Considerações a respeito da cultura na Terapia por Contingências de Reforçamento (TCR)

Não é de hoje que a cultura, ou a história de contingências de reforçamento do ambiente social, é pauta dos analistas do comportamento. Mesmo no contexto clínico, em que o psicoterapeuta possui uma atuação restrita em relação ao grupo social do qual participa – pensando que o atendimento é, em sua maioria, individual e, de forma mais abrangente, familiar -, parece inviável uma prática sem constante atualização a respeito do comportamento social e verbal para melhor compreensão do comportamento humano.

Uma comunidade rural brasileira com poucas casas e paisagem campestre ao fundo. Em terreno de chão batido em meio às casas, pessoas de diferentes origens étnicas e idades se reúnem ao ar livre. Algumas estão interagindo, enquanto outras cuidam de plantas e flores. Um arranjo de girassóis está no plano frontal da imagem, sobre uma mesa de madeira redonda.
A imagem foi criada com recurso de inteligência artificial (Copilot) para representar a diversidade cultural. Os girassóis representam a TCR.

Os trabalhos de Skinner (1945, 1947, 1948) e de seus contemporâneos (Keller & Schoenfeld, 1950) já enfatizavam tais aspectos, dos quais derivaram-se práticas dos analistas do comportamento comprometidas com contextos sociais complexos e questões humanas e sociais, incluindo estudos a respeito das relações entre comportamento individual e sociedade (Andery, 2011). A cultura, enquanto conjunto de variáveis que participa do controle do comportamento, ganha destaque a cada discussão e interpretação que se possa realizar sobre o que acontece no dia a dia de um grupo, de uma sociedade e, importante para a presente discussão, de um cliente em atendimento. Basta acompanhar as notícias para deparar-se com comentários sobre “cultura do cancelamento”, “cultura da inovação”, “cultura do machismo”, “cultura da sustentabilidade”, “cultura do medo”, “cultura do individualismo”, entre tantos outros exemplos cotidianos.

Neste sentido, as variáveis socioculturais podem estar associadas às queixas e dificuldades dos clientes, assim como ao repertório comportamental do profissional em atendimento. Em muitos dos casos atendidos (senão em todos), precisamos considerar, ampliando nossas análises, e manejar nas interações com o cliente elementos complexos sintetizados como machismo, sexismo, LGBTfobia, capacitismo, racismo, xenofobia, entre outros. As características culturais que englobam diversidades geográficas, alimentares, linguísticas e históricas, por exemplo, também precisam estar no radar do psicoterapeuta atento, bem treinado e sensível a essas diferentes variáveis.

O Tê-Cê-Érrer diante da história de contingências de reforçamento do ambiente social

Na atuação do terapeuta por contingências de reforçamento (carinhosamente chamado Tê-Cê-Érrer), as intervenções realizadas possuem o propósito de substituir comportamentos  que produzem eventos aversivos por comportamentos mantidos por consequências reforçadoras positivas amenas, nas interações entre o cliente e seu ambiente físico e social (e, preferencialmente, incluir o mesmo desenvolvimento da sua comunidade socioverbal). O psicoterapeuta deve analisar e intervir sobre as contingências de reforçamento em operação das quais os comportamentos (sentimentos, ações, pensamentos, imagens, cognições, ideias etc.) são função.

A Terapia por Contingências de Reforçamento (TCR), enquanto um modelo de terapia comportamental desenvolvido por Guilhardi (2004) a partir das contribuições da Análise do Comportamento, compromete-se com a Ciência do Comportamento (Skinner, 1953), com o Behaviorismo Radical (Skinner, 1945, 1969, 1974), com os procedimentos tecnologicamente descritos e conceitualmente sistemáticos (Baer, Wolf & Risley, 1968) e classes de comportamento verbal (Skinner, 1953). Propõe-se a analisar e intervir sobre todos os fenômenos comportamentais humanos por meio das contingências de reforçamento (Guilhardi, s/d).

