Processos de mudança clínica: indo além dos diagnósticos

Imagine que você está atendendo duas pessoas com o mesmo diagnóstico: transtorno depressivo maior. Ambas as pessoas apresentam os sinais clássicos de depressão, como humor deprimido, prazer consideravelmente diminuído, perda de energia, dificuldade de concentração, dentre outros sintomas. Diante desses dados, a escolha (que talvez pareça até óbvia) é seguir pelo protocolo de Ativação Comportamental.

Mas duas pessoas apresentarem o mesmo diagnóstico, significa, necessariamente, que experienciam a depressão da mesma forma? Ou que os sintomas relacionados à depressão são mantidos pelas mesmas contingências? E, mesmo que esses sintomas tenham a mesma topografia (isto é, a mesma forma), isso significa que eles servem também à mesma função?

Sabemos que a resposta para essas perguntas é, a grosso modo, não. Isso significa dizer que as pessoas não necessariamente experienciam a depressão da mesma forma, ou que os sintomas relacionados à depressão não necessariamente são mantidos pelas mesmas contingências e que, além de tudo, mesmo que sejam similares, sintomas (ou comportamentos) depressivos não necessariamente apresentam a mesma função.

Duas pessoas com depressão podem ter processos subjacentes distintos que sustentam os sintomas. Por exemplo, uma pode passar o dia todo na cama por estar presa em um ciclo de ruminação e autocriticismo intenso, enquanto outra pode apresentar o mesmo comportamento por um padrão de esquiva experiencial, evitando qualquer atividade que possa gerar frustração ou desconforto emocional. Embora ambas tenham o mesmo diagnóstico e os processos possam levar aos mesmos sintomas (no caso, o comportamento passivo de ficar deitado o dia todo na cama), as intervenções eficazes podem ser distintas, pois os processos que mantêm o comportamento depressivo em questão não são exatamente os mesmos.

Esse é um exemplo simples de como os diagnósticos nosológicos pautados no DSM podem apresentar limitações, como argumentam Hayes & Hofmann (2020). Justamente por isso, é que precisamos entender e aprofundar nossa compreensão sobre os processos subjacentes aos transtornos psicológicos (o que não significa dizer que os diagnósticos do DSM são inúteis, é claro, mas retomarei isso mais à frente).

Nesse sentido, processos subjacentes, em uma perspectiva da Terapia Baseada em Processos (TBP), são os processos de mudança clínica que explicam como e por que intervenções promovem transformações na vida das pessoas. Aqui, basicamente há a mudança de perspectiva de “qual intervenção funciona para tal diagnóstico” para como essa intervenção funciona?” (Hofmann & Hayes, 2018).

Porém, vale ressaltar que o conceito de “processo de mudança clínica” da TBP ainda é um tanto quanto incipiente e necessita de maior refinamento. Até o presente momento, processo de mudança tem sido definido, a grosso modo, como “uma sequência de eventos que sabidamente influenciam o bem-estar de uma pessoa” (Hofmann, Hayes & Lorscheid, 2023, p. 14). Dessa forma, processo de mudança pode ser entendido como mecanismos de mudança clínica que afetam positiva ou negativamente a vida de uma pessoa (ou seja, podem ser considerados adaptativos ou desadaptativos), de forma dinâmica, progressiva e de acordo com diversos níveis (ou seja, multinível). E, ainda que essa proposta seja diferente da premissa do DSM, processos de mudança também necessitam de base empírica para que sejam considerados em um processo terapêutico, por isso precisam ser pautados em teoria e orientados para o atingimento de resultados terapêuticos a médio e longo prazo (Hofmann & Hayes, 2018).

Mesmo que a definição conceitual de processos ainda necessite de refinamento, vale evidenciar a premissa principal de uma perspectiva baseada em processos: focar nos processos de mudança clínica é o cerne de uma intervenção personalizada, sem que deixe de ser baseada em evidências. Nesse sentido, retomando o exemplo que trouxe no início, em uma perspectiva da Terapia Baseada em Processos, o foco do tratamento de um transtorno depressivo vai depender de quais processos desadaptativos estão sendo responsáveis pela manutenção do transtorno, e não necessariamente de qual protocolo é mais indicado para o conjunto de sintomas.

Se para uma pessoa com depressão, em que um dos processos desadaptativos é o de ruminação, uma possível intervenção baseada em processos pode ser a aplicação de desfusão cognitiva, por exemplo. Enquanto para a outra pessoa, que vivencia um processo de esquiva experiencial (dentro de um quadro depressivo), uma intervenção mais apropriada pode ser a de aceitação das emoções, com exposição gradual a emoções difíceis e possivelmente consideradas “desagradáveis”.

Isso significa que o protocolo de Ativação Comportamental, nesse caso, seria inútil ou que devemos usar uma perspectiva em detrimento da outra, isto é, uma perspectiva baseada em processos versus uma perspectiva protocolar? Essas perspectivas são, necessariamente, opostas?

Talvez não. Ao entendermos de forma mais aprofundada quais são os processos de mudança clínica que precisamos explorar em determinado caso, podemos usar esse conhecimento para adaptar um protocolo específico e torná-lo não apenas eficaz para o que se propõe, mas também muito mais personalizado e funcionalmente aplicado.

Dessa forma, a Terapia Baseada em Processos não busca substituir protocolos ou abolir diagnósticos nosológicos, mas sim oferecer uma perspectiva mais refinada para compreender o sofrimento humano e promover mudanças em direção a uma vida com maior qualidade. Ao focarmos nos processos de mudança clínica, conseguimos adaptar intervenções para que sejam mais precisas e personalizadas, sem abrir mão da base empírica que sustenta a prática baseada em evidências.Ainda há desafios a serem superados, é claro: no refinamento conceitual e na operacionalização dos processos de mudança, no fortalecimento da bagagem empírica de uma abordagem baseada em processos e na capacitação de terapeutas para que possam aplicá-la de forma efetiva. No entanto, à medida que ocorrem avanços na pesquisa e na aplicação clínica dessa abordagem, podemos nos aproximar cada vez mais de uma psicoterapia que seja ao mesmo tempo cientificamente embasada e flexível às necessidades individuais de cada pessoa. Parece promissor, pois, além de tudo, essa mudança de perspectiva pode ser um passo essencial para o avanço e futuro da psicologia clínica nos próximos anos.

Referências

Hofmann, Stefan G., & Hayes, Steven C.. (2018). TCC Moderna CBT: movendo-se em direção a terapias baseadas em processos. Revista Brasileira de Terapias Cognitivas, 14(2), 77-84. https://doi.org/10.5935/1808-5687.20180012

Hofmann, S. G., & Hayes, S. C. (2018). The future of intervention science: Process-based therapy. Clinical Psychological Science, 7(1), 37–50. https://doi.org/10.1177/2167702618772296

Hayes, S. C., & Hofmann, S. G. (2020). Beyond the DSM: Toward a process-based alternative for diagnosis and mental health treatment. Context Press

Hofmann, S. G., Hayes, S. C., & Lorscheid, D. (2023). Aprendendo a terapia baseada em processos: Um manual de treinamento de habilidades para direcionar os processos centrais da mudança psicológica. Artmed.

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Mariangela de Freitas Dias

Escrito por Mariangela de Freitas Dias

Possui graduação em Psicologia pelo Centro Universitário UniBrasil (2013). Possui Mestrado em Educação pela UFPR (2016). Especialista em Terapia Analítico-Comportamental pelo UniBrasil (2022). Atua como psicóloga clínica e supervisora, com base na perspectiva da prática baseada em evidências.

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