de partida”, a interação é sempre dinâmica!

(Exemplo 3)

Suponha agora que o pai leva a criança à casa de um velho amigo seu, para que ela possa brincar com outros coleguinhas e explorar os novos brinquedos disponíveis. Ao entrar, a criança percebe (isto é, algo a chama sua “atenção”) um animal pequeno, com cauda longa, deitado debaixo da cadeira na cozinha. Curiosa, ela se volta para o pai e, de forma simples, pergunta: “É o gato da vovó? Gato do vizinho?”. O pai sorri e, de maneira simplificada, responde: “É da vovó!”. Como essa nova interação, com um gato que a criança nunca viu antes, provavelmente se desenvolverá? Muito provavelmente, esse Relacionar (“é da vovó”) influenciará o Evocar, levando a criança a se aproximar do gato, tentando tocá-lo ou agarrá-lo.

Mas e se o pai tivesse dito “É do vizinho!”? Como essa interação provavelmente se desenvolveria? Muito provavelmente, isso Evocaria respostas de evitação. A criança ficaria “em alerta”, evitando se aproximar daquele gato e, ao mesmo tempo, mantendo sua atenção nele para garantir que ele realmente está longe!

Perceba que ainda poderia ter acontecido de outra forma. Ao notar o animal pequeno, de cauda longa, deitado debaixo da cadeira, a criança poderia ter se aproximado para ver melhor o que era. Suponha, porém, que ao se aproximar e vê-lo completamente, o gato pule nela e a arranhe. Muito provavelmente, a criança sairia gritando e dizendo: “É o gato do vizinho!”. Ou seja, a criança acabou de descrever sua experiência em palavras para si e também para o outro (seu pai).

Mas a situação também poderia se desenrolar de outra forma. Imagine que, antes mesmo de entrar na casa do amigo, o pai avise a criança: “Cuidado com o gato, ele é igual ao gato do vizinho! Não é o da vovó!”. Muito provavelmente, essa criança já entraria em alerta, olhando para o chão em busca de um animal pequeno, com cauda e bigodes. Isso talvez tiraria sua atenção de todas as outras crianças e brinquedos na casa do amigo de seu pai… E, claro, a intenção do pai não era fazer a criança sentir medo do gato, mas apenas alertá-la para que tomasse cuidado e pudesse aproveitar o tempo com os amiguinhos! No entanto, por hora, temos uma criança apenas atenta ao gato — que ainda não foi visto, mas que pode aparecer a qualquer momento! — Nessas circunstâncias é possível que os coleguinhas e os brinquedos novos passem despercebidos (não chamando tanto a atenção da criança). E tenho certeza que a criança não foi lá para se “preocupar” com o gato, mas sim interagir com as outras crianças e os brinquedos.

Por fim, perceba que através desses exemplos o ROE-M não tem um “ponto de início” a interação é dinâmica, com essas respostas acontecendo e se influenciando ao mesmo tempo. Continuaremos na parte 3….

Recomendações de Leitura:

Barnes‐Holmes, D., & Harte, C. (2022). Relational frame theory 20 years on: The Odysseus voyage and beyond. Journal of the Experimental Analysis of Behavior117(2), 240-266.

Barnes-Holmes, D., Barnes-Holmes, Y., & McEnteggart, C. (2020). Updating RFT (more field than frame) and its implications for process-based therapy. The Psychological Record70(4), 605-624.

Barnes-Holmes, D., Barnes-Holmes, Y., McEnteggart, C., & Harte, C. (2021). Back to the future with an up-dated version of RFT: More field than frame?. Perspectivas em Análise do Comportamento12(1), 033-051.

Barnes-Holmes, Y., & McEnteggart, C. (2024). Process-Based Behavior Therapy (PBBT®): Where Relational Frame Theory Meets Clinical Practice. The Psychological Record74(4), 573-589.

Harte, C., Barnes-Holmes, D., de Rose, J. C., Perez, W. F., & de Almeida, J. H. (2023). Grappling with the complexity of behavioral processes in human psychological suffering: Some potential insights from relational frame theory. Perspectives on Behavior Science46(1), 237-259.

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Escrito por Marcello Henrique Silvestre

Psicólogo (CRP 06/186284) pela FAMERP. Mestre em Análise Comportamental da Cognição pela UFSCar. Especialista em Intervenção ABA para TEA e DI. Doutorando em Psicologia do Desenvolvimento e Aprendizagem pela UNESP - Bauru. Coordenador SIG-RFT pela ACBS Brasil.
@psi.marcellosilvestre

Perda de controle sobre o consumo de substâncias psicoativas na perspectiva da Análise do Comportamento: uma introdução