Portanto, como é esperado, na explicação da origem de quaisquer comportamentos, a TCR considera os três níveis de seleção por consequências, conforme propostos por Skinner (1981/2007): filogenético (seleção natural), ontogenético (história de vida do sujeito) e cultural (história do ambiente social em que o sujeito está inserido). “Em suma, então, o comportamento humano é o produto conjunto de a) contingências de sobrevivência responsáveis pela seleção natural das espécies, e b) contingências de reforçamento responsáveis pelos repertórios adquiridos por seus membros, incluindo c) contingências especiais mantidas por um ambiente cultural evoluído” (p. 131).

De acordo com Todorov (2020, p. 17), na análise de qualquer comportamento, “há um organismo que se comporta de acordo com membros de sua espécie, com reflexos característicos e estrutura que condiciona repertórios operantes possíveis, que se desenvolvem ao longo de interações com o ambiente, sob regras características de seu grupo social”. A incorporação dos membros de uma comunidade ao grupo cultural depende do aprendizado do seguimento de regras e do seguimento de modelos.

Em relação às classes de comportamentos de terceiro nível de seleção, Guilhardi (2012, p. 7) aponta que:

“A comunidade verbal deve programar contingências de reforçamento que instalem em seus membros comportamentos que produzam reforçadores positivos para o outro e consequências que mantenham a sobrevivência da comunidade (por exemplo, comportamentos de produzir alimento melhor, mais barato e abundante; comportamento de cooperação entre os membros do grupo, a fim de preservar o ambiente; comportamento de fazer pesquisas cujo produto sejam práticas médicas que previnam doenças – vacinas, por exemplo – ou tenham mais sucesso na cura ou redução de classes de doenças etc.). Note que a prioridade no planejamento de comportamentos conceituados como pertencentes à classe de terceiro nível de seleção é o bem estar e a sobrevivência do grupo, com benefícios indiretos para cada indivíduo. O que, prioritariamente, reforça o comportamento do indivíduo é o reforçamento e o consequente bem estar do outro. Pessoas sensíveis respeitam o outro, preservam o ambiente, cooperam para o bem estar e o equilíbrio harmônico do grupo etc.” 

A seleção dos comportamentos individuais pelo ambiente cultural impacta na perpetuação do grupo e nas condições em que ele vive. Em tal contexto social de seleção de comportamentos, é possível haver manifestações classificadas como “corretas”, “saudáveis”, “boas” pela comunidade socioverbal, ocasiões em que o grupo reforça os membros e manifestações tidas como “ruins”, “equivocadas”, “más”, que serão punidas pelo grupo, visto que são aversivas para seus membros (Skinner, 2003). “Os critérios para definir o comportamento do outro como inapropriado vêm de códigos de ética, de moral, de conduta etc., aceitos como válidos e corretos pela comunidade verbal. São códigos elaborados pela religião, pela sociedade como um todo, pela família ou até mesmo por um indivíduo” (Guilhardi, 2015, p. 23).

Possíveis variáveis culturais, como relações desiguais de poder e representatividade dos membros, para além das punições às manifestações individuais, podem ser aversivas aos membros individualmente, levando-os ao sofrimento. Isso é especialmente recorrente em indivíduos de alguns grupos oprimidos em decorrência de gênero, orientação sexual, religião, etnia, classe socioeconômica, dentre outras (Passos, 2016). A redução do sofrimento do indivíduo em tais condições de controle coercitivo do grupo é um dos objetivos da psicoterapia (Sidman, 2011; Skinner, 2003).

A TCR se preocupa em garantir “um equilíbrio entre os comportamentos selecionados de acordo com o segundo nível de seleção (aquilo que é reforçador positivo e reforçador negativo para o cliente) e o terceiro nível de seleção (aquilo que é reforçador positivo e reforçador negativo para as pessoas do meio social do cliente)” (Guilhardi, 2018, p. 11). Isso se deve ao que um desequilíbrio poderia vir a produzir: por um lado, pessoas pouco ou nada sensíveis ao outro (chamaríamos de “egoístas”, “calculistas”, “frias”, “egocêntricas” etc.) devido ao excesso no segundo nível de seleção; por outro lado, pessoas exageradamente sensíveis aos outros e pouco sensíveis a si próprias (nomeadas “fracas”, “altruístas”, “boazinhas”, “inassertivas” etc.), como um produto do excesso no terceiro nível de seleção. As queixas em ambas as alternativas podem se apresentar como solidão, rejeição, abandono, doenças, entre outras a médio e longo prazo (Guilhardi, 2018).

