
“Na vida, não há certo; não há errado. Há o possível. O desenvolvimento pessoal amplia o possível.”
(Hélio José Guilhardi, proponente da Terapia por Contingências de Reforçamento, junho/2009)
O termo “Terapia Comportamental”, inicialmente cunhado para um tratamento específico (Wolpe, 1973), ao longo do tempo passou a definir uma família de práticas psicoterapêuticas que, no limite, são epistemológica e conceitualmente incompatíveis entre si. Por exemplo, o próprio conceito de “comportamento”, que dá nome ao grupo, não possui consenso entre as psicoterapias que o compõe (e.g., Terapia Cognitivo-Comportamental, Terapia de Aceitação e Compromisso etc.). Portanto, ao falar de uma “terapia comportamental”, é necessário especificar quais são seus fundamentos filosóficos e conceituais.
Nessa publicação, apresentaremos brevemente um modelo de terapia comportamental chamado Terapia por Contingências de Reforçamento (TCR). O desenvolvimento da TCR se inicia com a abertura da primeira clínica de terapia comportamental no Brasil, em 1969, e continua até os dias de hoje (Guilhardi, 2003, 2021). A TCR é uma sistematização da Análise do Comportamento aplicada ao ambiente clínico (Guilhardi, 2004). Por sua vez, a Análise do Comportamento pode ser compreendida como uma ciência natural subdividida em diferentes áreas: a filosofia do Behaviorismo Radical (e.g., Skinner, 1945, 1953, 1957, 1974); as metodologias de pesquisa da Análise Experimental do Comportamento e da Análise Aplicada do Comportamento (e.g., Andery, 2010; Johnston et al., 2019; Sidman, 1960); os conceitos derivados das evidências experimentais das pesquisas (e.g., Catania, 1998/1999; Keller & Schoenfeld, 1950/1974; Millenson, 1967/1975); e os procedimentos de modificação de comportamento tecnologicamente descritos e replicáveis (Baer et al., 1968).
A Análise do Comportamento possui o comportamento como objeto de estudo, esse definido como a interação entre as manifestações do organismo e aspectos do ambiente (Matos, 1995; Skinner, 1953). A relação de dependência entre os eventos ambientais e as manifestações do organismo são chamadas contingências de reforçamento (CR) (De Souza, 1999). O psicoterapeuta TCR se interessa por todas as manifestações dos clientes (comportamentos motores, sentimentos, pensamentos, previsões, alucinações, sonhos etc.) e as entende como resultado das CRs. “Terapia por Contingências de Reforçamento” é um nome descritivo da atuação do profissional, visto que seu objetivo é identificar as CRs controladoras das manifestações clinicamente relevantes e manejar CRs para alterá-las em uma direção psicoterapêutica (Guilhardi, 2004).
Características fundamentais do modelo psicoterapêutico
A TCR compreende que o repertório comportamental do cliente é selecionado pelos três níveis de seleção propostos por Skinner (1981), filogênese, ontogênese e cultura. O repertório pode, em determinado momento, ser inefetivo para produzir reforçadores positivos e/ou eliminar estímulos aversivos no curto e no longo prazo. Os resultados da escassez de reforçadores positivos e/ou o contato com estimulação aversiva são sentidos pelo cliente como sofrimento (Guilhardi, 2004). Na maioria dos casos, o cliente não possui o repertório verbal para descrever a relação de dependência entre o que sente e o ambiente, e atribui suas dores a causas espúrias (Guilhardi, 2002).
O psicoterapeuta TCR inicia o processo psicoterapêutico identificando os déficits e excessos comportamentais (Kanfer & Saslow, 1976) do cliente, tanto referentes às queixas, quanto às dificuldades percebidas pelo profissional, que o impedem de produzir reforçadores positivos e/ou eliminar estímulos aversivos, de curto e longo prazo, para si e para terceiros (Ferster, 1972). Além disso, o psicoterapeuta investiga e levanta hipóteses sobre as CRs em operação que mantêm as dificuldades do cliente.
Após levantar hipóteses sobre diferentes CRs controladoras das manifestações, o psicoterapeuta poderá agrupá-las em classes de respostas, isto é, respostas fenotipicamente (aparentemente) diferentes que são controladas pelas mesmas classes de eventos antecedentes e produzem os mesmos efeitos no ambiente (Catania, 1998/1999). A adição de informações que ocorre a cada sessão altera ou amplia a análise do profissional. Também é importante agrupar as classes de respostas problemáticas em classes de ordem superior (Catania, 1996), facilitando a previsão do comportamento do cliente nos diversos ambientes sociais (e.g., profissional, familiar, conjugal etc.).
O repertório do cliente é resultado do acúmulo de interações com o ambiente desde o nascimento, contudo os comportamentos-problema são controlados por CRs presentes, e a única maneira de alterá-los é intervindo no presente. O profissional realiza um recorte arbitrário da vida do cliente e infere, a partir das evidências coletadas, as CRs que controlam os comportamentos relevantes. Se a partir da análise de CRs as intervenções obtiverem sucesso, suspende-se a avaliação. Se as intervenções obtiverem sucesso parcial ou nulo, o psicoterapeuta terá que reavaliar as suas hipóteses sobre as CRs controladoras ou os procedimentos utilizados. Uma das formas de reavaliação das CRs é a investigação da história de contingências de reforçamento (HCR). Recortes da HCR, arbitrários, como os recortes das CRs atuais, sugerem como os eventos adquiriram as funções de estímulo e como os padrões comportamentais foram instalados e mantidos (Guilhardi, 2010).
É essencial que os procedimentos psicoterapêuticos sejam construídos de maneira individualizada e que o contato do psicoterapeuta com técnicas já utilizadas (e.g., leitura de publicações científicas) sirvam como eventos antecedentes para ampliar o repertório profissional e aumentar o controle de estímulos sobre aspectos relevantes dos casos atendidos, e não para a replicação baseada em critérios fenotípicos (e.g., critérios diagnósticos de manuais de psiquiatria), protocolos de atendimento (como as intervenções ocorridas em determinadas pesquisas clínicas) ou CRs pré-estabelecidas (e.g., partir do pressuposto que, dado determinado diagnóstico, certas CRs estão em operação) (Guilhardi, 1988). Isso colocaria o psicoterapeuta sob controle de regras prévias à análise do caso e o tornaria menos sensível às CRs referentes à pessoa atendida.
Por final, o psicoterapeuta TCR deve programar a generalização dos ganhos do processo psicoterapêutico (Baer et al., 1968) para 1. diferentes classes comportamentais, de forma que os comportamentos desejados do cliente se ampliem para múltiplas áreas; 2. diferentes ambientes (não se restringir a mudanças dentro da sessão de psicoterapia); e, 3; se manterem no tempo. O psicoterapeuta deve ficar satisfeito apenas quando o repertório do cliente apresentar a generalização nessas três áreas.
Para saber mais sobre a TCR, sugerimos a leitura de https://itcrcampinas.com.br/pdf/helio/introducaoatcr.pdf
Referências
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