O terceiro nível de seleção, segundo Guilhardi (2017), envolve comportamentos e sentimentos selecionados que resultam na sobrevivência do grupo social, sendo que “os padrões de comportamentos e sentimentos deste nível são produzidos por condicionamento operante de natureza socioverbal” (p. 15). A humanidade, assim, é diferenciada por ser capaz “de criar contingências de reforçamento sociais – aquelas que Skinner atribui ao terceiro nível de seleção” (p. 15), que a torna sensível a seus membros, levando à aquisição de “comportamentos de valorizar, desenvolver, cuidar de, cooperar com, sofrer por outro ser humano” (p. 15), ou seja, prioriza-se o bem estar do outro enquanto acentua-se sua sensibilidade de se comportar sob influência de tais contingências.

A intervenção de um psicoterapeuta, sabe-se, deve ser realizada com ampla visão crítica e análises que ultrapassam um evento comportamental e o indivíduo isoladamente. Faz-se importante considerações históricas, culturais e sociais sobre o grupo em que o indivíduo se insere (e continuamente a respeito do grupo em que nós, os próprios terapeutas, nos inserimos), pois, conforme Skinner (1953/2003) explicita, alguns comportamentos tornam-se padrões em certos grupos por um processo de aprendizagem em que respostas específicas são reforçadas em detrimento de outras extintas ou punidas. Neves e Cihon (2023) nos alertam que se a psicoterapia minimiza as diferenças culturais existentes acaba contribuindo com o anulamento do sofrimento de grupos não hegemônicos, além de não contribuir com o questionamento das relações de poder desiguais.

Para Guilhardi (2002), psicoterapeutas devem se atentar ao que a cultura tem modelado nos membros da sociedade, pois em diferentes níveis isso aparece na clínica. É necessário “ficar sob controle dos comportamentos atuais das pessoas, para identificar quais comportamentos as contingências de reforçamento sociais têm modelado em seus membros, quais funções de estímulo estão operando e têm produzido tais desempenhos comportamentais e como as contingências sociais macro (as manejadas por agências governamentais, ONGs, Congresso Nacional etc.) estão operando sobre os indivíduos num nível mais amplo que o familiar e escolar” (p. 19). 

Destaca-se aqui que embora a cultura de um grupo possa afetar comportamentos individuais (Silva, 2023), não trataremos neste texto de conceitos como contingências entrelaçadas, metacontingências ou macrocontingências. Ademais, entende-se que práticas culturais são constituídas e disseminadas por meio de instruções, ordens, orientações, conselhos e leis, que exercem função de regras (Silva, 2023), mas este é um tópico que ficará para outras discussões.

Não pretendemos esgotar aqui todas as considerações possíveis a respeito da cultura na TCR. A apresentação de algumas considerações sobre como a cultura vem sendo discutida no âmbito da TCR visou facilitar e desenvolver a discriminação da amplitude desta psicoterapia comportamental.

Referências

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Escrito por Nancy Capretz Batista da Silva

Psicóloga clínica (CRP 05/54348) e supervisora em psicoterapia comportamental e em cursos de especialização, atua em atendimentos psicoterapêuticos a adultos e jovens, incluindo pessoas neurodivergentes. Especialista (2020) em Psicologia Clínica Comportamental (Terapia por Contingências de Reforçamento) pelo Instituto de Terapia por Contingências de Reforçamento (ITCR - Campinas). Psicóloga (2004), Mestre (2007) e Doutora (2011) em Educação Especial pela Universidade Federal de São Carlos - UFSCar, com Doutorado Sanduíche no Exterior-SWE (CNPq) na RMIT - Melbourne/Austrália (2010). Obteve apoio para pesquisa e ensino das agências de fomento FAPESP, CAPES, CNPq, ProEx - UFSCar, ProGrad - UFSCar e SECADI - MEC. Coordenou e foi tutora em cursos de pós EAD. Foi professora no curso de graduação em Psicologia da UNIP (Sorocaba). Conteudista de materiais e professora convidada de cursos diversos, além de revisora de obras e parecerista de periódicos e eventos científicos. E-mail: dra.nancycapretz@gmail.com.

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